De um a dez outra vez escrita por Ariane Munhoz


Capítulo 6
Como um deus


Notas iniciais do capítulo

Já aprenderam a contar até dez?



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/751437/chapter/6

Três dias formavam o conjunto de 72 horas.

Esse era o tempo que Nora, Steve, Jonas e Mike estavam sem dormir. 72 horas. O livro dos records diz que a pessoa que aguentou mais tempo acordada, ficou acordada por 264 horas, ou seja, 11 dias.

Eles tinham 31 dias de ilha. Jamais conseguiriam passar todos eles acordados.

Nora e Steve saíram da caverna, incapazes de encarar a visão do corpo queimado da amiga. Steve colocou para fora todo o jantar da noite anterior, pois não haviam parado para tomar café também.

Desde aquele momento, dois dias inteiros haviam corrido no relógio. Dois dias em que ele e Nora caminhavam seguindo as pistas deixadas nas cascas das árvores por Mike.

— E se o recado não tiver sido dele, Steve? – A voz trêmula de Nora ecoou pela floresta em um tom choroso. Ela se agarrava ao braço do namorado, que continuava em frente, manuseando um facão na mão destra.

— É dele. – confirmou com convicção.

— Como pode saber? E se aquele maluco tiver tomado conta dele e agora estiver nos levando para uma armadilha?! – Nora soou histérica como realmente estava. Steve voltou-se na direção dela, os olhos injetados e raivosos.

— Porque eu sei. – rebateu. – Ele é o meu irmão.

— Não me venha com essa baboseira de gêmeos agora, Steve! Alex e Carol estão mortos, está entendendo?! – Sua voz alterou-se. – MORTOS!

Os pássaros que grasnavam nas árvores alçaram voo com aquele grito.

— ACHA QUE EU NÃO SEI?! – cuspiu as palavras de volta contra ela. Sentia o pé latejar a cada passo, mas continuava em frente porque precisavam sobreviver. Porque precisava encontrar seu irmão e garantir que ele estava bem e que aquele maníaco bastardo não tomaria seu corpo... não. Mike não dormiria. Ele sabia como funcionava. O terror. A avó deles, mais lúcida do que poderiam imaginar, havia sido muito clara a respeito disso. – Alex era meu amigo... o meu melhor amigo, Nora. Sei que a morte de Carol mexeu com você, mas precisamos continuar em frente, entendeu? Não temos escolha. É isso ou aceitar a morte.

Nora sentiu-se acuada, as lágrimas ardendo em uma trilha pelo rosto. Sua cabeça doía como o inferno. Será que desistir era tão ruim assim? Mas ela havia visto o corpo de Alex e o que havia acontecido com Carol. Talvez... talvez...

— Hey. – Steve soou mais calmo quando tocou em seu ombro. Ela quase reconheceu nele o namorado por quem havia se apaixonado. Naquele sorriso... Poderia ser ele? – Vai ficar tudo bem. Vamos conseguir. Fique acordada, está bem? Vamos caminhar mais um pouco.

Nora o seguiu, a desconfiança permeando-a como se fossem dedos invisíveis passeando por sua nuca. Os olhos imediatamente desceram para o facão. O facão que Steve manuseava.

O que era sonho? O que era realidade?

X

Parecia que fazia um século desde a última vez que haviam parado para comer algo e Mike sentiu o peso da falta de comida em seu organismo. Não tinha forças para nada quando pararam de caminhar, e apenas a posição do sol lhe dizia que já completavam o terceiro dia sem dormir. Não sabia exatamente quantas horas, mas se não haviam chegado a isso, estavam perto.

— Você está pálido, Mike. – Jonas soou preocupado. – Sente-se um pouco. Vou subir nessas árvores. Parecem frutíferas.

Mike estava com medo de pegar no sono.

— Eu estou bem. – Sorriu fracamente, mas sentiu a vista escurecer. Jonas o apoiou no ombro, fazendo-o se sentar apesar dos protestos.

— Só um pouco, está bem? Ficaremos conversando. O que acha? Enquanto eu subo na árvore. – sugeriu.

Parecia melhor do que pegar no sono.

— Por que não me fala um pouco de você? – Jonas questionou e manteve a voz alta enquanto começava a subir. – Acho que pulamos isso no primeiro encontro!

Mike soltou uma gargalhada sonora.

— Acho que tem razão. – respondeu. – Não tem muita coisa de interessante pra dizer a meu respeito além de que amo esportes radicais e tenho o sonho de saltar de asa delta. Já esquiei em montes altos, enfrentei ondas perigosas, escalei montanhas... mas jamais me atrevi a voar. O restante não importa muito. Ainda não sei o que quero da vida pra ser sincero. E você?

Jonas esticou a mão para alcançar um dos galhos e içou o corpo para cima. Sentia-se exausto também, mas sabia que Mike estava pior, pois ele não havia parado sequer por um minuto desde que haviam descoberto sobre aquele tal assassino de sonhos.

— Gosto da vida ao ar livre. – respondeu. – Penso que gostaria de cursar algo nesse sentido, mas... pra ser sincero, percorrer aventuras em lugares assim mexe comigo. Eu... tinha o sonho de viajar o mundo.

Mike ergueu o rosto para encará-lo, fechando um pouco os olhos pela força do sol. Havia apressado o passo na esperança de alcançarem alguém, mas ainda não tinham encontrado nada...

— Quem sabe não podemos conhecer o mundo juntos? – Mike sugeriu daquele jeito meio moleque, com um pouco de malícia na voz. No entanto, Jonas ficou calado. – Jonas? Jonas!

Seu coração parou por um segundo achando que ele havia dormido.

— Estou vendo alguém, Mike! Ali! – Jonas apontou a direção para o outro rapaz.

Imediatamente, Mike sentiu o sono e a fome o abandonarem, correndo na direção indicada por Jonas.

X

Era uma pessoa cercada por muitos corpos com um ferimento extenso no tórax que se parecia com as garras de um animal.

“Mas são as garras dele. Posso ver em seu olhar que sim. Não há feras assim nessa ilha. Apenas Freddy Krueger. E eu o despertei”,  o pensamento invadiu Mike como fumaça que se infiltra pelas frestas das portas.

— Ele está vivo, Mike! Está vivo! – A voz de Jonas o despertou de seus devaneios. Até aquele momento, fixado no pensamento de que havia causado aquilo tudo, não havia se dado conta. Mas a respiração pesarosa do homem no chão podia ser ouvida por todo o ambiente.

— Como? – As orbes azuladas se fixaram no homem que gemia baixinho. – Como conseguiu escapar?! – Ajoelhou-se ao lado do homem, praticamente querendo sacudi-lo. Seus olhos, escuros em tom castanho pareciam estar perdendo a vida, apagando-se. O homem iria morrer.

— Trisha me despertou… - O sangue escorria pelo canto dos lábios, o olhar perdido. Trisha devia ser uma das garotas que jazia morta no chão. – Os gritos dela.... a agonia...

O sofrimento do homem era visível. Mike trincou os dentes.

— Vieram no barco conosco? – Amaldiçoou-se pela memória, por não conseguir decorar rostos. Jonas manteve-se taciturno, apenas deixando Mike conduzir o interrogatório. – Tem mais alguém?

— Ele veio... nos atacou nos nossos sonhos... era real... ugh...— Aquele ferimento, Mike notou, não era de hoje. Provavelmente eles tinham sido atacados na noite anterior. Não sabia como o homem ainda estava vivo com o cheiro de podridão ao redor, pois o calor acelerava a decomposição.

— Ele está delirando, Mike. – Jonas apertou seu ombro. Mike soltou um palavrão sonoro, vendo a consciência do homem se perder, não para o mundo dos sonhos, mas para os braços da morte. Poucos segundos depois, sua respiração cessou. As batidas do coração também.

— Droga, droga, MIL VEZES DROGA! – Mike bradou, finalmente extravasando a raiva que explodia em seu peito através das lágrimas. – Isso tudo é minha culpa, Jonas. Minha culpa... – Caiu de joelhos no chão, completamente derrotado pela situação. Se não tivesse insistido com Steve, aquilo jamais teria acontecido. Só precisavam enterrar aquela história, mas ele o havia libertado como um completo idiota ao conta-la em voz alta e dizer seu nome... e para quê?

— Não diga isso. – O olhar e o tom sério de voz de Jonas o atingiram. – Vamos dar um jeito, tudo bem? Vamos vasculhar as coisas deles, buscar por algo que possa nos ajudar. E depois... depois iremos sair daqui e fazer aquela viagem que você me prometeu.

Envolveu o pescoço do outro rapaz com os braços e puxou-o para perto lhe dando um beijo rápido. Mike não sabia o que pensar. Apenas que estava exausto demais para pensar.

X

Steve achou que estava chegando ao limite quando viu que as demarcações do irmão pararam em uma espécie de clareira. Sua cabeça parecia girar em todas as direções, a boca seca por ter cedido o último gole de água para Nora duas horas antes. E ela continuava estranha, provavelmente por se culpar pela morte de Caroline.

Sinceramente, Steve não sabia o que pensar sobre isso. Apenas que precisavam ficar juntos e encontrar Mike.

— Precisamos de água, Nor. – Steve disse, cada palavra parecendo areia em sua boca.

A mulher respirou fundo, sentindo o cabelo grudado na nuca por conta do calor. Seus olhos acompanharam o corpo de Steve, descendo até o facão que ele carregava. Depois subiram para o seu rosto novamente. Que jogo era aquele que ele estava jogando? Fingir-se de preocupado para depois torturá-la?

— Não tem nada aqui por perto. – Decidiu entrar no jogo dele. Não permitiria que as coisas seguissem o rumo que o tal assassino planejava.

— Frutas. – Steve apontou para o alto. – Naquelas árvores. E acredito que Mike esteja por perto. Talvez lá de cima eu encontre alguma coisa.

Nora acenou com a cabeça.

— Talvez você encontre mesmo. – respondeu.

Steve aproximou-se dela, o olhar preocupado enquanto a mão esquerda tocava seu rosto. Nora retraiu-se por um momento, como se o toque dele fosse de fogo. Mas era tão familiar! O toque de seu Steve...

— Ainda está brava porque gritei com você? – perguntou com a voz doce e mansa. – Sinto muito. Sinto muito por ter sido um babaca incompreensivo. As coisas... não estão nada fáceis.

— Steve... – ela murmurou baixinho para ele, deitando o rosto em sua palma. Se fechasse os olhos, tudo aquilo desapareceria. Toda a dor... mas então ouvia os gritos de Carol, o falsete em sua voz repetindo as palavras de Steve... Nora abriu os olhos. - ... está tudo bem. Pegue as frutas para nós, sim?

Aquele sorriso breve foi como fôlego novo para Steve. O rapaz beijou os lábios dela de maneira rápida e largou o facão no chão, fincando-o ao lado de Nora e deu as costas, pronto para subir na árvore.

— Quando eu voltar, nós... – A frase foi morrendo em seus lábios, conforme sentia algo se enterrando em suas costas com tanta profundidade que a dor demorou a vir e quando o fez, foi em uma explosão. Steve queria gritar, mas a faca tinha ido tão fundo em suas costas que havia atravessado o peito, perfurando o pulmão e preenchendo-o com seu próprio sangue.

— Sabe, Steve, eu descobri que essa é a única forma. – Nora disse, aquele tom ensandecido em sua voz. – A única forma de ficarmos juntos.

Ela girou o facão e puxou-o de vez. O corpo do rapaz caiu no chão, os olhos perdendo a vida junto do sangue que manchava a relva de vermelho.

— F-F...

— Não, Steve. Não é o assassino insano. – O sorriso pintava os lábios de Nora. Ela aproximou-se e selou-o contra a boca de Steve, sentindo o gosto férreo de sangue. – Mas não sairemos daqui, não é? E eu não aguento mais. Não aguento mais!

Nora deitou-se ao lado de Steve, aninhando-se em seus braços. O corpo dele tentava lutar inutilmente contra a dor, contra a morte iminente; impossível. Nada podia ser feito.

— Eu estou aqui, Steve. – disse ela, acariciando os fios negros, e fechou os olhos. – Vou estar aqui até o fim.

Steve flutuou em direção ao sol, lembrando-se do dia em que a havia conhecido, de todos os aspectos de sua vida. E lamentou-se por não poder se despedir do irmão gêmeo, por tê-lo levado até aquela ilha junto dos amigos. Nora apenas sorriu. Não percebeu quando Steve partiu. Não percebeu, também, quando adormeceu.

X

Quando Nora era mais nova, amava subir em árvores. Gostava de chegar até o galho mais alto, sentir a brisa do vento e, às vezes, adormecer nos galhos. Isso perdurou por muito tempo. A pequena Nora era muito corajosa!

Até que um dia, ela subiu em uma árvore e o galho se partiu.

Mas tudo estava bem. O galho não era alto, rendeu-lhe apenas um ralado no joelho e seu bumbum dolorido. Ao menos era o que ela havia pensado até ouvir sua amiga, Melanie, gritar.

Nora não entendia por que ela estava gritando. Não entendeu até que sentiu as pequenas patinhas subindo por suas costas, pelas pernas e o restante do corpo.

E então ela viu as aranhas, com seus pelinhos irritadiços, que subiam e subiam sem parar.

— Você se lembra da música, Nor? – O grito estridente de Melanie se transformou na voz da amiga de infância. E ela entortou o rosto enquanto Nora tentava bater no próprio corpo e se livrar das aranhas que se multiplicavam mais e mais. – A dona Nora subiu pela árvore...¹

Nora começou a correr de um lado para o outro, tentando se livrar. Em dado momento, uma vinha traiçoeira a fez tropeçar e cair de cara no chão. Melanie ajoelhou-se na sua frente, mas não era mais Melanie. Ela reconheceria aquela garra que havia deixado as marcas no peito de Alex em qualquer lugar.

Não, não... eu estou acordada! Eu estou acordada! – Sua voz saiu estridente. As aranhas começaram a subir por suas costas e picar seu corpo. Picadas dolorosas que  a fizeram gritar.

— ... veio o titio Freddy e a derrubou. – A garra tocou seu queixo. Por que não conseguia se mexer? O veneno das aranhas? Seu corpo estava dormente...

Pare, pare... o que você quer?

Aquele olhar ensandecido voltou-se em sua direção. O rosto completamente queimado, o sorriso maníaco pintando os lábios. Nora nunca o havia visto, mas era aterrorizante. E naquele momento, ouviu o espírito de Alex, Carol e Steve gritarem no centro do peito dele, movendo-se e formando as silhuetas de seus rostos enquanto tentavam se libertar.

“Você nos matou!”

“É tudo culpa sua!”

“O que eu fiz a você, Nor? Por que tirou minha vida?! Não vê que ele está me torturando?! ELE ESTÁ ME TORTURANDO, NORA!”

O corpo de Nora pesava. Freddy a virou em sua direção, as garras deixando marcas em seu braço enquanto correntes se formavam ao seu redor. Um exército de aranhas subia por seu corpo e ela apertou os lábios, comprimindo-os.

Mas Nora é burra, acabou dormindo... e no pesadelo, titio Freddy vai matar! E no pesadelo, titio Freddy vai matar! – cantarolou ele.

Uma aranha, maior que todas as outras, posicionou-se sobre seu abdômen.

Sabe como as viúvas negras acasalam com seus machos, Nora? – Freddy perguntou. – Oras, claro que sim! Biologia, não é? – riu-se.

Naquele momento, a aranha fincou as quelíceras² em sua barriga. Nora gritou de dor, o momento aproveitado pelas pequenas aranhas para penetrar em sua boca, preenchendo-a. Nora sentia, em desespero, sufocar-se enquanto elas desciam por sua garganta.

Um único pensamento vagava por sua mente: quero morrer, quero morrer, quero morrer!

Freddy apenas tocou seu rosto com as garras, deixando uma marca leve ali.

Não, não, Nora. – disse ele, com tom paternal. – Você se aventurou no meu mundo. Minutos se passarão no mundo real até que seu corpo agonizante pare de funcionar. Mas aqui... eu tornarei cada segundo uma tortura eterna para que você saiba que o terror chamado Freddy Krueger reina outra vez!

A gargalhada esganiçada de Freddy ecoou ao seu lado. A morte veio lenta e agonizante para Nora, enquanto ouvia as vozes de seus amigos e do namorado culpando-a pelo que havia acontecido.

X

— Achei! – Jonas exclamou, exultante. – Um rádio! Agora só precisamos ligar ele na frequência certa e... Mike?

O rapaz havia empalidecido, a dor cruzando seu rosto de maneira visível.

— Meu irmão. – disse ele. – Aconteceu alguma coisa com o meu irmão.

Jonas inclinou o rosto sem entender, mas não teve tempo. Mike apenas disparou floresta adentro na direção em que haviam vindo.

Da escuridão, ele apenas observava. Onisciente, onipresente naquela ilha que o alimentava. Que o tornava um deus.

“Se você não se cuidar

Nos seus sonhos vou caminhar

E, pequenino, essa certeza vou te dar:

Você nunca mais vai acordar!”

 


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

¹ - Uma variação feita por mim da cantiga: a dona aranha subiu pela parede
² - São as presas das aranhas

—-

Hohoho, o que acharam do capítulo? Nora completamente maluca, entregando-se à insanidade e matando o pobre Steve! Coitado.

Mas ela acreditou, na mente dela, que a única forma de se libertar de Freddy era se matando. Ela só não queria deixar que Steve corresse esse risco. Mal sabia ela que Freddy estava espreitando o tempo todo. Afinal, a ilha Escuridown guarda mistérios incríveis... que serão desvendados no próximo que será o último capítulo! Não sei se haverá um epílogo, é algo para se pensar. Mas quero dizer que gostei muito deste pequeno projeto! Freddy é um dos meus terrores pessoais. Pode ser trash, mas a ideia dele me apavora!

Um cara que entra nos seus sonhos e você não pode vencer?! Tá amarrado, em nome de Jesus!

Enfim.

Estamos na reta final, mas espero que continuem curtindo. Comentem e digam suas opiniões a respeito! :D

Bons pesadelos...



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "De um a dez outra vez" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.