A Peça Perfeita escrita por Kurai


Capítulo 4
Capítulo 4 - Raiva


Notas iniciais do capítulo

As palavras pro quarto capítulo foram: disforme e protesto. Decidi postar o capítulo mesmo atrasada por se tratar da semana de Natal/Ano Novo, acho uma desculpa válida. Boa leitura!



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Ayori estava sentada no chão de pernas cruzadas em borboleta, as costas contra um dos espelhos do salão de dança, as mãos batendo contra os próprios tornozelos no ritmo da música. À sua frente, duas engrenagens giravam uma contra a outra em sincronia perfeita. Para uma relojoeira, não poderia existir visão mais satisfatória.

No entanto, uma parte de si que queria enterrar ainda sentia raiva.

Depois de sua ‘reconciliação’ com Miyuki, a garota mostrou-se realmente cooperativa. Parecia disposta a fazer o que fosse para que fizessem as pazes. Isso, é claro, tinha sido planejado por Ayori, que vinha a tratando de forma especialmente carinhosa nos últimos dias. Precisava que ela se sentisse bem.

Porque a faria dançar outra vez.

Primeiro, foram sugestões indiretas. Frases soltas sobre como sentia falta de um bom espetáculo, ou como se sentia desmotivada e sem inspiração. E então, o comentário menos sutil sobre como fora uma pena não ter visto a apresentação dela até o final e como teria gostado disso.

Por fim, fez o pedido. Disse a ela que poderia ser sob qualquer condição que a deixasse mais confortável, o que fosse, ela aceitaria. Só queria poder vê-la dançando outra vez.

Miyuki demorou a concordar. Quando o fez, só tinha uma condição: que ela pudesse dançar junto àquela garota. Segundo a astróloga, era o único jeito onde conseguia dançar livremente, sem se machucar com o passado.

Tudo o que Ayori se lembrava sobre ela era seu nome, Katrina Frost. Não fazia ideia de qual era seu talento ou em que turma estava. Miyuki contou-lhe que ela chegou transferida depois de alguns meses, e isso explicava o porquê de Ayori jamais ter procurado saber se ela poderia vir a ser uma peça como fizera com todos no começo do ano. Mas a relojoeira era rancorosa, e mesmo sem saber nada sobre a garota, não gostava dela. Sentia raiva. Uma raiva que queria esconder com todas as forças, e fingir que nunca sentira. Porque vinha do fato de não querer perder Miyuki – e isso era um limite perigosamente próximo de afeição que Ayori estava decidida a não se aproximar nunca mais.

Ela não trocou palavra com a outra dançarina desconhecida. Miyuki foi até ela e resumiu a situação. A garota olhou Ayori, que já se acomodava em um canto sem dar sequer um olá, e sorriu em sua direção.

Havia algo... Incrivelmente desconcertante naquele sorriso. Era como se a garota soubesse cada segredo da relojoeira; como se pudesse ver por trás de sua máscara imediatamente e enxergar o poço disforme de caos e insanidade que espreitava sua mente. Como se já tivesse visto isso antes.

E isso só deixava Ayori com mais raiva. O ar de confiança, o rosto belíssimo, o jeito como se dirigiu até o som para ligá-lo e como incentivou Miyuki a começar. O jeito como se virou diretamente à ‘sua plateia’ antes de dar o primeiro passo. Tudo isso deixava a relojoeira mais e mais irritada.

E então a dança começou, e eram como duas engrenagens girando aos olhos de Ayori, duas engrenagens perfeitas, em sintonia, girando exatamente ao mesmo tempo e se curvando e saltando com precisão milimétrica.

Simetria.

Foi naquele instante que Ayori se apaixonou pela palavra simetria. Um par. Não havia equilíbrio e precisão maior do que em um par, era essa noção que lhe faltara da última vez. Jamais daria certo como ela estivera fazendo. A chave estava na simetria. E para uma obra simétrica, precisava obviamente não só de uma peça perfeita. Precisava de duas.

Felizmente, já tinha achado a segunda.

Infelizmente, ela tinha certeza que seria uma peça bem mais difícil de conseguir do que Miyuki. Especialmente depois de ver aquele sorriso.

Ayori voltou algumas vezes ao salão de dança. Katrina lhe dera ‘oi’, se é que aquele palavrão russo significava isso, e repetiu o cumprimento das demais vezes, mas foi só isso. A cada vez, ela colocava uma música diferente, e as duas conseguiam apresentar como se tivessem passado toda a vida ensaiando juntas.

Todas as vezes, ela dançou diretamente a Ayori, ao contrário de Miyuki que preferia agir como se não tivesse plateia alguma.

Não foi surpresa quando a relojoeira descobriu que seu talento era Ultimate Bailarina. Era natural que mais alguém a reconhecesse. Não seria sua peça perfeita de outro modo.

—-------

Ayori tinha tomado gosto por visitar o gramado aberto onde conhecera a astróloga. Era um lugar tranquilo e vazio, silencioso exceto pelo tic-tac de seu relógio de bolso. Não estava esperando quando Miya, a líder de sua turma e a Ultimate Paisagista, veio se sentar ao seu lado. Mas Miya também não ouviu protesto. Recentemente, ela se tornara cada vez mais interessante à relojoeira à seu modo, enquanto se tornava próxima de toda a sala e ouvia seus problemas, exatamente o que fora fazer naquele momento.

Ayori às vezes sentia vontade de apertar o botão e descobrir o que ele fazia.

— ...Não sei se vai entender meu problema, cutie.

— Eu posso ouvir ao menos!

— Bom... Vou manter simples. Estou construindo um relógio, um belo relógio, uma obra de arte. E tenho duas peças únicas feitas especialmente pra esse relógio. Preciso das duas, mas só uma encaixou e funciona. A outra... Está enferrujada e dura, e se recusa a entrar no relógio e trabalhar comigo. See, Darling? São problemas técnicos.

— Não entendo bem qual o problema. Não dá pra trocar a peça, não é? Entãooo... Se ela não funciona direito é porque tem alguma coisa errada. Não tem algum produto pra tirar a ferrugem? Algum jeito de deixar ela presa pra não soltar mais do lugar e continuar funcionando? Não entendo bem de relógios, mas tenho certeza que você consegue fazer as duas funcionarem juntinhas!

— Prender..? — Ayori voltou o olhar para o céu. Tentara isso uma vez. Falhara. Não podia ser a relojoeira de um relógio inteiro enquanto segurava uma peça no lugar, mas...

Talvez tudo que precisasse fosse de uma fita adesiva que fizesse isso por ela.

Talvez ela pudesse construir uma.


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Notas finais do capítulo

Katrina pertence à Stephanie Angelickie e tem uma história própria. Podem conferir aqui: https://fanfiction.com.br/historia/746727/Meu_nome_e_Katrina
Uma breve explicação sobre Miya: nesse ponto do plot no rpg em geral, ela estava sendo considerada a nova esperança mundial, e as pessoas estavam ficando meio obcecadas com ela.
Isso nunca é uma coisa boa.



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