A Peça Perfeita escrita por Kurai


Capítulo 5
Capítulo 5 - Desespero


Notas iniciais do capítulo

As palavras pro quinto capítulo foram: potencial e aviltação. Boa leitura!



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/748847/chapter/5

Ela não conhecia o garoto que a encontrara na oficina da escola e resolvera se aproximar. Mas não o dirigiu mais do que um olhar. Estava trabalhando.

Ayori era quase outra pessoa enquanto trabalhava. Sem a maquiagem pesada e as roupas descoladas, os cabelos presos com firmeza, o belo corpo oculto atrás de um macacão, os olhos sagazes escondidos pelos óculos de aviador que usava como proteção, Ayori tornava-se praticamente irreconhecível.

O rapaz tinha as roupas e o cabelo nas cores preta e branca. Ela não conseguia adivinhar por sua aparência qual seu talento. Na verdade, não se lembrava de tê-lo visto na escola. Ainda assim, ele estava ali, observando atentamente a montoeira de peças em que trabalhava.

Cutiepie, não tem mais nada pra fazer? Que vida chata a sua.

— O que está fazendo? —perguntou, ignorando a provocação.

— Um mordomo.

— Um mordomo?

— Tecnicamente um assistente, mas vou chamar de mordomo.

— Por que uma relojoeira precisa de um mordomo?

— Por que você precisa da língua? — ela largou as ferramentas, erguendo os óculos do rosto sujo de fuligem para olhá-lo de sobrancelha erguida. — Algumas peças dão trabalho pra cuidar. Ele vai servir pra isso. E pra me trazer bolo.

— ‘Ele’? Não parece um ele.

— Quando eu terminar vai. Só preciso pensar numa forma de ensinar ele a fazer bolo. Há um limite pro que peças analógicas conseguem fazer de forma autônoma.

— Você poderia dar um cérebro a ele.

— Ah, é claro. Você tem um sobrando aí, Doctor Frankenstein?

— Na verdade, tenho. Meu nome é Hasano Sasaki. E por acaso entendo de inteligência artificial. Seu mordomo tem potencial pra virar minha cobaia.

—-------

Vê-lo abrir os olhos foi um dos momentos mais intensos de sua vida. Ayori não sabia dar nome ao sentimento que a preencheu. Era um misto de orgulho feroz e carinho terno, algo como imaginava ser ter um filho. Quando os olhos opacos dele se viraram a ela, confusos — mal dava pra lembrar que era um robô – Ayori tirou a luva e ergueu a mão delicada, acariciando seu rosto com o polegar. Hesitante, testou falar; Hasano dissera-lhe que ele já conseguia reconhecer voz.

— Consegue me entender?

— Eu... Consigo. — o sorriso da relojoeira foi inevitável. Ela abraçou sua criação confusa, contente por ter funcionado.

— Me escute, baby. Seu nome é Shirohige. Shirohige Motosuwa. E você é o melhor mordomo do mundo.

—-------

A criação de Shiro levou muitos meses, e durante eles, ela se aproximou de Hasano, embora permanecesse ignorante sobre quase tudo a respeito dele. Não deixou de visitar suas duas peças nesse intervalo, mas eram visitas breves, e Miyuki sabia que ela tinha suas próprias preocupações.

Enfiada na oficina o dia inteiro com apenas o rapaz monocromático de companhia, ela levou muito tempo para perceber que algo de errado acontecia por toda a escola. Miya dava sorrisos cada vez maiores e mais tortos a todos, e seus colegas faziam de tudo para mantê-los em seu rosto. Ayori não se importava com isso embora gostasse de Miya. Tinha seus próprios problemas para resolver.

O treinamento de Shiro levou mais alguns dias. Ela o fizera com cada gota de talento que possuía, e ele tinha muitas funções e um cérebro como o de uma criança. Precisava aprendê-las como se aprendesse a andar. Imersa em suas próprias preocupações, estava completamente despreparada para o desespero.

A doença na verdade não a afetou demais, embora a tenha atingido mais fácil. Só fez com que abandonasse a máscara. Parou de fingir sorrisos e gentilezas. Todos eram peças. Miyuki era sua peça. Katrina era sua peça. Parou de fingir que não.

Hasano perguntou por que ainda não tinha ido buscá-las, e ela não soube como responder. Ele lhe deu mais uma ferramenta: Satoshi era um robô com o mesmo princípio de Shiro, mas era cru, sem nada extraordinário e com uma personalidade insegura. O robô-enfermeiro lhe obedeceria não importava a aviltação que pedisse, e junto a Shiro, bastariam para o que ela precisava.

Foi atrás de Katrina primeiro. Não tinha nada em mente, apenas foi.

Miya avisara-lhe com um sorriso doce que a garota estava na biblioteca. Ayori não percebeu que havia algo de errado em Miya saber quem estava procurando. Ou por quê. Sua mente estava no limite, a doença aprofundando rachaduras que já existiam.

A porta da biblioteca estava trancada. Sem precisar dar mais que um sorriso a Shiro, ele e Sato a arrombaram com um estrondo. Os dois entraram na sala, seguindo na direção da garota, que estava abaixada tentando mandar algo por um computador. Ela arregalou os olhos ao ver a relojoeira que se aproximava calmamente seguindo os robôs.

Achei você! — ela exclamou, contente.

A bailarina tentou correr, mas arremessando cadeiras em seu caminho, Shiro a tinha sob si em segundos. Usando um canivete suíço que brotou em suas mãos de repente, Katrina furou o olho esquerdo de Shiro num golpe rápido. Sob circunstâncias normais, a pessoa sangraria e Katrina teria fugido. Mas Shiro, para seu azar, não sangrava. Ele lhe tomou o canivete e empurrou com força sua cabeça contra o chão. Katrina só conseguiria enxergar as botas de Ayori se aproximando naquela posição.

— Tic-tac, seu tempo acabou.

—-------

Com Katrina desmaiada e presa, era hora de buscar Miyuki. Ela caminhou pela escola com Shiro e Sato, alheia aos gritos, alheia ao fato de que os alunos pareciam começar uma guerra própria. Um dos estudantes, o mafioso, pelo que entendera, fizera uma carnificina, e Miya unira a turma para defendê-lo. Nada daquilo importava.

Ela importava.

Foi uma surpresa agradável quando Ayori encontrou Miyuki. Ela dançava. A relojoeira se sentou para assistir, seus dois robôs parados um de cada lado de suas costas como guardas.

Os movimentos de Miyuki estavam mais graciosos do que nunca, embora não houvesse música.

A astróloga não dava sinais de que pararia, no entanto, girando e girando sobre seu palco. Seu sorriso quebrado combinava bem com o ambiente.

Miyuki dançava em cima da pilha de corpos deixada pelo mafioso. Para Ayori, não poderia haver palco mais apropriado.

Miyuki era mesmo perfeita.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Essa é a história antes dessa, que conta como Ayori conheceu Rachel: https://fanfiction.com.br/historia/749848/Despedaca-me/
O fim acabou ficando corrido, mas foi mais porque não sabemos muito bem o que aconteceu nesse ponto. Mas Katrina acabou indo parar com outro personagem, um assassino de nome Ryuu, que descobriu sobre ela ser espiã. Não faço ideia do que Ayori e Miyuki fizeram até o jogo começar.
Espero que tenham gostado, e feliz ano novo!



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "A Peça Perfeita" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.