A Peça Perfeita escrita por Kurai


Capítulo 3
Capítulo 3 - Tolice


Notas iniciais do capítulo

As palavras pro terceiro capítulo foram: lôbrego e irrefutável. Boa leitura!



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Ayori tinha um problema sério agora.

Na verdade, mais de um, mas apenas um incomodava. A peça era dela. Isso era óbvio. Mas não podia ser usada. Que bem lhe fazia uma peça perfeita, que funcionasse exatamente como precisava, mas que se recusava a cumprir seu papel na grande obra?

Ela tinha poucas opções. Desistir de tudo e deixar pra lá, como fizera da última vez. Ou achar outra peça perfeita, embora isso parecesse realmente improvável à essa altura. Forçar, correndo o risco de quebrar a peça novamente. Ou... Talvez pudesse convencê-la. Miyuki era envergonhada sobre o relacionamento confuso das duas, mas Ayori enxergava em seus olhos que a astróloga roubaria um banco por ela. Se realmente quisesse, podia convencê-la a dançar, mesmo que isso significasse revirar cicatrizes dolorosas, machucá-la além de reparo.

Era nessa opção que entrava um segundo problema.

Ayori gostava de sua peça.

Era risível que a relojoeira criasse afeição por peças, afinal, existiam para serem usadas em trabalhos e nada mais. Porém, isso a deixava relutante sobre machucá-la. Ayori não mencionou querer vê-la dançar outra vez, embora a cada noite ansiasse mais por aquilo.

Sentindo-se pressionada pela escolha que inevitavelmente teria de fazer, passou a evitar a garota. No começo, Miyuki não se incomodou; ocupava-se depois da aula ou com a tocadora de tambor. A astróloga assegurou-lhe várias vezes sobre ela, mas Ayori não se importava. Aquela peça decorativa não lhe ameaçava, mesmo que a astróloga acabasse se apaixonando. Miyuki era dela, e nem todas as tocadoras de tambor do mundo mudariam esse fato. Além do mais, já ficara com outros rapazes enquanto escapava para festas e bares. Não podia censurá-la.

Mas foi ficando mais difícil evitá-la. Ela queria saber se tinha feito algo errado. Não tinha; mas Ayori não tinha como explicar, e lhe corroía não poder mentir como gostaria. Até, por fim, perder o controle.

Ayori sabia exatamente a hora, minuto e segundo de quando deixou a máscara escorregar pela primeira vez. Às 11 horas, 32 minutos, e 55 segundos, Miyuki viu uma pontinha de si, quando gritou com ela em frustração para lhe dar espaço. Às 11h33min12s, Miyuki fez uma expressão tão dolorosa que foi a última coisa que Ayori conseguiu ver antes de se forçar a se afastar.

Às 11h56min22s, B.O.B. a encontrou no telhado. Mal se lembrava do escritor, sua mente só lhe ajudou com ‘linha’, sua peça. Tentou conversar, mas ela não estava afim, e o cortou rapidamente. Mas uma frase do escritor lhe chamou a atenção.

‘Soube que brigou com a namorada. Acho que ela superou mais rápido que você, né?’

Ayori não se importaria com isso, não fossem duas coisas importantes: acabara de ver a tocadora de tambor na praça, e essa era a hora depois da aula em que Miyuki desaparecia.

Havia alguém roubando sua peça. E fazia isso um pouquinho todo dia, sob seu nariz.

—-------

Estúpida.

Estúpida, cega, burra. Devia ter imaginado... Uma peça perfeita como Miyuki em algum momento chamaria atenção de mais alguém.

Devia não ter se deixado cegar pela pseudo-afeição que mal começara a surgir e a relojoeira agora sufocaria até a morte.

Miyuki dizia que não conseguia dançar. Não para ela. Era doloroso demais. Mas ali estava ela, do outro lado daquele vidro, rodopiando pelo salão espelhado, a pele brilhando de suor. Com outra pessoa.

Ayori não assistiu muito. Era agoniante, o argumento irrefutável de que sua lógica inicial era a correta, que peças não podem ser mais do que peças para o relojoeiro. Impedida pela raiva, não notou duas coisas antes de partir.

A primeira, que a pessoa que dançava com Miyuki dançava tão bem, se não melhor, do que a própria Miyuki.

A segunda, que ela pareceu olhar em sua direção, com um sorriso como se soubesse exatamente onde ela estivera escondida.

—-------

Miyuki não viu Ayori por muitas horas. Não era incomum, ultimamente, passar muito tempo sem falar com ela, mas normalmente a via por aí vez ou outra. E em especial hoje, precisava conversar. Não gostava do clima que ficara com aquela briga. Estava magoada, mas queria entender.

Quase não a notou deitada sobre o gramado lôbrego, oculta pela falta de iluminação daquele campo aberto onde a conhecera. Não fossem as estrelas, não a veria.

Notou que a relojoeira cochilava, e se agachou ao seu lado, observando-a dormir sem querer perturbá-la. Ayori segurava fracamente uma folha, que logo voou carregada pelo vento. Miyuki a apanhou no ar, e num impulso curioso, acendeu o celular para ver.

Ela sabia que, apesar de ser uma relojoeira, o sonho de Ayori era cantar numa banda. Não foi difícil reconhecer aquilo como uma letra de música inacabada, em inglês. ‘Eu deveria ter dito para você ir embora, porque sempre soube que não saberia lidar comigo. Mas você é difícil de resistir, quando está de joelhos, me implorando. Eu vou te derrubar; te fazer sangrar eternamente. Não consigo me impedir de te ferir, mesmo que isso me machuque. Eu não tenho asas, então voar comigo não será fácil, porque eu não sou um anjo, não sou um anjo...’

Miyuki devolveu o papel depressa. Provavelmente não deveria ter visto aquilo, mas era a primeira vez que via alguma demonstração de fraqueza da garota. E era por ela. Não soube o que sentia. Era assustador pensar que, por todo aquele tempo, a garota se contivera, se esforçara para não gritar como mais cedo, para não machuca-la. Sabia que era errado, mas... Aquele esforço tinha algum motivo. E a conclusão mais óbvia era de que o motivo era ela. Ayori estava se controlando, porque...

Porque gostava dela..?

Miyuki inclinou-se, beijando singelamente sua testa, e então se afastou depressa antes que a acordasse. Mas sorria. Gostara bastante da ideia de que Ayori gostava dela. Talvez, pudessem..?

—-------

Ayori abriu preguiçosamente um olho para observar Miyuki afastando-se. Esperou até que sumisse de vista e amassou o papel.

Não cometeria o erro de se afeiçoar novamente. Miyuki era sua peça, e agora, a usaria como tal. Sentimentos eram desnecessários.


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Notas finais do capítulo

Alguém aqui definitivamente não sabe lidar com ciúme.
A música usada é I'm Not An Angel, de Halestorm. A vocalista, Lzzy Hale, é a PP de Ayori.
https://www.youtube.com/watch?v=7GLkb-6TULk



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