Passos escrita por Nyna Mota


Capítulo 2
Passo I


Notas iniciais do capítulo

Aviso: Cenas fortes.
Boa leitura!



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Eu morava em Forks, uma pequena cidade localizada em Washington. Fora criada pela minha mãe, uma mulher inflexível e ditadora que sempre me treinou pra ser A MELHOR, mas tudo que eu queria era ser eu mesma.

Papai morreu quando eu tinha 12 anos. Lembro-me até hoje. Era uma tarde fria, papai estava de plantão da delegacia onde trabalhava. Vivíamos nessa época, uma onda de assaltos muito grande, alguma gangue vinda de Oklahoma, mas que ninguém conseguia encontrar onde se escondiam, é o que dizem as velhas fofoqueiras desta pequena e infeliz cidade.

Lembro-me de sempre esperar por ele, pra dançar pra ele. Pra ver o sorriso por baixo do olhar cansado. Pra abraça-lo e sentir aquele cheiro de menta, e aquele mar de chocolates que me olhavam com adoração.

 Papai sempre chegava no finzinho da tarde, me ajudava com a lição de casa, e então eu dançava pra ele enquanto mamãe fazia o jantar. Nessa época ainda era a mamãe. Eu tinha aprendido um passo novo, o Plié, queria mostrar pra ele, mas ao invés do papai veio outro policial.

— Renée, eu sinto muito, houve troca de tiros, aquele gangue. Merda Renée! Atingiram ele, foi tudo tão rápido.

— Não! Não pode ser verdade. O Charlie não Billy. - Mamãe chorava, gritava. Billy chorava e tentava acalma-la.

Tudo que eu consegui pensar era que papai nunca mais me veria dançar, e eu não queria mais dançar, eu queria meu pai, em segurança.

Naquele dia, eu perdi meu pai e minha mãe. Ela nunca mais foi a mesma.

O dia do enterro foi o pior dia da minha vida, Charlie recebeu todas as homenagens possíveis, todas as honras por defender Forks daquela gangue maldita, e toda aquela ladainha por ser policial durante a última década.

A cada palavra eu queria gritar, queria chorar, mas Renée havia dito que não era pra fazer escândalo, que era pra me conter. A cada minuto eu me senti morrer um pouco mais. Doía, eu me sentia sozinha, eu tinha perdido meu herói.

Todos na escola me encaravam com pena, mas com aquilo eu conseguia lidar, com o que não sabia lidar era com minha mãe, ou o que sobrou dela.

Desde que aprendi a andar eu dançava balé, mamãe era bailarina, mas aos 18 anos, no que poderia ter sido o auge da sua carreira, por um equívoco, ela engravidou de mim, palavras dela.

Deixou a dança de lado por mim, e Charlie com seus 20 anos conseguiu uma vaga na delegacia, eles se casaram e se amaram. Mamãe começou a dar aulas de balé, e eu era sua aluna preferida.

Nossa vida era perfeita, ou tão perfeita quanto poderia ser, até o dia que papai morreu, então passei a ser apenas sua aluna, não mais sua filha.

Mamãe perdeu o brilho no olhar, perdeu a vontade de viver. Os primeiros meses foram os piores. Eu sentia falta dele, e não tinha mais ela. Ela apenas chorava. Várias noites eu que a embrulhava no sofá da sala, enquanto ela esperava um homem morto voltar.

Então ela passou a beber e me treinar, eu odiava dançar depois da morte do Charlie, mas era o único momento com minha mãe. Então eu o aproveitava. Era o único instante que ela não estava bêbada, que se parecia um pouco com a mulher apaixonada que havia me criado até o fatídico dia.

Como estava enganada ao achar que aqueles bons momentos durariam. Renée não bebia antes de me treinar, mas durante o treino ela não era uma mãe, era dura, inflexível, não aceitava erros, queria perfeição, e eu era apenas uma jovem querendo ser amada.

—Isabella, como você pode errar algo tão simples quanto o croise devant! Nem parece que cresceu dançando balé.

— Graça e leveza Isabella!

— Sorria, ninguém precisa ver essa sua expressão morta.

— Você engordou, assim não vai caber na roupa para a apresentação de inverno.

Nunca houve um elogio, uma palavra de alento, apenas críticas e mais críticas.

Foram longos 5 anos.

Aos 15 deixei de chama-la de mãe, passei a chamar de treinadora ou Renée. Ela não se importou. Os únicos momentos em que estava sóbria era durante os treinos e apresentações. O restante do tempo era uma bêbada qualquer.

Quando tinha 16 anos, o assassino do Charlie foi solto, estava em regime condicional por bom comportamento. Usava tornozeleira eletrônica, e o meu pai estava morto.

Renée surtou com a notícia, mais uma vez Billy foi o mensageiro.

— Renée, como está?

— Está tudo ótimo Billy.

Mais uma vez ela estava bêbada. Eu estava na cozinha preparando o café para a visita. Não podia ver Billy, mas pude ouvir a inflexão em sua voz.

— Renée...

— O que veio fazer aqui Billy? - Ela cortou a fala dele, prevendo mais uma das conversas sobre se tratar devido a bebida. Ele suspira alto exasperado.

— Não trago boas notícias. Disse de modo triste.

— E quando você as trouxe Billy? Dá última vez foi a morte do meu marido, o que vai ser dessa vez, minha filha morreu?! - O deboche era claro em sua voz. Era a primeira vez que ela me chamava de filha em anos.

— Sam vai ser solto Renée, colocado em regime condicional por bom comportamento.

Sam era o assassino do meu pai. O jovem burro, que se enfiou em uma gangue por se achar maior que a lei, maior que o mundo, e matou meu pai. Um bom policial, um bom marido, o melhor pai, o meu pai.

Não me recordo bem o que houve, sei que Billy foi expulso da nossa casa. Seu único crime foi sempre ser portador de más notícias.

Aquele dia ela bebeu ainda mais, quebrou copos, e toda nossa sala de estar, me tranquei no quarto pra não ser vítima da sua ira, e sofrer em silêncio minha dor por aquela injustiça. Sam solto, e meu pai preso dentro de um caixão. Morto.

No dia seguinte encontrei-a envolta em vômito, desmaiada no chão. Liguei pra emergência, como uma boa filha faria. Renée tinha tido uma crise de cirrose.  Duas semanas internada, com minhas visitas proibidas, mesmo eu sendo sua filha.

Quando recebeu alta e voltou, nada mudou, ou melhor, tudo piorou.

Eu era culpada de ter salvado sua vida, ela era covarde demais para se matar então aquele ato inconsciente tinha sido sua grande chance, e eu a impedi de se reunir com seu amor ao chamar a emergência.

Ela me culpou. Os treinos pioraram.

Foi nesse momento que eu tive a constatação de que minha mãe tinha morrido e sido enterrada 3 anos atrás junto com meu pai.  Mais uma vez eu chorei, eu fique de luto, eu tentei falar com ela, que eu precisava dela. Mas ela não era minha mãe, era minha treinadora.

Foi a primeira vez que pensei em me matar.

Nesse tempo entrei pro High School, estava com quase 16 anos, não tinha amigos, tinha alguns colegas e conhecidos, ninguém próximo o bastante para saber o que se passava comigo.

Então conheci Rosalie Halle, uma loira estonteante e muito foda-se pra vida. Eu amei aquilo nela, Rose era quem eu queria ser, era forte destemida, tinha pais que amavam, mesmo sendo separados.

Nossa amizade começou do nada, em um debate sobre o suicídio em uma das aulas, em que ela brigava arduamente contra, que as pessoas precisavam de tratamento, e os demais alunos debochando. Lembro do brilho dela, da vontade dela de salvar as pessoas de si mesma. Eu estava concentrada no assunto, e vi quando ela me olhou e me viu.

Não a garota que todas viam, inteligente mas tímida e quieta, ela reconheceu ali a alma de uma suicida.

A partir desse dia Rosalie se tornou minha melhor amiga. Sentava-se comigo no almoço, nunca me pressionava pra falar sobre meus problemas, me fazia rir. Mas no fundo ela sabia o que eu queria. Tudo começou com um: Isabella, posso me sentar com você hoje?

Lembro de fazer careta pelo Isabella, me lembrava o modo como a treinadora me chamava, ela não entendeu e seu semblante entristeceu,

— Cl-claro. Gaguejei. Mas me chame de Bella.

Nunca esperei Rosalie Halle, presidente do grêmio estudantil, líder de torcida, a menina mais popular da escola olhar uma segunda vez pra mim, a bailarina solitária. Ela se tornou minha melhor e única amiga.

Aos poucos passei a confiar nela, e ela em mim. Estávamos sempre juntas, ela era meu oposto, então do nada começaram a correr boatos de que erámos lésbicas.

Adolescentes são tão ridículos, tão infantis. Aquilo não abalou Rosalie, essa tinha uma auto confiança de dar inveja na miss universo, mas a mim, abalou. Doeu.

Não que eu me importasse de ser ou não homossexual, mas o fato de me olharem com deboche, de ser motivo de chacota, e isso chegou aos ouvidos da treinadora.

— Isabella, eu não te criei pra ser uma aberração.

Eu não entendi, até hoje não compreendo.

— Mas treinadora, eu não sei do que se trata.

— Ah não sabe. Você e aquela lésbica nojenta, minha filha não vai ser uma aberração Isabella.

Então eu entendi, ela achava que eu tinha algo com Rose. Nunca soube como essas fofocas foram parar no ouvido dela, mas a única parte que se ateve a minha mente foi o minha filha.

Era a segunda vez entre alguns meses que ela me chamava assim, mas nenhuma das vezes me fez sentir algo bom.

— Você vai se afastar da Rosalie, você não se tornar isso, vai ser uma grande bailarina.

Foi a primeira vez que eu disse não pra Renée, e a primeira vez que ela me bateu.

Um tapa no rosto ao ouvir o sonoro não dito com firmeza, mais alguns enquanto eu dizia que não me afastaria da minha melhor amiga, no fim, ela me largou jogada no chão enquanto eu chorava, e foi beber. Era a única coisa que ela sabia fazer, exceto dançar.

No outro dia fui pra escola, com uma energia renovada dentro de mim, apesar da surra, eu havia dito não, de certa forma era libertador.

Rosalie viu algo em meus olhos, ela sabia que algo tinha mudado, que algo tinha ocorrido, nunca contei a ela da surra que levei pela nossa amizade, o dano era mais sentimental que físico.

Durante todos aqueles anos eu cuidei da casa, eu alimentei e tratei da Renée, era meu papel de filha, sempre boas notas, sempre a melhor bailarina, mas nunca a filha.

A única coisa que Renée via em mim era seu antigo sonho de ser uma grande bailarina, de brilhar nos teatros do mundo todo, de ir pra Rússia.

Rose era meu ponto de apoio, e tinha uma pequena grande queda pelo capitão do time de basquete da escola. Royce King. O tipo idiota e nada inteligente. Não gostava dele, ele me causava uma sensação ruim de desconfiança, e eu estava certa.

Rosalie e ele começaram a namorar, ela nunca me abandonou, nunca deixou sua melhor amiga de lado.

Rosalie perdeu sua virgindade com ele, ela estava toda encantada, foi em um hotel, em Port Angeles, com direito a pétalas de rosas e tudo mais.

Royce vinha de família rica, donos do único banco de Forks. O que o fazia se achar no direito de humilhar e pisar em qualquer um. Ele nunca me tratou mal por ela, mas sempre me olhou com desdém.

Uma semana após a noite dos sonhos com ele, teve uma festa, na casa do Tyler, Rose não quis ir, ficou comigo, noite de meninas, o que incluía sua mãe. Eu adorava a mãe da Rose, Lilian Halle, era uma mulher incrível e forte que sempre me tratou como filha, nunca perdeu o bom humor ou a alegria, mesmo após o divórcio por conta de uma traição, não deixou a filha de lado, sempre foi presente e cuidou de Rose, e de uns tempos pra cá de mim.

Eu podia sair, Renée sempre estava muito bêbada mesmo pra notar qualquer coisa.

Nunca gostei das festas da escola, nunca me enturmei muito com o pessoal, então foram poucas as vezes que saia pra me encontrar com eles. E aquela noite foi uma das raras exceções.

Por volta das 23 horas daquela sexta feira, Rose resolveu que iria a festa, e me arrastou junto.

Assim que chegamos na festa, vi o Mike, por quem eu tinha uma queda, fazia parte do jornal da escola, estilo nerd, mas ainda sim popular, fofo, cara de bebê, olhos azuis, sempre me tratou bem.

Logo que me viu, veio em minha direção e ficou conversando comigo, sorrindo, flertando, eu nunca tinha dado um beijo, sempre tão tímida, sempre tão na minha, sofrendo em silêncio.

Do nada ele ficou me encarando, como se nada no mundo existisse, como se não estivéssemos no meio de uma festa, senti que estava corando e abaixei o olhar, ele levantou meu rosto delicadamente, e se aproximou, encostou seus lábios nos meus de forma leve, ainda me olhando, meu coração estava acelerado, eu sentia um frio na barriga, fechei meus olhos, para apreciar aquele pequeno instante bom, então ouvi o grito da Rose, abri o olhos e fui correndo atrás dela, eu jamais trocaria um momento pela pessoa que esteva ao meu lado desde que me conheceu, me apoiando e segurando minha mão quando mais precisei.

Royce tinha traído minha melhor amiga.

Nunca tinha visto Rose perder a autoconfiança, nunca há havia visto chorar de forma tão sofrida. Então fiz o que podia fazer como melhor amiga. Voltamos pra casa dela, no carro da Lily, que a mesma havia emprestado para irmos a festa, eu fui dirigindo, Rose havia me ensinado.

Tomamos sorvete, enquanto ela chorava e narrava cena lamentável, do Royce se pegando com a Kate nos fundos da casa do Tyler.

Kate era uma das líderes de torcida, uma das vadias da escola, pelo que a a mesma falou, ela e Royce estão juntos há muito tempo, desde antes da Rose e ele começarem a namorar.

Rose passou o fim de semana arrasada, eu fiquei com ela o fim de semana todo, fazendo meu papel de melhor amiga, muito sorvete, filme de romance, e maldizendo os dois.

Lilian nos fez companhia boa parte do fim de semana, cuidando da filha de coração partido, por um instante senti inveja daquela mãe tão presente, mas depois percebi, que se eu precisasse, Lily estaria ali por mim também.

Mas vejam saber e compreender a profundidade disso é algo totalmente diferente.

A chegada do domingo me preocupava pois após ele viria a segunda, e com ela a escola e tudo o que aconteceu, mas ao contrário do que imaginava, naquela segunda cedo, Rose acordou renovada, com uma força gigante, e de cabeça erguida pisou na escola sob o olhar de todos, mas sem jamais abaixar a cabeça.

Era aquilo que admirava, amava e invejava na minha melhor amiga, aquela força, aquele brilho, aquela vontade de não se deixar abater.

Ela prometeu a si mesma que acharia um homem merecedor do amor dela, que ela jamais desistiria do amor. E ali a amei ainda mais pois apesar do sofrimento ela ainda acreditar no amor, acreditar que em algum lugar existia um homem que merecia o amor dela.

Eu não suportava mais os treinos, não suportava mais olhar no rosto da Renée, doía, e me fazia querer uma mãe que ela nunca seria.

Estava decidida a colocar um ponto final nos treinos, eu não queria mais ser bailarina, eu deixei de amar aquilo, assim como deixei de querer ficar perto da minha mãe, cruel, eu sei, mas eu não sabia fazer diferente.  

Só não sabia como dar uma basta naquilo.

Com a chegada de Setembro, por conseguinte meu aniversário, eu estava ansiosa, mais um ano e teria a tão sonhada liberdade.

Rose estava empolgada com meu aniversário, e eu com a expectativa do próximo.

No próximo outono, estaria com meus recém-completos 18 anos, esperava estar bem longe de Forks, em algum universidade, custeada pela pensão por morte que eu recebia do meu pai, bem como a indenização paga pelo Estado, por ter sido morto em serviço. Era assim que Renée e eu sobrevivíamos. Eu sabia que boa parte desse dinheiro estava depositada em uma conta em meu nome, que só poderia ser usada pra fins universitários, ou quando eu atingisse a maioridade.

Rose queria por que queria fazer uma festa, eu não queria, ela venceu meus protestos, prometendo algo simples.

Ao chegar a casa dela para jantar, naquele 14 de Setembro senti um frio de barriga de empolgação, depois de 4 anos, comemoraria meu aniversário. Rosalie e a mãe moravam em uma casa bonita, simples mais bonita, a sala estava toda enfeitada com lilás e branco, numa mesa um bolo de dois andares também lilás e uma vela com o número 17, alguns conhecidos da escola, incluindo Tyler e Mike estavam ali.

Meus olhos se encheram de lágrimas pelo que minha amiga fez por mim, aquele pequeno gesto era tão importante e ela não se dava conta disso, nem eu havia me dado conta disso, até aquele momento.

Uma música pop tocava baixinho, afinal não era uma festa que incluía bebidas e pegação, era uma comemoração simples, algo para não para não passar em branco, mas que me aquecia.

Lily me achou no meio dos jovens em sua casa, me abraçou apertado.

—Feliz aniversário filha, que você ainda tenha muitos anos de vida, que possa realizar diversos sonhos e ser plenamente feliz.

Seus olhos azuis e sinceros como o de Rose estavam cheios de lágrimas, e percebi que eu também chorava quando ela secou algumas lágrimas que escorriam sem querer. A abracei mais uma vez, segurando o embrulho que ela havia me entregado, com a intenção de abrir depois.

—Abra agora querida. Pediu me com a doçura de sempre.

Fiz como ela pediu, dentro havia um álbum de fotografia, quase intocado, exceto pela primeira página, onde havia uma foto minha, de Rose e sua mãe, em alguma das noites que dormi ali fugindo da bebedeira de Renée.

—É pra você eternizar os momentos de algum forma querida, tire fotos, guarde as lembranças, e lembre-se, cada passo dado é importante, e nos leva a caminhos desconhecidos mas as vezes bons. Quando forem ruins, você virá até mim, e eu te colocarei em meu colo até a dor passar, assim como faço com minha filha de sangue, farei com você, minha filha do coração.

É assim que é ter uma mãe, pensei comigo mesma. Um sentimento de plenitude, de estar segura, inteira.

E assim me senti boa parte da noite, tirei várias fotos, mas a que anexei no álbum sobre aquele dia, foi uma minha e da Lily, que Rose tirou sem que víssemos. Ela me abraçava, e uma lágrima escorria pelo meu rosto, mas um momento eternizado, e sem saber mais um passo dado.

Tudo estava perfeito, até Renée aparecer, bêbada, o que não era nenhuma novidade, ela gritava que eu era a bailarina dela, que tinha que dormir pra estar perfeita pro treino, que tinha que treinar, que estava na hora do treino, lembro de chorar e implorar que ela parasse, lembro de sentir vergonha, dor, revolta. Sabia que ela não iria embora, que me envergonharia mais e mais e estragaria uma noite que tinha tudo pra ser perfeita.

Então a peguei pelo braço e a levei embora. No caminho ela gritava: minha bailarina perfeita, minha! Ninguém vai rouba-la de mim como tomaram meu Charlie.

Eu queria me sentir feliz por ela ter se preocupado comigo, mas não, ela só queria saber da bailarina, do balé, da perfeição, mesmo alcoolizada, era tudo que ela sabia e pensava, então odiei ainda mais o balé.

Esperei ela dormir, meu ódio pelo balé chegou ao ápice, coloquei fogo em todas as sapatilhas, todos os colãs, laços, tudo que dizia respeito aquela dança maldita.

Eu jamais seria a bailarina perfeita dela, e ela jamais seria minha mãe

Na hora do treino, como esperado ela estava sã, ou tão sã quanto poderia estar após a bebedeira de ontem. Nenhum pedido de desculpas, nenhum olhar, sequer um feliz aniversário pela data anterior. Apenas:

— Isabella, cadê suas roupas de treino, e por que diabos está vestida de jeans e all star?

Havia chegado a hora.

— Eu não vou mais treinar.

Não foi um pedido, uma lamentação, nenhum pingo de dúvida. Uma afirmação com toda minha convicção, eu estava cansada de ser apenas a bailarina.

— Como assim não vai mais treinar!? Ela não falava. Ela gritava.

— Eu não vou mais dançar Renée, eu nunca mais colocarei uma sapatilha de balé, nunca mais pisarei em um palco. Eu não vou mais dançar.

Pontuei de forma clara, orgulhosa por não fraquejar ante ao olhar colérico dela.

Decepção, raiva, ódio. Nenhum tipo de aceitação. Me resignei sabendo que aquilo era o que receberia, mas não esperava violência.

Tapas, socos, chutes, ela me sacudia e gritava que eu acabei com o sonho dela, eu acabei com a vida dela. Que nem pro balé eu servia. O choque, a surpresa me fizeram não reagir. Lembro de tropeçar, minha cabeça doer, e escuridão.

Eu agradeci pela escuridão, ela acabava com a dor física e a emocional, era um alento pra uma alma cansada. Um alívio pra dor, percebi que na escuridão nada doía. Acordei ainda no estúdio de balé que tínhamos em casa. Levantei devagar.

Ela não estava lá.

Minha cabeça doía pela pancada que recebi ao cair, e ainda sim ela não ficou lá. Ela me deixou sozinha, desmaiada, sequer ligou pra emergência. A dor do abandono me surpreendeu. Me surpreendeu ainda esperar algo dela.

Então me lembrei da escuridão, do alívio de não sentir, de não ver, eu queria aquilo, precisava daquilo, a escuridão era o único alívio que eu poderia ter.

Eu não aguentava mais, precisava de algum jeito fazer aquela dor sair.

A sensação de incompetência, de vazio, de decepção. Eu nunca acertaria, não importa o que fizesse, como fizesse, eu sempre seria uma decepção. Eu sabia das consequências daquele ato, mas precisava fazer aquilo, precisava fazer a dor sair, deixar de ser uma decepção.

Eu sabia o que tinha que fazer. Sabia das consequências, mas eu precisava daquilo, era minha única alternativa.

Era errado, mas que escolha tinha? Quem eu tinha?

Rose...minha mente me alertou. Apesar de amar minha amiga, nada era suficiente para sanar a dor do abandono, da agressão, o frio. Fazia tanto frio. Eu sabia que era algo interno, que a noite estava com um clima bom, era uma linda noite. Eu podia ver as estrelas da janela, uma linda e estranha noite com o céu estrelado. Eu amava à noite, e agora amava a escuridão.

Rose estava ocupada hoje, um primo, filho do irmão da sua mãe veio na cidade para visita-la, eu sabia que ele chegaria hoje, após anos sem ver a prima querida. Um sabor amargo veio em minha boca.

Sai do estúdio devagar, Renée estava na sala, bebendo mais uma vez, nem sequer olhou quando passei, entrei no banheiro dela, onde sabia que havia alguns remédios pra dormir, depois passei no quarto dela, onde sempre havia uma garrafa de Whisky.

Entrei no meu quarto e tranquei a porta. Nada nem ninguém poderia me impedir, com Rose estaria buscando o primo em Port Angeles eu estava só.

Meu quarto que um dia fora tão recheado de boas lembranças, com ursos, fotos com meus pais, painel com bandas favoritas, hoje só causava a lembrança do abandono. Senti as lágrimas escorrendo antes de perceber que chorava. Sentei no chão do quarto e olhei pros remédios, pra bebida.

Era o que eu queria, o que eu precisava. Alívio. A escuridão. Lá não havia sofrimento. Não havia o abandono.

Tremendo coloquei um comprimido na boca, e tomei o primeiro gole da bebida. Engasguei com o ardor do álcool, mas me forcei a engolir.

Meus olhos ardiam, meu coração batia acelerado. Precisava ser corajosa, ou covarde, que seja. Precisava agir.

Mas antes precisava pedir perdão por desistir.

Uma mensagem, do meu celular quase nunca utilizado, com poucos dizeres.

Para Rose:

De Bella:

15/09/2015 – 09:35:52

 “Eu te amo. Espero que me perdoe. Eu não consegui ser mais forte”

Quando apareceu que a mensagem havia sido enviada, coloquei vários comprimidos na boca e engoli com o Whisky.

Ardia, meu estômago pegava fogo.

Meu coração estava acelerado. Eu sentia frio, e muito calor. Queimava. Ouvi um som ao fundo, mas não sabia precisar o que.

Minha mente estava turva, tudo girava. Meu estômago ardia. Eu queria vomitar.

Eu estava morrendo. A escuridão estava vindo, eu podia sentir.

Um sorriso débil veio ao meu rosto. “Eu consegui” sussurrei baixinho.

Deixei a escuridão me tomar. E foi assim que eu morri.

Ou, que eu pretendia ter morrido.

Tudo estava confuso, me sentia fraca, meu estômago doía. Garganta seca. Lembro-me de vultos azuis e verdes, enquanto entrava e saia da inconsciência.

A morte é assim? Estou morta?

Um bipe irritante ao fundo me incomodava. Minha garganta seca implorava por água.

Não era pra morte doer. Não era pra incomodar. Era pra ser alívio e apenas escuridão.

A escuridão me tomou mais uma vez.

— Bella porque fez isso, porque tentou se matar.

Rose soluçava, próximo a mim.

Então eu não tinha conseguido. O Pensamento me deprimiu. Ainda ia doer. Ainda seria vazio.

— Filha fica boa logo, nós iremos pra casa, daremos um jeito, você não está só.

Era a voz de Lily, tão amável, tão mãe. O bipe ficou mais rápido, alto e irritante.

— Vocês precisam sair.

O choro da Rose ficou mais alto e me afundei na escuridão mais uma vez.

Ao abrir meus olhos a claridade incomodou. Pisquei algumas vezes até me acostumar com a onda de branco que me envolvia, vi a mãe da Rose sentada lendo no pequeno sofá do quarto.

Ao me olhar ela sorriu, um sorriso verdadeiro, cheio de amor e carinho, e havia lágrimas, alívio.

—É bom te ver de olhos abertos querida.

Ela se aproximou e me abraçou. O choro há muito guardado saiu desesperado. Alto, com soluços.

Era o som da dor.

Mas além da dor percebi que eu tinha alguém, não só a lily, eu tinha a Rose e tinha à mim, eu tinha algo pelo que levantar todos os dias, eu precisava seguir, primeiro pra não ser como ela, segundo porque a vida tinha mais a me oferecer.

O primeiro passo é entender que apesar da dor, vale a pena viver.


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Notas finais do capítulo

Hey girls, estou muito feliz de ter postado, e muito feliz de ver vocês acompanhando!
Lola e Chloe, nunca vou me cansar de agradecer por me incentivarem!
Devo postar de novo no próximo domingo, então até lá!
Obrigada por acompanharem!
Beijinhos.



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