Titanomaquia escrita por Eycharistisi


Capítulo 70
LXVIII




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/742158/chapter/70

Lithiel não desfrutava de uma refeição decente desde que saíra da colónia, quatro dias atrás, portanto, estava para lá de ansiosa por espetar os dentes em qualquer coisa comestível. Infelizmente, para seu grande desgosto e desespero, Nevra não pretendia deixá-la ir fosse onde fosse enquanto não acertasse a troca de favores entre eles. O vampiro dissera que iria interrogar a doppelganger com o elixir da verdade que desviara do interrogatório de Miiko e tratou de cumprir a promessa assim que nos instalámos no quarto de Lee. O Mestre da Sombra queria certificar-se de que Lithiel não mentira no que dissera aos outros, por isso, fez-lhe as mesmas perguntas que a Sacerdotisa e mais algumas. Por entre resmungos cada vez mais mal-humorados, Lithiel acabou a relatar em detalhe o nosso tempo na colónia, as nossas ideias para o acordo entre titãs e faeries e a nossa viagem à Terra. A sua visão dos acontecimentos era até bastante interessante, principalmente a partir do momento em que ela se apercebera de que havia algo de errado comigo, mas eu não conseguia concentrar-me no seu discurso. Em vez disso, dava por mim a mirar a ninfa profundamente adormecida.

Era difícil acreditar que Lee estivera às portas da morte naquela mesma tarde. Em pouco mais de uma hora, ela recuperara o equivalente a dois ou três dias de recobro: os tremores tinham cessado, a sua respiração estabilizara e até os hematomas estavam a desaparecer bem diante dos meus olhos. Não sabia se aquela recuperação acelerada se devia a um possível poder curativo das ninfas, aos cuidados de Ezarel, ao sangue de Nevra ou a uma combinação dos anteriores, mas era verdadeiramente impressionante… tão fascinante que eu não conseguia desviar o olhar!

As primeiras estrelas começavam a piscar no céu quando Nevra finalmente terminou de questionar Lithiel. Eu acabara por não ouvir nem metade do relato da doppelganger, mas, avaliando pela prontidão com que o vampiro a autorizou a sair do quarto, presumi que não tinha encontrado nenhuma mentira que precisasse ser esclarecida. Ainda bem, porque o mau humor de Lithiel estava prestes a atingir níveis críticos…

— Tu também deves estar com fome — Nevra disse na minha direção, levantando-se enquanto uma doppelganger esfaimada marchava para a porta — Eu vou buscar qualquer coisa para comeres…

— Eu posso ir com a Lithiel, não precisas de te incomodar com isso — aprontei-me, levantando-me também.

Nevra torceu levemente o nariz.

— Eu… não sei se isso será boa ideia, Eduarda.

— Porque não?

— Só… não me parece seguro — disse num meio murmúrio antes de acrescentar rapidamente — Além disso, um de nós terá de ficar aqui a tomar conta da Lee e acho que será melhor se fores tu. Ela claramente confia mais em ti do que em mim…

Eu trinquei o lábio inferior, hesitando. Nevra estava muito provavelmente certo, mas isso não diminuía o meu sentimento de culpa; o sentimento de que estava a dar-lhe uma carga de trabalho desnecessário. Ele já cuidara tanto de mim… muito mais do que a pessoa que destruíra a sua vida merecia…

Um toque morno na minha bochecha desviou-me dos meus pensamentos a tempo de impedir que os meus olhos se enchessem de lágrimas. Sem que eu percebesse, Nevra colocara-se diante de mim e poisara a mão no meu rosto, virando-o para o seu. Eu, todavia, desviei o olhar para o lado, incapaz de encará-lo.

— Ouve, não te preocupes com os outros faeries — pediu num tom baixo e suave — Vai ser difícil, mas eles vão acabar por te aceitar. Até lá, não vou deixar que nenhum deles te faça mal.

Eu trinquei o lábio com mais força e sacudi levemente a cabeça.

— Não sei se… mereço… Tu estás a fazer tanto por mim e eu…

— Para — ralhou ele, dando-me um piparote na testa. Eu soltei um pequeno queixume e lancei-lhe um olhar ressentido, enquanto esfregava a zona atingida com os dedos — Não vou deixar que continues a martirizar-te e menosprezar-te dessa forma. Quantas mais vezes terei de repetir que o que aconteceu em Eel não foi culpa tua? O titã iria encontrar uma maneira de invadir e destruir a cidade, fosse de que maneira fosse, e nunca houve nada que pudesses fazer para o impedir. Não. Foi. Culpa. Tua.

— Mas eu… — tentei retrucar, mas Nevra poisou um dedo sobre os meus lábios para me silenciar. Baixou o tom de voz ao continuar:

— Mesmo não sendo culpa tua, estás a fazer o que podes para nos compensar e é por essa razão, entre outras, que mereces tudo o que eu tiver para te dar. Eu não me importo de ser o teu guardião, Eduarda. Não me incomoda cuidar de ti. Muito pelo contrário, zelar pelo teu bem é quase… instintivo — o dedo sobre a minha boca deslizou pela minha bochecha e a ternura no olhar do vampiro fez o meu coração palpitar — Não devias já saber quão importante és para mim?

— Eu… eu só não quero sentir que te estou a explorar — confessei rapidamente — Gostaria de compensar-te… de alguma forma…

O olho prateado do vampiro escureceu enquanto descia lentamente pelo meu rosto, fixando-se nos meus lábios. O canto da sua boca levantou-se num pequeno sorriso torto.

— Hum… Pensando bem, não me importaria de receber uma pequena compensação — murmurou num tom quente que eu conhecia muito bem.

A minha vontade era repreende-lo por estar a pensar em tolices num momento tão delicado como aquele, mas, em vez disso… deixei escapar um risinho pelo nariz. Era impossível ficar irritada com ele quando, na realidade, estava a ser assolada por uma onda de nostalgia. Receber um galanteio dele era quase como… quase como regressar a tempos mais felizes e pacíficos. Era como recuperar um pouquinho de normalidade. Era como um sinal, o primeiro sinal, de que tudo iria ficar bem…

— Vamos pensar nessa compensação quando voltares com a minha comida, então — decidi, tentando, sem muito sucesso, conter um sorriso divertido.

Nevra atirou a cabeça para trás e soltou uma pequena gargalhada. O som, tão leve e puro, pareceu derreter algo dentro de mim, livrando-me de um peso que eu nem me apercebera que suportava até ser substituído por aquela delicada onda de calor. Não sabia o que era, mas não queria que terminasse. Queria que Nevra continuasse a rir. Queria que ele ficasse ali. Queria…

— Não vou demorar muito — garantiu o vampiro, arrancando-me do meu enlevo — Não saias daqui, está bem?

Atarantada pelos meus próprios pensamentos, limitei-me a assentir. Nevra dirigiu-me um último sorriso, fez-me uma rápida carícia no queixo e encaminhou-se para a porta. Eu inspirei fundo quando fiquei sozinha, tentando acalmar-me.

Aquela não era a primeira vez que Nevra despertava sentimentos que me deixavam a fervilhar e em conflito comigo mesma. O motivo da discórdia, contudo, não parecia ser mais o mesmo… O problema já não era Ashkore, nem o que eu acostumava sentir por ele. A bem da verdade, o titã fora a última coisa em que eu pensara e a pequena e tardia pontada de culpa que só naquele momento se fazia presente era tão diminuta que se tornava irrisória. Não, o problema já não era o titã. Desta vez, o meu dilema… relacionava-se com o sucedido em Eel.

Não seria hipócrita da minha parte nutrir sentimentos românticos por Nevra depois de ter destruído a sua casa e provocado a morte dos seus amigos? Será que eu tinha o direito de receber e retribuir os seus sentimentos…?

O barulho da porta a abrir-se de rompante trouxe-me de volta à realidade. Dei rapidamente meia volta, sobressaltada, e deparei-me com o Diretor da Absinto parado na ombreira.

— Ah, estás aqui — constatou num tom inexpressivo antes de passar por mim para se aproximar de Lee — Como é que ele está?

— N-não sei… — respondi, desorientada com a sua aparição repentina. Será que nunca o tinham ensinado a bater à porta? — Diria que está na mesma…

Ezarel colocou-se ao lado da cama da ninfa antes de se curvar para examinar o rosto adormecido mais de perto. Levantou uma mão que parecia ter como destino a testa de Lee, mas voltou a recolhe-la com um movimento brusco assim que os seus dedos roçaram nos curtos cabelos azuis. Estranhei o gesto, mas, antes que pudesse fazer alguma pergunta, Ezarel endireitou-se.

— Ele mostrou algum indício de estar a despertar? — inquiriu sem desviar o olhar de Lee.

— Não, acho que não.

— Hum… Não lhe devia ter dado um sedativo tão forte. Parece que a Miiko terá de adiar o interrogatório dele para amanhã…

— O Lee não vai fugir — defendi — Ela não precisa de ter pressa.

Ezarel soltou um risinho irónico e, finalmente, desviou o olhar da ninfa para o poisar em mim.

— E tu, como te sentes?

— Bem — respondi sucintamente.

— As botas não te magoam nos tornozelos? — insistiu, apontando com o queixo para os meus pés.

— Ah, não… Doeu um pouco quando me calcei, mas passou rápido… O Nevra disse-me que foste tu que fizeste os curativos novos quando desmaiei — acrescentei num misto de constatação com pergunta.

— Sim, embora não tenha entendido porque raio decidiste tirar os pensos para começo de conversa.

— Tirei-os para tomar banho.

— Mal feito. As feridas estão demasiado vivas para isso, tens de as manter cobertas. Ou achas que não vais apanhar uma infeção só porque és uma titânide?

— Bem, eu curo-me mais rápido que os faeries — lembrei-o, levantando uma sobrancelha.

— Com a Maana de Úrano e Gaia, talvez, mas, neste momento, não estás sequer a sarar mais rápido do que um humano. Francamente, se nem o Nevra te faz produzir Maana suficiente para te curares, como é que vais lutar na próxima batalha?

— Não te preocupes, tenho um mês para resolver esse problema.

— Na verdade, não, não tens — contestou o elfo — A viagem até Nuum demorará um mês, mas o próximo confronto com o exército do titã poderá vir a dar-se muito antes disso. Não te esqueças que estamos a encaminhar-nos para aquele que acreditamos ser o próximo destino do titã. Pode acontecer de nos cruzarmos no caminho…

Eu senti um arrepio descer-me pela nuca abaixo antes de ir estrangular o meu estômago. Ezarel não estava errado. Aquilo poderia realmente acontecer. É certo que os faeries estavam a preparar-se para partir primeiro, mas Ashkore e os seus adeptos tinham montadas que facilmente nos alcançariam a meio da viagem. E isso seria um desastre a tantos níveis que ficava com tonturas só de imaginar…

— Explica-me uma coisa — pediu subitamente Ezarel, afastando-me dos meus pensamentos — O Leiftan disse-nos que os titãs produzem Maana através dos sentimentos dos outros faeries, mas como é que isso se processa, exatamente? O que é mais importante, a quantidade de adoradores ou os sentimentos deles por ti? E como é que os faeries te transmitem esses sentimentos? Através do pensamento? Através do toque? Ambos? Qual é a proporção entre…?

— Espera, espera, calma — pedi, perdida no meio de todas aquelas perguntas — Eu não estou a perceber… Porque queres saber tudo isso?

Ezarel encolheu os ombros.

— Curiosidade científica.

— Ah, estou a ver… Sou a tua titânide de laboratório — concluí com desagrado.

— Exatamente — concordou ele, abrindo um grande sorriso.

Eu revirei levemente os olhos, arreliada, mas decidi esclarecer as suas dúvidas. Afinal, no lugar dele, eu também estaria curiosa…

— Bem, a produção de Maana depende de muitas variáveis e tu referiste praticamente todas elas. O afeto dos faeries pode, sim, ser transmito através do pensamento ou do toque, mas o segundo método costuma ser mais… rápido e eficaz. A intensidade dos sentimentos dos faeries também é um fator relevante, mas não é necessariamente mais importante do que a quantidade de adoradores. São apenas… pesos diferentes. Dez ou quinze adoradores comuns transmitem-me tanta Maana como um adorador com sentimentos fortes por mim, mas isso não quer dizer que esse único adorador é o suficiente para manter um titã em plena forma.

— Estou a ver — murmurou Ezarel, segurando o queixo com ar pensativo — Isso significa que há um limite para a quantidade de Maana que consegues produzir a partir dos sentimentos de cada adorador…

— É, tipo isso.

— Também significa que, se não tiveres outros adoradores além do Nevra, dificilmente irás sair do ponto em que estás neste momento.

— Pois…

— A contribuição do Adonis com certeza terá um impacto tremendo nos teus níveis de Maana, mas… Quero dizer, o Nevra e o Adonis já te adoraram antes, o Leiftan também, mesmo que ele diga que não… e nem com o afeto desses três juntos reuniste Maana suficiente para te tornares o que eu consideraria “forte”…

— Espera… o Leiftan diz que não me adorou? — admirei-me.

— Ele diz que nunca sentiu nada por ti e que a vossa relação era só uma desculpa para estudar o teu comportamento — revelou Ezarel num tom desinteressado, sacudindo a mão como se aquele fosse um detalhe sem importância, antes de retomar o seu raciocínio — A questão é que três pessoas com sentimentos fortes por ti não foram o suficiente para te colocar em “plena forma” e, neste momento, só tens duas para te adorar…

— Ah, é? O Leiftan não quer vir “estudar o meu comportamento” outra vez? — indaguei sem conseguir esconder o azedume na minha voz.

— Parece que não. Felizmente, acho que não teremos de procurar muito para encontrar um faery para o substituir — Ezarel inclinou a cabeça para o lado com um pequeno sorriso sugestivo — Na verdade, admira-me que não o tenhas aliciado para o teu clube de adoradores durante a viagem a Ryss…

Eu franzi o sobrolho, confusa e desconfiada.

— Não estás a falar de ti, pois não?

— Claro que não! — exclamou o elfo, horrorizado, antes de ficar com uma expressão subitamente intrigada — Embora, pensando bem, talvez fosse uma experiência interessante…

— Dispenso — recusei, lançando-lhe um olhar enfastiado — Estás a falar de quem, então? O Valkyon?

— Não, abécula. Estou a falar dele

Ezarel apontou para a ninfa que dormia atrás de mim e eu comprimi os lábios numa linha fina para não me esquecer de manter a boca fechada. Lee podia adorar-me, claro. Eu recebera o afeto de várias mulheres enquanto estivera na colónia e funcionava tão bem como o afeto dos homens. Tinha, porém, sérias dúvidas de que Lee pudesse ou quisesse adorar-me do modo que Ezarel estava a pensar…

— I-isso será uma escolha dele — defendi — Se o Lee não me quiser adorar, eu não o posso obrigar…

— Tenho a certeza de que ele não se irá opor. Vocês parecem dar-se bastante bem. Não ficaria sequer admirado por descobrir que ele está secretamente apaixonado por ti.

Abri a boca para perguntar de onde raios tirara ele aquela ideia, mas um sussurro atrás de mim cortou-me a palavra. Virei-me tão depressa que quase tropecei nos próprios pés e senti mais um peso sair-me dos ombros quando vi uma Lee meio adormecida remexer-se por baixo das cobertas. Antes que Ezarel pudesse impedir-me, aproximei-me e sentei-me na borda da cama, chamando a ninfa em voz baixa:

— Lee? Lee, estás a ouvir-me? Lee…

Ela remexeu-se mais um pouco, humedeceu os lábios com a ponta da língua e, finalmente, abriu os olhos.

— Eduarda…? — murmurou num tom baixo e rouco, com as pálpebras semicerradas.

— Sim, sou eu — confirmei, poisando uma mão no seu ombro e ensaiando um pequeno sorriso tranquilizador — Como te sentes?

Lee olhou em volta, humedecendo novamente os lábios.

— Onde estamos…?

— Balenvia — respondeu Ezarel, aproximando-se — A Lithiel salvou-te do covil do titã e trouxe-te até aqui. Estás com as Guardas de Eel agora.

— Como te sentes? — insisti, preocupada.

Lee deslizou a língua por entre os lábios pela terceira vez.

— Sede…

— Sede? Ezarel, onde posso encontrar água? — perguntei, levantando-me prontamente.

O elfo entreabriu a boca para responder, mas a voz fraca de Lee interrompeu-o:

— O que… o que cheira tão bem aqui?

Eu dirigi-lhe um olhar confuso e admirado. Não me parecia haver nenhum cheiro particular no quarto, mas, mesmo que houvesse, como poderia ela senti-lo com aquele penso enorme no nariz…?

— Não cheira a nada aqui — disse Ezarel num tom seco — Deves estar só a sentir o cheiro dos remédios que te meti no nariz.

Lee voltou a molhar os lábios.

— Não… é remédio — negou, apoiando as mãos no colchão como se quisesse levantar-se. Eu apressei-me a poisar as mãos nos seus ombros e pedi-lhe que ficasse deitada, mas Lee enxotou-me e sentou-se com mais facilidade do que seria de esperar — Cheira… a qualquer coisa…

— Não cheira a nada aqui — insistiu Ezarel, impaciente.

Lee lançou um olhar penetrante ao elfo, fazendo-o retesar-se, e lambeu os lábios mais uma vez.

— Diretor Ezarel…

— O que é?

— Venha aqui…

— Porquê?

— Acho que tenho qualquer coisa na garganta — queixou-se a rapariga, levando uma mão à dita.

O rosto de Ezarel contorceu-se numa careta quase impercetível, algures entre o arreliado e o desconfiado, mas acercou-se da cama.

O resto aconteceu tão depressa que fiquei na dúvida se estava a ver bem. Num momento, Ezarel estava a estender as mãos para palpar o pescoço de Lee. No outro, recuava aos tropeções para escapar dos dois caninos afiados que a ninfa por pouco não fincara no seu antebraço.

— Mas que porr…?!

Ezarel não teve tempo de terminar o seu protesto. Lee desenvencilhou-se das cobertas com um gesto do braço e voou contra o elfo como um jogador de râguebi, atirando ambos ao chão. Eu gritei o nome da ninfa, mas nem ela, nem Ezarel me prestaram atenção. Estavam demasiado ocupados a engalfinhar-se em cima do tapete, com Lee a tentar morder Ezarel e ele fazendo o que podia para manter as presas afiadas afastadas do seu corpo.

— Para, seu…! O que pensas que estás a fazer?!

— Sede…

— Tenho cara de copo de água?! — grunhiu o elfo antes de pressionar o nariz recém-reconstruído de Lee com o polegar. A ninfa recuou com um uivo de dor e Ezarel aproveitou a oportunidade para trocar as suas posições. Lee terminou deitada de costas contra o chão e Ezarel sentou-se sobre as suas coxas antes de lhe prender os braços acima da cabeça.

— Quando pretendias contar-me que és parte vampiro, seu canalha? — rosnou o elfo num tom baixo e ameaçador.

Lee lançou-lhe um olhar muito confuso por entre as lágrimas de dor que lhe turvavam a visão.

— O quê…?

— Isso pergunto eu! Vim aqui para cuidar de um elfo moribundo e, em vez disso, sou atacado por um vampiro sedento! Como é que explicas isso?!

— Vampiro…? Quem…?

— Não te armes em engraçadinho comigo — Ezarel rosnou entredentes, aprisionando o nariz de Lee entre o indicador e o polegar. Ela soltou um guincho de dor e levantou a mão livre para tentar afastar a do elfo — Vou deixar passar desta vez com a desculpa de que estás desorientado e enfraquecido depois de tudo o que te aconteceu, mas, se alguma vez voltares a mostrar-me os dentes, arranco-os a todos com um alicate! Fiz-me entender?!

Lee choramingou qualquer coisa e o Diretor da Absinto franziu levemente o sobrolho.

— O que foi que disseste?

A ninfa levantou os olhos cada vez mais húmidos na direção de Ezarel e deslizou a ponta da língua pelos lábios.

— O cheiro do Diretor Ezarel é tão… delicioso… Dá água na boca… e eu só quero dar uma mordidinha. Uma pequenina… Não posso?

Ezarel arregalou os olhos, como se não estivesse a acreditar no que estava a ouvir… e corou até à ponta das orelhas pontiagudas.

— C… claro que não! Isso está completamente fora de questão! C-como te atreves a sequer pensar que…?

— O que é que vocês estão a fazer? — inquiriu subitamente uma nova voz. Eu, Lee e Ezarel virámos a nossa atenção para a porta, onde Nevra se quedava com um tabuleiro cheio de comida nas mãos e o sobrolho franzido pela confusão.

— N-nada! — garantiu rapidamente o Diretor da Absinto, saltando de cima de Lee como se ela estivesse em chamas — F-foi só este idiota aqui que se esqueceu de nos dizer que é meio vampiro!

— Tu és meio vampiro? — admirou-se Nevra, desviando o olhar para a ninfa que estava a sentar-se.

— Eu… não sei — principiou ela a dizer antes de ser interrompida pela voz exasperada de Ezarel:

— Como assim, não sabes? Tens duas presas na boca e tentaste beber o meu sangue! De que mais provas precisas?!

Lee lançou um olhar confuso ao elfo antes de passar rapidamente a língua pelos dentes de cima. Os seus olhos esbulharam-se ao encontrar uma das presas afiadas, levando rapidamente a mão aos lábios.

— Como é que isto aconteceu? — perguntou em voz baixa.

— A culpa foi minha — admitiu o Mestre da Sombra — Eu não sabia que eras parte vampiro e dei-te um pouco do meu sangue para partilhar os meus poderes regenerativos contigo. Desculpa…

— Pede-me desculpa a mim! — exclamou Ezarel, irritado — A vítima aqui sou eu!

— Esperem — intrometi-me na conversa para tentar esclarecer as minhas dúvidas — Vocês estão a dizer que… o Lee virou um vampiro?

— Sim — confirmou o Mestre da Sombra — Eu e a Lithiel dissemos-te há pouco que os vampiros podem conceder uma parte dos seus poderes a outros faeries através do sangue, mas se fizermos o mesmo com um híbrido de vampiro… ele tornar-se-á temporariamente um vampiro completo, presas e sede de sangue incluídas. Essa última, aliás, poderá tornar-se bastante problemática se o híbrido não estiver habituado a lidar com a sede, como parece ser o caso do Lee.

Eu virei a cabeça na direção da rapariga sentada no chão e ela devolveu-me o olhar com uma expressão apavorada. Lee com certeza estava a pensar o mesmo que eu: como poderia ela ser meio vampira se era uma ninfa vinda da Terra, onde os faeries tinham sido exterminados? Não fazia sentido nenhum…

— Bom, eu vou embora — anunciou Ezarel, encaminhando-se para a porta — Tenho de avisar a Miiko que esse miserável acordou… E vê se ensinas maneiras à tua nova cria, Nevra! — acrescentou ao passar pelo vampiro, desaparecendo depois no corredor.

Nevra soltou um pequeno suspiro e entrou enfim no quarto, indo poisar o tabuleiro com comida numa mesa perto da janela. Atrás dele, avançando com passos tímidos e incertos, vinha uma figurinha de longos cabelos castanhos que demorei alguns segundos a reconhecer. Franzi ligeiramente o sobrolho, confusa com o que estava a ver.

— A… Adonis?

O rapazinho fez um pequeno sorriso acanhado e levantou levemente a mão.

— O-olá, Eduarda… Como estás?

Não havia dúvidas. Aquele era Adonis. A voz, o cabelo, os olhos de cores diferentes, o formato do rosto, tudo batia certo… mas, ao mesmo tempo, algo não estava bem.

— Eduarda? — chamou Adonis, inquieto, quando não lhe respondi. Junto da janela, Nevra soltou um risinho divertido.

— Acho que a Eduarda está com dificuldade em lidar com as tuas novas pernas.

Pernas? Baixei rapidamente o olhar para a parte inferior do corpo do centauro e tive de fazer uso de toda a minha concentração para não deixar cair o queixo. Pernas! Adonis tinha pernas! Duas pernas humanas, não quatro de cavalo!

— Como é que…? — comecei a perguntar, atabalhoada.

Nevra soltou mais um risinho.

— O Adonis pediu ao Ezarel que lhe fizesse uma poção para ter pernas humanas.

— Isso é possível? — admirei-me.

— Claro. Há vários faeries que tomam esse tipo de poção. Sereias, por exemplo.

— N-não gostas das minhas novas pernas? — inquiriu Adonis na minha direção, com ar apreensivo.

— N-não é nada disso, eu só… não percebo porque decidiste trocar as tuas patas de cavalo por pernas humanas.

O rapaz baixou a cabeça enquanto dava nervosamente as mãos atrás das costas.

— Eu… só pensei que seria melhor se tivesse pernas normais…

— As tuas pernas eram normais, Adonis.

— Não para ti — murmurou tão baixinho que quase não o ouvi.

Eu limitei-me a olhá-lo durante alguns instantes, cilindrada pela sua resposta. Fora impressão minha… ou ele acabara de dizer que trocara as suas patas de cavalo por pernas humanas por minha causa?

— Adonis — chamei num tom sério que fez o centauro levantar timidamente o olhar para mim — Se decidiste trocar de pernas por minha causa… eu vou-te bater.

— O qu…? N-não… Tu não foste a única razão. É-é também mais prático para mim ter só duas pernas. A minha metade de cavalo ocupava muito espaço… e eu estava sempre a chocar com as coisas. Era difícil mover-me em espaços mais pequenos e apertados, mas, agora… é mais fácil… E-e eu posso recuperar a minha metade de cavalo sempre que quiser, basta beber a contra-poção.

— Hum…

— Lee! Não!

O brado de Nevra quase me fez dar um pulo alarmado e eu olhei rapidamente para o sítio onde vira a ninfa pela última vez. Contudo, ela já lá não estava. Em vez disso, Lee estava acocorada aos meus pés, com o rosto quase encostado à minha canela.

— Lee? — chamei, surpreendida.

Ela levantou o olhar para mim.

— Tu também cheiras muito bem…

— Não, não, não, nada de mordidas! — ralhou Nevra, fechando um punho no braço de Lee e arrastando-a para longe de mim, de volta à cama — Confia em mim, tu não queres beber sangue.

— Mas eu tenho sede — choramingou a ninfa com um beicinho amuado.

— Eu sei, mas tens de aguentar.

— Porquê? Qual é o mal de beber um bocadinho? Só um bocadinho?

— Se voltares ao normal antes de o teu corpo digerir esse “bocadinho” de sangue, não vai ser nada divertido.

— Porquê?

— Vai dar-te uma dor de barriga monumental, com direito a enxaqueca, náuseas e diarreia! — revelou o vampiro — Portanto, nada de sangue! Senta-te aí e fica quieto! Ou vou ter de te amarrar?

Lee fez mais um beicinho, mas cedeu a sentar-se na cama, recostada contra as almofadas. Nevra soltou um pequeno e discreto suspiro de alívio.

— Pronto… Assim está melhor; assim podemos concentrar-nos no que realmente importa. Tu deves estar com fome, além da sede de sangue, não?

— Não sei — resmungou Lee, amuada — Só sinto sede.

— Vais comer na mesma, vai-te fazer bem — decidiu o Mestre da Sombra, voltando ao tabuleiro — Eduarda, tu também. Serve-te do que quiseres.

Eu cedi e aproximei-me, inspecionando rapidamente a comida que Nevra trouxera. Um prato com bolinhos de carne prendeu a minha atenção e puxei-o para mais perto enquanto me sentava. Ofereci um a Adonis, mas ele recusou, murmurando um “já comi”. Entretanto, Nevra entregou uma pequena tigela de sopa a Lee.

— Come — ordenou ao ver a ninfa fazer uma pequena careta — e, enquanto isso, podes começar a contar-nos o que aconteceu na colónia do titã.

Lee retesou-se e baixou o rosto, com o olhar subitamente vazio e inexpressivo.

— Porque queres saber?

Nevra não respondeu de imediato, parecendo ter sido apanhado desprevenido pela pergunta.

— Porque é óbvio que sofreste muito e nós queremos apoiar-te… mas só o poderemos fazer da forma certa se soubermos o que aconteceu contigo.

Lee humedeceu os lábios com a ponta da língua, mantendo o rosto virado para baixo.

— Obrigado, mas… não quero falar sobre isso — murmurou.

— Porque não?

— Simplesmente não quero. Por favor, tenta compreender…

Nevra abriu a boca como se fosse insistir, mas pensou melhor e voltou a cerrar os lábios.

— Muito bem. Eu compreendo. Mas devo avisar-te que a Miiko está decidida a interrogar-te… e eu não sei se a conseguirei dissuadir disso. Entendes o que quero dizer?

Lee trincou levemente o lábio, mas assentiu. Nevra soltou mais um suspiro, passando a mão pelos espessos cabelos pretos.

— Realmente, vocês só me dão trabalho…


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Titanomaquia" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.