Titanomaquia escrita por Eycharistisi


Capítulo 71
LXIX




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/742158/chapter/71

Enquanto dilacerava uma pequena nectarina com as presas, Nevra vigiava atentamente os gestos da nova vampira. Lee não comia nada há sabe-se lá quantos dias, mas mesmo assim não parecia minimamente interessada na sua sopa. Fazia pequenas e discretas caretas enquanto empurrava os vegetais para o lado com a colher, levando somente o caldo à boca. Nevra repreendia-a a cada sessenta segundos por estar a escolher e desperdiçar a comida, mas Lee depressa aprendeu que só tinha de lhe mostrar um pequeno beicinho ressentido para o vampiro soltar um suspiro de derrota e dar-lhe mais sessenta segundos de trégua.

Entretanto, Adonis mantinha-se muito quieto e silencioso, sentado no cadeirão no canto do quarto. Estava hirto como uma estátua, com a cabeça baixa, os ombros encolhidos e os dedos entrelaçados sobre o colo. Era, todavia, difícil saber se a sua tensão e nervosismo se deviam à típica timidez… ou a outra coisa… Afinal, ele já sabia o que eu era, não sabia? E também sabia o que eu fizera em Eel…

Perdi subitamente o apetite a meio do segundo bolinho de carne e teria desistido de comer se não tivesse visto o olhar reprovador com que Nevra fuzilava Lee. O Mestre da Sombra não me perdoaria quando notasse a quantidade de comida que eu deixara no tabuleiro, por isso, fiz um esforço para pelo menos terminar o bolinho de carne e rematar a refeição com uma peça de fruta. Estendi a mão para a última nectarina no tabuleiro, mas parecia que Nevra tivera exatamente a mesma ideia… porque foi em cima da sua mão que a minha poisou. O vampiro dirigiu-me um olhar algures entre o surpreendido e o intrigado e eu recolhi bruscamente a mão quando senti uma pequena corrente elétrica subir-me pelo braço.

— Oh… Desculpa — murmurou o vampiro antes de me estender a nectarina — Toma, podes ficar com ela.

— N-não, não faz mal — recusei com um fraco sorriso, esfregando discreta e insistentemente as pontas dos dedos para me livrar do formigueiro que sentia debaixo das unhas — N-na verdade, acho que prefiro uma maçã…

— Tens a certeza?

— Sim, sim, não te preocupes…

Nevra não parecia muito convencido, mas eu agarrei e trinquei uma maçã antes que ele pudesse dizer mais alguma coisa. Fiquei à espera que o vampiro fizesse o mesmo com a nectarina, mas, em vez disso, ele levantou-se e entregou a fruta a Lee. A ninfa lançou-lhe um olhar surpreendido, mas aceitou a nectarina com menos resistência do que a sopa e até soltou um pequeno murmúrio de contentamento ao dar a primeira dentada.

Quando todos terminámos de comer, Nevra recolheu o tabuleiro com os restos e saiu do quarto para o ir devolver. Eu decidi aproveitar o facto de estarmos (quase) sozinhas para esclarecer a dúvida que me corroía desde que poisara os olhos na ninfa… 

— Lee — chamei num meio murmúrio que foi perfeitamente audível no meio do silêncio — Eu… eu percebo que não queiras falar sobre o que aconteceu na colónia… e não é minha intensão pressionar-te ou obrigar-te, mas… eu preciso de saber — baixei o olhar quando a minha voz tremeu e inspirei um fôlego de coragem antes de continuar — Foi o meu irmão… Foi o Ashkore quem te deixou naquele estado? Foi ele quem te… agrediu?

Lee inspirou profundamente, parecendo ponderar na sua resposta.

— Bem… na prática, o titã não me encostou um dedo… mas ele também teve a sua parcela de culpa no que aconteceu.

— Como assim?

Lee lançou um rápido olhar na direção de Adonis antes de sacudir a cabeça.

— Desculpa, mas não quero mesmo falar sobre isso…

“Enquanto ele estiver aqui”, acrescentavam os seus olhos. Fosse o que fosse que tivesse acontecido, Lee claramente não queria que se tornasse do conhecimento geral. Provavelmente porque estava relacionado com o facto de ela ser uma ninfa. Teria de encontrar uma maneira de ficar a sós com ela para podermos conversar à vontade…

A porta do quarto abriu-se nesse momento e Lithiel entrou, estacando quando viu Lee acordada. A ninfa pareceu petrificar quando os olhos de ambas se cruzaram, mas, dois segundos depois, praticamente correu para cima da outra rapariga, apertando os braços em seu redor. Lithiel soltou uma exclamação de protesto, confusa e revoltada, mas Lee não a soltou. Segurando a doppelganger pelos ombros, afastou-se apenas o suficiente para poder mirá-la de cima a baixo.

— Estás bem? — perguntou a ninfa, genuinamente preocupada — Estás bem? O titã… o titã não te magoou?

— Não, ele não me magoou, estou bem — garantiu Lithiel, enxotando as mãos de Lee com impaciência — Ou melhor, estava bem, antes de quase espremeres as minhas entranhas para fora! Qual foi a tua ideia?! Eu acabei de comer, sabes?!

Lee murmurou um pedido de desculpas, mas não hesitou em dar mais um abraço a Lithiel. A doppelganger reclamou e debateu-se, mas foi silenciada pelo murmúrio choroso da ninfa:

— Estou tão feliz que estás bem…

Lithiel fez uma pequena careta, mas desistiu de se soltar de Lee pela força. Em vez disso, deu-lhe umas palmadinhas desajeitadas nas costas.

— Sim, sim, eu também estou feliz que estás bem… Satisfeito? Podes soltar-me agora?

Lee fungou levemente, mas soltou Lithiel e regressou ordeiramente à cama. Nas suas costas, a doppelganger dirigiu-me um olhar interrogativo ao qual respondi com um encolher de ombros. Eu também não entendera nada do que tinha acabado de acontecer… Lithiel revirou levemente os olhos, enfadada, antes de estes se fixarem no centauro imóvel no canto do quarto.

— Adonis — reconheceu ela, fazendo o rapazinho endireitar a cabeça com um pequeno pulo — O que fazes aqui?

O centauro piscou os olhos… e corou até ficar da cor de um tomate maduro.

— Ah, b-b-bem, eu… eu vim porque… o Mestre Nevra disse que podia e… e-e eu queria ver a Eduarda, então… vim…

— Hum… Não estás aqui para adorar a Eduarda, então?

Adonis corou ainda mais, balbuciando uma data de sons incompreensíveis. Os nossos olhares cruzaram-se entretanto, mas o rapaz desviou rapidamente o seu, fechando a boca e remetendo-se ao silêncio. Por fim, fez um pequeno e discreto aceno positivo. 

— Consegues adorá-la daí? — insistiu Lithiel, abrindo um pequeno sorriso malicioso — Não devias sentar-te mais perto da Eduarda?

— Não faz mal, Adonis — intrometi-me quando o rapazinho começou a hiperventilar, prestes a ter um fanico — Não tens de vir para perto de mim se não quiseres. Podes adorar-me só através do pensamento…

A doppelganger abriu a boca enquanto fazia um novo sorriso malicioso, mas Nevra entrou no quarto antes que ela pudesse soltar um som.

— Ah, Lithiel, ainda bem que estás aqui — disse o vampiro ao ver a dita — Temos um assunto mais ou menos sério para falar…

— Outro? — resmungou a doppelganger, desagradada — O que foi agora?

— É sobre a tua pernoita. Tens onde ficar aqui em Balenvia ou queres que providenciemos uma cama para ti no acampamento?

— Acampamento? Não posso antes ficar aqui? — a rapariga quase suplicou.

— Lamento, mas não. Nós convertemos a estalagem numa enfermaria improvisada, por isso, só quem está ferido tem permissão para ficar aqui.

— Então, devo partir uma perna ou um corte no dedo chega?

— Isso não tem piada…

— Fazes ideia de há quanto tempo não durmo numa cama decente?!

— Ela não pode ficar comigo? — sugeri ao vampiro, intrometendo-me na discussão — Eu não me importo de partilhar quarto com ela.

Nevra torceu levemente o nariz.

— Na verdade… tu também não poderás continuar aqui, Eduarda.

— O quê? Porquê? — perguntei, sentindo o coração cair-me aos pés. Eu teria de sair dali? E iria para onde? Para o meio dos outros faeries? Isso não seria… má ideia?

— Porque, tirando os ferimentos nos pulsos e tornozelos, tu estás praticamente recuperada da desintoxicação — lembrou o vampiro — O teu estado de saúde já não carece de cuidados constantes, portanto… terás de sair…

— Então… terei de ir para esse acampamento que mencionaste?

— Tecnicamente, sim… mas eu tenho uma alternativa para te propor.

— Que alternativa?

— Podes partilhar quarto comigo. Eu tenho um à minha disposição na casa do Prefeito. Nunca o usei porque passei as últimas noites aqui, mas com certeza é mais confortável do que o acampamento e… bem… será também mais prático para a adoração…

Lithiel interrompeu-o com um sonoro par de gargalhadas.

— Oh, sim, muito mais prático! Sem dúvida!

Nevra lançou-lhe um olhar arreliado.

— Eu sei que o que estás a tentar insinuar, mas não é disso. Estava apenas a pensar que, partilhando um quarto, eu e a Eduarda poderemos passar mais tempo juntos e acelerar o desenvolvimento de Maana.

Lithiel soltou um risinho.

— Sim, Nevra, nós percebemos. Partilhando um quarto, tu e a Eduarda poderão passar muito mais tempo sozinhos e muito encostadinhos…

— Já te disse que não é nada disso! Não vou fazer nada que a Eduarda não queira!

— Traduzindo, enquanto ela não te der um pontapé no traseiro, as tuas mãozinhas vão continuar a passear por aqui e por ali…

— Não é…! — Nevra desistiu de argumentar com a doppelganger quando ela soltou mais uma gargalhada, decidindo virar-se para mim — Eduarda, juro, não é nada do que a Lithiel está a dizer. Não te vou encostar um dedo…

— Eu sei, eu sei — tranquilizei-o rapidamente, embora sentisse uma pequena pontada de… desilusão? — Eu sei que posso confiar em ti. Não será sequer a primeira vez que… dormimos no mesmo espaço, por isso… está tudo bem, não te preocupes.

Nevra piscou o seu único olho, como se a minha resposta o tivesse surpreendido, mas não demorou a abrir o que me pareceu ser um sorriso aliviado.

— Ótimo, então… eu vou apresentar a Lithiel ao acampamento e depois venho buscar-te para te levar até à casa do Prefeito, pode ser?

— Okay…

Nevra dirigiu-me mais um sorriso e chamou Lithiel para fora do quarto. Ela soltou um pequeno suspiro aborrecido, mas seguiu-o sem reclamar. De novo, ficámos apenas eu, Lee e o pequeno centauro no canto…

— Adonis, o acampamento de que o Nevra falou… é muito longe? — indagou subitamente a ninfa.

— Ah, n-não, nem por isso. É mesmo em frente à vila. M-mas é bastante grande, talvez leve algum tempo até a Lithiel encontrar uma tenda com camas vagas…

— Hum… nesse caso… posso pedir-te um favor?

— C-claro. Do que precisas?

— Eu queria falar com a Eduarda. A sós…

— Oh… C-certo, desculpem. S-sendo assim, eu vou… — o centauro levantou-se, pronto para ir embora, mas Lee interrompeu-o:

— Importas-te de ficar de vigia? Tenho medo que o Nevra volte mais cedo do que o previsto e se meta a escutar atrás da porta…

— Oh, eu… eu não sei se sou a melhor pessoa para esse tipo de…

— Só tens de nos avisar quando o vires chegar. Não é nada demais.

Adonis hesitou, indeciso, mas acabou por aquiescer.

— Bem… está bem, eu… fico de vigia…

— Sério? Obrigado. Fico a dever-te uma!

O centauro fez um pequeno sorriso, acenou e saiu do quarto, fechando silenciosamente a porta. Eu levantei-me e fui sentar-me na borda da cama de Lee.

— O que queres falar comigo?

— O que aconteceu com a ferida no meu peito? — inquiriu sem cerimónias, num tom simultaneamente desconfiado e amedrontado — Eu não tenho a certeza de quanto tempo passou, mas… foram só alguns dias… certo? E uma ferida daquelas não desapareceria sem deixar rasto em apenas alguns dias…

— Ah…

— Quem cuidou da minha ferida? E como?

— Ouve — comecei num tom brando, tentando atenuar o receio nos seus olhos — Não precisas de te preocupar. Foi o Nevra quem cuidou de ti, mas…

— Ele não me deu só sangue dele, pois não? — concluiu a ninfa — Ele… usou saliva na minha ferida… não foi?

— Sim… mas não precisas de te preocupar — repeti apressadamente — Eu e a Lithiel estávamos presentes e podemos garantir que ele não te tocou mais do que o estritamente necessário.

— Mas… agora ele sabe… que eu sou uma rapariga…

— Hum, na verdade… ele já sabia.

— O quê? — alarmou-se a ninfa.

— Ele já sabia. Não sei como ou quando é que ele descobriu, mas…

— Espera, se o Nevra sabia… porque não me denunciou?

— Não sei. Ele não disse. Terás de ser tu a perguntar-lhe.

A ninfa desviou o olhar com ar absorto, como se estivesse a tentar adivinhar os motivos de Nevra, mas eu interrompi o seu raciocínio para colocar a questão que não parava de me atormentar:

— Lee… Como é que acabaste com uma ferida daquelas no peito? A Lithiel disse… disse que te tinham tentado arrancar o coração… É verdade?

— Ah… Bem, sim, é verdade.

— O que é que aconteceu?

Lee voltou a desviar o olhar, humedecendo nervosamente os lábios.

— Foi… foi no dia em que tu e a Lithiel voltaram da Terra — disse em voz baixa — Eu continuava trancado na minha cela nas masmorras e vi a Lithiel passar a caminho da cela dela, acompanhada por aquele centauro que não me lembro o nome. Passado uma hora, talvez um pouco mais… o Ashkore apareceu. Quero dizer, eu não sabia que era ele. Nunca lhe tinha visto a cara e ele estava sem a máscara e sem a parte de cima da armadura. Vinha a cambalear um pouco, como se estivesse bêbado… mas foi direto à cela da Lithiel — a voz da ninfa falhou enquanto ela fechava as mãos trémulas em punhos — O titã nem se incomodou em fechar a porta da cela, por isso… eu assisti a tudo. Primeiro, ouvi a voz da Lithiel dizer qualquer coisa. Depois, barulhos como os de uma luta. Eles estavam num canto escondido de mim, mas, entretanto, atravessaram-se na frente da porta e… eu vi… O titã… o titã não estava a bater-lhe. Ele estava… ele… — Lee fez uma pausa para trincar o lábio trémulo, os olhos cheios de lágrimas. Eu poisei as minhas mãos sobre as suas para a tentar confortar um pouco — Ele estava a rasgar a camisola da Lithiel… Ele estava a despi-la e a arrastá-la… para o canto onde presumi que estava a… cama… e eu… eu pensei que… pensei que ele ia…

Um gemido agoniado escapou por entre os lábios de Lee e ela soltou-se das minhas mãos para cobrir o rosto, tremendo como varas verdes. Não terminou o que estava a dizer, mas não era preciso. Conhecendo o seu passado, não era difícil entender o que tinha acontecido, o que ela tinha pensado e sentido, quando vira Ashkore atacar a doppelganger. E isso explicava a reação de Lee quando Lithiel entrara no quarto…

— N-não te preocupes — murmurei, poisando hesitantemente uma mão no seu ombro e esperando estar a usar as palavras certas — Não foi nada. O Ashkore não magoou a Lithiel… dessa forma. Ela contou-nos o que aconteceu e, apesar de ter sido… bastante desagradável, não teve nada a ver com isso. Não te preocupes…

Passaram-se alguns longos segundos antes de Lee baixar as mãos, soltando um pequeno suspiro trémulo.

— Ainda bem… Fico muito feliz… e aliviado… por a Lithiel não ter passado pelo mesmo que eu… Mas, então… porque é que o titã a estava a despir? O que é que ele lhe fez?

— Ah, hum… Bem… acho que ele tentou tirar-lhe a camisola para… poder beber o sangue dela mais à vontade…

— Espera, o quê? O titã bebeu o sangue dela? Porquê?!

— Aparentemente, ele queria a Maana de Úrano e Gaia que a Lithiel absorveu durante a viagem à Terra.

— Oh… faz sentido — concordou Lee, acenando com ar pensativo.

— Mas ainda não me explicaste como acabaste naquele estado — lembrei-a, ansiosa por encerrar aquele assunto.

— Ah, sim… Bom, quando vi o que estava a acontecer na cela ao lado, entrei em pânico. Desatei a berrar e a lutar com a porta da minha cela o que, naturalmente, fez os guardas vir ver o que se passava. Um deles aproximou-se um pouco mais da porta… e eu não pensei duas vezes antes de agarrá-lo através das grades — hesitou e desviou o olhar, como se estivesse envergonhada — Acho que só não o estrangulei até à morte porque o outro guarda o acudiu. Ele bateu-me até me fazer soltar o coleguinha, mas isso não deve ter sido o suficiente, porque abriu a porta e continuou a bater-me. Eu defendi-me como pude e consegui sair para o corredor… mas foi nesse momento que o Ashkore saiu da cela da Lithiel. Quando os nossos olhos se cruzaram, o meu cérebro… ardeu. Entrou em curto-circuito e ardeu. Eu não via mais nada, não pensava em mais nada, o meu mundo resumia-se ao titã e à vontade de o fazer sofrer tanto quanto pudesse, por isso… não medi ou planeei os meus atos. Simplesmente… atirei-me a ele. O titã estava tão zonzo que acho que não se teria conseguido defender, mas, infelizmente, o guarda que eu tinha estrangulado não estava fora de combate. Ele meteu-se entre nós para proteger o seu Amo e, quando dei por mim… tinha os dedos, melhor, as garras dele enterradas no meu peito — Lee esfregou distraidamente o lugar onde estivera a ferida, como se estivesse a tentar debelar a memória da dor, antes de soltar um risinho sem humor — Pensei que seria o meu fim. Pensei… que ele me ia arrancar o coração. Foi o outro guarda quem o impediu.  Ele lembrou o coleguinha de que não me podiam matar por tua causa e o guarda acabou por recuar. Atiraram-me de volta para a cela e tenho uma vaga ideia de os ouvir falar em trazer um curandeiro, mas não tardei a desmaiar devido à dor e à perda de sangue. Quando voltei a acordar… estava aqui. E é isso…

O silêncio instalou-se lentamente no quarto enquanto eu comprimia os lábios numa linha fina, lutando contra as lágrimas. Pensar que Lee passara por tudo aquilo porque a deixara completamente sozinha e desamparada… Ela e Lithiel. Se eu tivesse prestado um pouco mais de atenção… só um pouco, então talvez…

— Bem, chega de falar de mim — disse subitamente a ninfa, arrancando-me da minha miséria — Conta lá, como foi a vossa viagem à Terra?

— Ah… Foi… hum… boa? — murmurei, desorientada com a repentina mudança de assunto.

— Conheceste os nossos Pais? — insistiu a ninfa, curiosa.

— Estás a falar de Úrano e Gaia?

Lee acenou e soltou um risinho quando me viu fazer uma pequena careta.

— Conheci-os, sim, embora não tenha sido um encontro propriamente agradável… A propósito, falando em pais, que história é essa de seres meio vampira?

A ninfa soltou um grunhido que se assemelhava vagamente a um suspiro aliviado.

— Honestamente, também não sei, mas enquanto o Nevra e o Ezarel continuarem a pensar que é disso que se trata, está tudo bem para mim.

— Então… tu não és meio vampira?

— Não, claro que não. Como poderia? Não há mais faeries na Terra e, mesmo que houvesse, as ninfas não são fãs de misturas.

— Se não és meio vampira, como é que te transformaste numa? — perguntei, confusa.

— Ah, bem… Na verdade, eu também não tenho a certeza… mas acho que está relacionado com o facto de as ninfas serem recetáculos.

— Recetáculos?

— Isso mesmo. Lembraste quando eu disse que Úrano e Gaia nos usavam como antenas de satélite para expandir o seu poder?

— Sim…

— Uma antena de satélite existe para capturar e transmitir um sinal que recebe de outra fonte, certo?

— Sim, acho que sim…

— Úrano e Gaia criaram as ninfas para transmitir o “sinal” deles, mas a verdade é que qualquer outra entidade nos poderia usar para transmitir o seu próprio “sinal”. E quando o Nevra me deu o sangue dele… eu passei a transmitir o “sinal” dele.

— Espera, espera, espera… Estás a dizer que… tu podes transformar-te em outras espécies faeries?

Lee ergueu o olhar para o teto, pensativa.

— Bem, na teoria, sim… mas, para isso, seria necessário que os faeries me transmitissem a sua… “essência” e isso não é uma coisa simples de se fazer. Os vampiros são talvez a única exceção, eles só têm de dar um pouco do seu sangue para partilhar a sua essência com os outros. Mas, com os restantes faeries, não funciona assim…

— Hum, estou a ver… — murmurei, tentando imaginar o que aconteceria se Lee bebesse o meu sangue…

— O Ezarel disse que nós estamos em Balenvia? — inquiriu Lee, decidindo mudar de assunto novamente.

— Ah, sim… embora eu não faça a mais pálida ideia de onde fica Balenvia.

— Eu só sei porque, quando entrei na Guarda, ensinaram-me que Balenvia era o ponto de encontro caso alguma coisa acontecesse na cidade. É por isso que estamos aqui? Aconteceu alguma coisa em Eel?

Senti-me como se as minhas costelas tivessem virado uma gaiola de gelo quando me dei conta de que Lee não sabia de nada do que acontecera nos últimos dias. Ela não sabia que eu trouxera um titã da Terra. Não sabia do ataque a Eel. Não sabia da quantidade de pessoas que tinham perdido a vida por minha causa. E pensar em contar-lhe tudo, em confessar-lhe todos os meus crimes, era o suficiente para me dar vontade de vomitar. Tive de engolir em seco uma data de vezes para conter a ânsia de expelir o pouco que tinha no estômago e Lee, que me lançava um olhar curioso e expetante, não tardou a perceber que algo não estava bem.

— Eduarda? Sentes-te bem?

Eu abri a boca para responder, mas não saiu nenhum som. Não conseguia…

Três suaves batidas na porta salvaram-me daquele suplício. Segurando um suspiro aliviado, virei-me para ver Adonis entrar timidamente no quarto, anunciando que Nevra estava a caminho. E, de facto, dois ou três minutos depois, o Mestre da Sombra apareceu à porta.

— Eduarda, estás pronta para sair?

Eu assenti, levantando-me com um pulo. Não tinha a certeza se estava realmente pronta para enfrentar o mundo exterior… mas estava convencida de que seria mais fácil lidar com a ira e o desprezo dos faeries do que com a deceção de Lee quando descobrisse o que eu tinha feito. Foi, portanto, com uma estranha espécie de alívio que eu me despedi da ninfa e saí do quarto, descendo as escadas na companhia de Nevra e Adonis. Foi só quando o vampiro abriu a porta para a rua que o medo regressou.

Era noite cerrada e não havia muitas luzes do lado de fora, mas eram as suficientes para me permitir ver uns quantos pares de silhuetas caminhando ou conversando no largo na frente da estalagem. Silhuetas que com certeza sabiam quem eu era… e que não ficariam nem um pouco felizes por me ver…

— Eduarda? — Nevra chamou-me até eu desviar o olhar dos faeries e o fixar nele — Está tudo bem. Não precisas de ter medo. Eu e o Adonis estaremos contigo. Não vamos deixar que ninguém te faça mal.

O pequeno centauro acenou uma concordância e, como se quisesse mostrar-me que era seguro, saiu da estalagem, esperando por mim do lado de fora. Eu humedeci nervosamente os lábios, inspirei um fôlego de coragem e obriguei os meus pés a imitá-lo. Ao atravessar a porta, virei automaticamente o rosto para baixo, esperando que uma cortina de cabelo fosse o suficiente para me escudar do olhar dos faeries.

A caminhada até à casa do tal Prefeito pareceu durar uma eternidade e, entretanto, o meu medo de ser reconhecida e abordada infestava rapidamente o meu pensamento. Estava tão imersa nele quando finalmente entrámos na casa que precisei de alguns segundos para me reorientar. E foi só quando Nevra me perguntou se estava bem que eu me apercebi que quase não estava a respirar, que tinha as costas húmidas de suor e que tinha os ouvidos entupidos pelo bater do meu próprio coração. Inspirei fundo para me acalmar antes de responder:

— Estou bem… estou bem…

— Estás com cara de quem vai desmaiar — insistiu o Mestre da Sombra, fixando-me como se estivesse à espera que eu desfalecesse a qualquer instante. Eu inspirei fundo mais uma vez para estabilizar a minha respiração.

— Não, estou bem…

Nevra semicerrou o seu único olho, pouco convencido, mas desviou-o relutantemente de mim para o centauro ao meu lado.

— E tu, Adonis? Ficas aqui connosco ou vais voltar para o acampamento?

Adonis piscou os olhos, como se não tivesse a certeza de ter ouvido bem… e corou tanto que pensei que lhe iria descer um fio de sangue pelo nariz.

— E-e-eu não sei se… isso… E-e-eu acho que… é melhor voltar para o acampamento…

— Tens a certeza? — insistiu Nevra, recebendo um rápido aceno como resposta — Bem, como quiseres… Nesse caso, vemo-nos amanhã.

Adonis acenou, murmurou uma rápida despedida e foi-se embora sem levantar o olhar do chão. Assim que a porta se fechou atrás dele e eu me dei conta de que estava sozinha com Nevra, senti uma pequena pontada de ansiedade atacar o meu estômago. Eu concordara mesmo em dormir com ele…?

— Vem, por aqui — chamou o vampiro, encaminhando-se para a pequena escadaria ao fundo do átrio. Depois de engolir levemente em seco, fui atrás dele.

O quarto destinado ao Mestre da Sombra não era muito grande, mas parecia aconchegante. A mobília era de madeira escura, pesada e cuidadosamente esculpida. As cobertas e almofadas na cama pareciam ser tão macias que fiquem verdadeiramente ansiosa por me enroscar nelas. A única fonte de luz eram uns pequenos orbes incandescentes amontoados num pratinho metálico, os quais crepitavam e emitiam calor como brasas verdadeiras. Muito acolhedor…

— Não é muito grande — comentou Nevra, após fechar a porta —, mas acho que serve para os dois.

— Sim, perfeitamente…

— E… estás a pensar partilhar a cama ou… preferes que eu durma no chão?

Eu lancei-lhe um olhar surpreendido.

— Porque haveria de preferir que dormisses no chão?

Nevra encolheu levemente os ombros.

— Não sei, poderias… não te sentir à vontade…

— Nós dormimos na mesma cama na noite passada — lembrei-o, levantando uma sobrancelha.

— Sim, mas… isso foi uma espécie de acidente.

— E daí?

Nevra hesitou, desviando o olhar, mas acabou por ensaiar um pequeno sorriso e encolher os ombros.

— Nada, não interessa…

— De certeza? — insisti, levantando ainda mais a sobrancelha.

— Sim, de certeza — fez mais um sorriso ao ver o meu ar duvidoso — Não é nada, a sério. Não te preocupes — olhou rapidamente em volta como se procurasse um novo assunto do qual falar — Bem, eu… tenho de avisar o Prefeito de que estás aqui… Fica à vontade para…

— Antes de ires — cortei-o quando o vi recuar para a porta —, podes mostrar-me onde é a casa de banho?

— Oh, claro, desculpa. É no piso de baixo. Anda, eu mostro-te.

Nevra levou-me até à dita casa de banho e eu tratei da minha higiene e das minhas necessidades à velocidade da luz para poder retornar ao quarto o mais rapidamente possível. Não sabia quem mais vivia na casa, mas não tinha a mínima vontade de descobrir… muito menos quando estava sozinha e completamente desprotegida.

O Mestre da Sombra não estava no quarto quando regressei, mas encontrei uma muda de roupa em cima da cama que com certeza não estivera lá antes. Uma camisola sem mangas e umas bermudas que presumi serem o meu pijama.

Troquei de roupa atrás de um biombo porque não queria que Nevra me surpreendesse a meio do processo, mas o vampiro continuava ausente quando terminei. Esperando que ele aparecesse em breve, dobrei e arrumei a minha roupa, amarrei o cabelo numa trança, abri a cama e afofei as almofadas, mas, de novo, ele não apareceu. Sentei-me na borda da cama e fiquei a mirar a decoração durante algum tempo, até me deixar seduzir pelas almofadas atrás de mim. Deitei-me de lado, virada para a porta, esperando vê-la abrir-se a qualquer instante. Não puxei as cobertas para cima de mim porque não queria encorajar a chegada do sono… mas não valeu de nada. Antes que desse por isso, estava profundamente adormecida.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Titanomaquia" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.