Titanomaquia escrita por Eycharistisi


Capítulo 64
LXII




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Definitivamente, devia ter continuado inconsciente… Não valia a pena abrir os olhos se a única coisa que me esperava era a dor de estar longe de Ashkore. A minha visão embaciada pelo mau estar não me permitia distinguir detalhes suficientes para perceber onde estava, mas sabia que não estava com o meu irmão. Só havia uma data de vultos indistintos em meu redor, debruçando-se sobre mim para me mirar mais de perto. Perguntei-lhes onde estava Ashkore e pedi-lhes para vê-lo, mas nenhum me respondeu ou acedeu ao meu pedido. Pelo contrário… Quando tentei meter-me de pé para procurar o titã, os vultos prenderam-me pelos tornozelos e pelos pulsos. Quando comecei a chamar o nome do meu irmão no meio da minha luta contra as cordas, silenciaram-me com um pedaço de tecido. Amarrada e amordaçada, o meu desespero cresceu até raiar a loucura e as alucinações não tardaram a assombrar-me. Ouvia a voz do meu irmão sussurrar no meu ouvido, sentia o seu toque fantasma em todo o meu corpo e sentia o seu hálito quente na minha face. Via o seu rosto em todo o lado, flutuando bem diante dos meus olhos, mas quando tentava tocá-lo, desfazia-se num remoinho de pó. As lágrimas deslizavam-me dos cantos dos olhos até às orelhas, a minha garganta parecia prestes a rasgar-se e o meu corpo inteiro doía de tanto lutar contra as cordas, mas não desisti de tentar alcançar Ashkore enquanto tive forças para me mexer. Parecia ter passado uma eternidade inteira quando finalmente cedi ao cansaço e mergulhei na escuridão.

O retorno dos meus sentidos foi lento, como se estivesse a regressar à tona da água depois de um longo mergulho. Não senti nada no início, além do aconchego da cama, mas, invariavelmente, as minhas inúmeras dores fizeram-se presentes. Parecia cimento a solidificar nos meus músculos, tornando-os cada vez mais hirtos e pesados. Nos meus pulsos e tornozelos, a dor era mais aguda e pungente, como se tivesse círculos de arame farpado nas extremidades dos meus membros. Sentia uma dor semelhante na minha garganta, como se me tivessem enfiado um ferro ferrugento pela boca abaixo, ressequindo e arranhando a carne sensível, e foi a vontade de lavar aquela sensação desagradável com uma bebida quente o que me fez finalmente abrir os olhos.

Demorei alguns segundos a focar a vista e a primeira coisa que vi foi uma parede de pedra cinzenta. Desorientada, fiz um esforço para rodar a cabeça para o outro lado e o movimento deve ter chamado a atenção de alguém, porque ouvi um movimento brusco à minha direita. Quando terminei de virar a cabeça nessa direção… vi Nevra de pé ao lado da minha cama, lançando-me um olhar arregalado.

— Acordaste… — murmurou num tom estranhamente cauteloso — C-como te sentes? Consegues falar?

Eu fiz uma pequena careta, sem vontade de sequer tentar empurrar a voz por aquela tira de lixa em que se tornara a minha garganta. A dor era tanta que, naquele momento, nem me importaria de ficar em silêncio o resto da vida.

— Não faz mal, não tens de forçar — apressou-se Nevra a dizer, erguendo as mãos num gesto apaziguador — O Ezarel presumiu que ficarias em mau estado depois da desintoxicação e está a preparar uma infusão para recuperares mais depressa. Vais ficar bem, não te preocupes.

Eu limitei-me a piscar os olhos. Desintoxicação? Do que é que ele estava a falar?

O som de uma porta a abrir-se distraiu-me das minhas questões. Atrás do vampiro, Leiftan estava a entrar na divisão com uma caneca fumegante na mão. No instante em que os nossos olhos se cruzaram, o investigador petrificou, parecendo surpreso por me encontrar acordada. Ficou em silêncio durante alguns instantes, até murmurar, enquanto fechava a porta:

— Estás acordada…

— Acordou mesmo agora — revelou Nevra antes de apontar para a caneca na sua mão — É a infusão?

Leiftan confirmou com um aceno e estendeu a caneca a Nevra. Em vez de a aceitar, o Mestre da Sombra veio até mim e ajudou-me a sentar com as costas recostadas contra a almofada. Depois de se certificar que eu estava confortável, pegou enfim na caneca.

— Bebe devagar — murmurou enquanto encostava a borda de porcelana aos meus lábios — Não tenhas pressa…

O primeiro gole foi difícil. A minha garganta estava tão magoada que qualquer movimento era doloroso. O líquido, que o vapor me levara a crer estar a ferver, estava na verdade gelado e o choque com os meus dentes também não facilitou a sua descida pela minha goela. Felizmente, a mistela fez efeito e o alívio foi quase imediato, não só reduzindo as minhas dores, mas também dando-me forças para me mexer e raciocinar devidamente. Nevra fez-me beber tudo até ao fim e, ao colocar a caneca vazia de lado, lançou-me um olhar expetante.

— Já consegues falar? — perguntou-me.

Eu pigarreei suavemente antes de tentar. A voz saiu-me baixa e enrouquecida, mas não me provocava incómodo:

— Acho… que sim…

— Ótimo — disse Leiftan, puxando uma cadeira que estava no canto e sentando-se ao lado da cama, com os braços apoiados nas costas do acento — Nesse caso, podes começar a explicar o que diabos tinhas na cabeça quando decidiste ajudar o titã a entrar em Eel.

— Leiftan, poupa-nos — pediu Nevra, num tom exasperado — A Eduarda acabou de acordar de uma desintoxicação, dá-lhe tempo para se recuperar. Além disso, tu sabes perfeitamente porque é que ela fez o que fez!

— Não, não sei — contradisse Leiftan, peremptório — A poção não explica todas as atitudes que ela tomou.

— E que outra explicação poderia haver?!

— Traição…

— A Eduarda não é uma traidora!

— E, no entanto, esteve os últimos dois meses ao lado do titã, conspirando contra nós!

— Ela não…!

— Do que é que… vocês estão a falar? — perguntei, desorientada.

Os dois homens concentraram-se em mim. Nevra parecia surpreendido, quase chocado, com a minha questão. Leiftan permaneceu indiferente. Eu devolvi-lhes o olhar com confusão enquanto esperava uma resposta. Finalmente, Nevra veio sentar-se ao meu lado, envolvendo cuidadosamente os meus ombros com um braço.

— É normal estares confusa depois do que aconteceu… Vamos por partes, está bem? Qual é a última coisa de que te lembras?

Eu franzi o sobrolho enquanto me tentava concentrar.

— N-não sei, eu… eu lembro-me que nós estávamos numa cidade… Ryss… e eu… fui até à sala do cristal para… libertar a titânide. Uma elemental disse-me como baixar o escudo e o Ashkore… o Ashkore… Onde… onde está o Ashkore?

Nevra e Leiftan trocaram olhares demorados.

— Porque queres saber? — inquiriu o investigador, voltando a fixar-me.

— Porque… estou preocupada com ele.

— Estás apaixonada por ele? — continuou Leiftan.

— C-claro, ele é… ele… é…

A minha voz perdeu o ímpeto enquanto eu me dava conta do vazio dentro de mim. Pensar em Ashkore sempre fizera o meu sangue correr mais quente, independentemente de quão inócuo era o pensamento, mas naquele momento… não havia nada. Não sentia nada, só um vazio negro e gelado. Porquê…? Porque é que eu não sentia nada? Ashkore era o homem da minha vida, não era? Então… porquê?!

Comecei a tremer e as lágrimas inundaram-me os olhos enquanto eu procurava desesperadamente pelos meus sentimentos pelo titã vermelho. A única coisa que encontrei foram os ecos distantes provenientes das minhas memórias… De resto, não havia nada… Rigorosamente nada!

Um soluço alto saltou-me dos lábios antes que o pudesse conter. Nevra envolveu-me de imediato num abraço apertado, tecendo suaves carícias no meu cabelo.

— Não… Eduarda… Por favor, não… Não chores por ele, aquele monstro não merece…

— O que… o que é que… se passa comigo? — perguntei por entre os soluços que me sacudiam o corpo todo — Eu não entendo… Eu… estou tão confusa!

— Eu sei, querida, eu sei… — murmurou o vampiro, sem parar as suas carícias.

— O titã deu-te uma poção do amor — disse Leiftan, num tom neutro — O Ezarel administrou-te um antídoto para expulsar a droga do teu corpo e estiveste os últimos três dias a passar por uma desintoxicação.

— Isso… não é… possível… não é… verdade… — solucei com dificuldade.

As palavras de Leiftan e a minha resposta automática fizeram-me lembrar de quando Lithiel me dissera a mesma coisa durante a viagem à Terra. Por arrasto, lembrei-me de tudo o resto. As memórias caíram em catadupa sobre a minha cabeça, como se a represa que as retia tivesse rebentado. Lembrei-me do meu tempo na colónia, da viagem à Terra, da dentada de Ashkore, da estadia na enfermaria, de Tadeu, de Ihlini e, finalmente… da batalha em Eel. Lembrei-me da dor que me prostrara, da aparição de Nevra e de Leiftan, da destruição da cidade, dos faeries mortos e feridos, e, acima de tudo… da minha culpa naquilo tudo…

— Vomi… tar — foi a única coisa que consegui dizer antes de a infusão percorrer o caminho inverso de há instantes atrás. Felizmente, Nevra era rápido e não teve dificuldades em desviar-se, encontrando ainda tempo para segurar o meu cabelo longe do meu rosto enquanto eu me debruçava sobre a borda da cama. As contrações das minhas entranhas pareceram durar uma eternidade, não cessando nem quando o meu estômago ficou vazio. Pelo contrário, intensificavam-se sempre que eu me lembrava dos cadáveres e dos feridos soterrados nos escombros das próprias casas, suplicando por ajuda. Aquela visão atormentar-me-ia para o resto da vida e eu sabia que merecia esse castigo. Afinal, fora culpa minha… tudo… culpa minha… As minhas mãos estavam tão manchadas pelo sangue inocente como as mãos de quem de facto tirara a vida a todas aquelas pessoas…

— Estás bem, Eduarda? — perguntou-me Nevra, movendo a sua mão em círculos nas minhas costas — Queres que chame o Ezarel?

Eu sacudi a cabeça e, com dificuldade, endireitei-me.

— A cidade… — grasnei, engasgada — O que aconteceu… à cidade? Aos faeries…?

— A cidade está reduzida a ruínas e metade dos seus habitantes estão mortos ou desaparecidos — revelou Leiftan, num tom severo — Graças a ti, o titã conseguiu o que queria: destruiu o cristal azul e tem uma nova titânide do seu lado. Saber isso deixa-te feliz?

— Não — murmurei, chorando e levando as mãos à cabeça — Não, eu não queria… eu não queria… Juro que não queria…! Perdoem-me… perdoem-me… perdoem-me…

— Tu assinaste uma promessa em como não compactuarias com a destruição deste mundo ou dos seres que o habitam — continuou Leiftan — Porque é que a quebraste?

— Eu… não sei — gemi, apertando os meus próprios cabelos entre os dedos — Eu não sei… Por favor… perdoem-me… perdoem-me… Eu só fiz o que o Ashkore me pediu. Só fiz o que ele me pediu…

— Podias ter recusado. Não eras obrigada a nada.

— Eu só quereria fazê-lo feliz…

— Estavas disposta a sacrificar a tua vida e um mundo inteiro pela felicidade de um só homem?

— Claro que estava — disse uma nova voz — Afinal, é justamente esse o efeito da poção do amor. Já não te tinha explicado isso, Leiftan?

Não levantei o olhar para ver quem era o recém-chegado, mas ouvi os seus passos vir até mim. Duas mãos suaves poisaram sobre as minhas e fizeram-me soltar os cabelos antes de uma delas descer até ao meu queixo. O sorriso sardónico de Ezarel entrou no meu campo de visão quando ele ergueu o meu rosto na direção do seu.

— Há quanto tempo, cuspideira! Tiveste saudades minhas?

Eu limitei-me a piscar os olhos, tentando conter as lágrimas. Não tinha alento para lidar com ele e as suas piadas naquele momento…

— Estás em péssimo estado — continuou o elfo, virando o meu rosto de um lado para o outro — Se o Nevra não me tivesse dito o que eras, acharia que eras uma banshee, de tão pálida e escanzelada!

— Ezarel, podes deixar o exame médico da Eduarda para depois? — pediu Leiftan — O efeito da poção está a passar.

— Qual poção? — perguntei enquanto Ezarel erguia as mãos em rendição e se ia sentar num cadeirão junto à porta.

— Havia um pouco de elixir da verdade misturado com a infusão que bebeste — revelou Leiftan — Portanto, nem sequer nos tentes mentir.

Eu soltei um pequeno suspiro. Era sempre a mesma coisa… Infelizmente, na atual situação, nem sequer podia censurá-los por recorrerem àqueles métodos.

— Força — incentivei-o — Pergunta o que quiseres…

Leiftan endireitou-se na cadeira.

— A poção do amor talvez explique porque quebraste a promessa e ajudaste o titã a entrar em Eel… mas não explica porque o ajudaste a soltar a titânide em Ryss e o acompanhaste até ao seu covil! Tu não estavas sob o efeito da poção nessa altura, estavas perfeitamente consciente daquilo que estavas a fazer e sabias muito bem quais seriam as consequências. Então, porque é que o fizeste, Eduarda?

Eu franzi o sobrolho enquanto os detalhes daquela noite me assomavam à memória… e uma raiva adormecida se reacendia no meu peito.

— Fi-lo por várias razões… e tu és uma delas! — atirei.

— O-o quê? — gaguejou o investigador, admirado — O que… queres dizer com isso?

— Eu ouvi a tua conversa com o Nevra — revelei — Quando vocês estavam a perguntar-se sobre onde eu estaria depois de ter usado a minha camuflagem? Pois bem, estava mesmo ao vosso lado! Eu ouvi-te dizer que só me deixaste viver para ser a isca do Ashkore… Eu ouvi-te dizer que o teu plano para atrair o meu irmão era matar-me!

Os olhos de Leiftan arregalaram-se ligeiramente.

— Tu… Isso… isso não explica porque…

— Não explica?! — exclamei, a raiva fazendo-me esquecer das dores e da fraqueza — Eu estava aterrorizada, Leiftan! A minha casca humana estava nas últimas, eu estava prestes a transformar-me no meio de uma cidade cheia de faeries que me matariam assim que me metessem a vista em cima e, justamente quando mais precisei do teu apoio, descobri que não eras diferente de nenhum deles! Tu mentiste-me, manipulaste-me, usaste-me desde o início! Tu eras a única pessoa em quem eu confiava, meti a minha vida nas tuas mãos e, afinal, o teu plano sempre foi matar-me! Diz-me, Leiftan, o que esperavas que fizesse?! Esperavas que fosse desabafar contigo depois de saber que me querias matar?! Esperavas que me compadecesse das mesmas pessoas que me queriam ver apodrecer?! Lamento dizer-te, Leiftan, mas, entre ficar à mercê daqueles que me queriam mal ou ajudar um titã que me prometia um regresso a casa, a escolha pareceu-me bastante óbvia!

O meu discurso foi recebido em silêncio pelos três faeries. Leiftan baixara o olhar para o chão, parecendo não ter coragem para me encarar. Nevra desviara o olhar para o poisar no investigador com o que me parecia recriminação. Ezarel era o único que me fixava, com um misto de curiosidade e concentração, como se estivesse a tentar dissecar-me com o olhar.

— Compreendo que estivesses assustada e perdida, Eduarda, mas o Leiftan não era o único em quem podias confiar — disse Nevra, sem desviar o olhar do colega — Podias ter falado comigo…

— Digamos que eu também não estava com muita vontade de confiar em ti naquele momento — informei num tom azedo.

— O quê? Porquê? — admirou-se o vampiro, parando de fuzilar Leiftan para se concentrar em mim.

— Eu tinha tido uma conversa muito interessante com a Karenn nessa manhã… Uma conversa que me fez concluir que tu só me levaste para o teu quarto porque querias descobrir o que estava a acontecer debaixo da minha roupa, depois de a Karenn ter parado de te informar sobre esse assunto!

Nevra engoliu em seco e desviou o olhar para os próprios pés enquanto Ezarel soltava um longo “oh” surpreendido.

— Tu chamaste-me para o teu quarto para poderes espreitar a minha pele enquanto eu dormia, não foi? — continuei, semicerrando desconfiadamente os olhos — Arrastaste-me para a cerimónia de Honra do cristal em Ryss porque querias ver qual seria a minha reação diante do espírito dele… Querias ver se eu tentaria consumi-lo ou resistiria à tentação!

Nevra baixou a cabeça.

— Infelizmente, não posso desmentir o que dizes… — murmurou — Mas, Eduarda… devias ter confiado mais em mim. Se eu não te matei nem denunciei depois de descobrir o que eras…

— Não me venhas com lérias, só não o fizeste porque tinhas outros planos para mim! – cortei.

— Isso não é verdade! Se ouviste a minha conversa com o Leiftan, sabes que nunca tive intenção de te matar!

— Eu não sabia de nada! — vociferei, esmurrando o colchão debaixo de mim antes de as lágrimas me inundarem os olhos — Eu não sabia de nada… Estava tão confusa, tão assustada… Já não sabia o que fazer nem em quem confiar! Quando a Rubih apareceu e disse que o meu irmão me levaria de volta a casa se eu o ajudasse a libertar a Ihlini, eu… eu achei que era a minha única hipótese…

— Se ainda estás em Eldarya, presumo que o teu irmão não tenha cumprido a sua parte do acordo — comentou Ezarel.

— Não era assim tão simples — expliquei, fungando levemente — A minha transformação ficou concluída nessa noite, não podia voltar à Terra naquele estado. Eu não conseguia sequer sair do meu quarto, quanto mais atravessar o portal…

— E depois? — insistiu o elfo.

— Depois o quê?

— Porque é que o titã não te levou de volta à Terra depois de aprenderes a assumir forma humana?

— Eu… estava muito confusa… tinha muitas questões pendentes em Eldarya… e, entretanto, descobrimos que… — engasguei-me na minha saliva e comecei a tossir quando a minha língua deixou subitamente de me obedecer. Nevra mexeu-se como se estivesse prestes a aproximar-se, mas pensou melhor e ficou onde estava.

— Não nos tentes mentir, Eduarda — aconselhou Leiftan — Não te esqueças que estás sob o efeito de um elixir da verdade.

Eu franzi o sobrolho, confusa. Eu não estava a mentir, estava a contar-lhes sobre o facto de Lee ser capaz de ver os seres elemen…

Arregalei ligeiramente os olhos quando entendi qual fora o problema. A história que estava a contar era verdadeira… mas a maneira como eu tentara formular a frase escondia uma mentira. Eu estivera prestes a dizer “o Lee”… e usar um artigo masculino para me referir a alguém que sabia ser uma rapariga seria mentir sobre o seu género!

Mordi o interior das minhas bochechas, vendo-me no meio de uma alhada. Lee pedira-me para manter segredo sobre a sua verdadeira identidade e eu não pretendia quebrar a promessa, mas se continuasse a falar na ninfa, invariavelmente, a verdade acabaria por me saltar da boca. Talvez pudesse evitar referir Lee no meu relato? Isso não seria uma mentira, pois não? Seria uma mera omissão sem importância…

Aliás, falando em Lee, onde estaria ela? E Lithiel? Eu não via nenhuma das duas há um bom tempo, tivera tanto em que pensar que nem me lembrara de visitá-las ou perguntar por elas… Estariam ainda nas masmorras da colónia…?

— Eduarda? O que é que vocês descobriram? — insistiu Ezarel, quando me viu perdida em pensamentos.

Eu humedeci nervosamente os lábios, ponderando as minhas próximas palavras.

— Nós… nós descobrimos que havia mais nove titãs na Terra.

— O quê? — disseram os três homens em uníssono, perplexos.

— O meu irmão queria recrutar os novos titãs para a sua causa, mas ele não podia ir buscá-los à Terra sem enfrentar a ira dos nossos Pais — continuei antes que eles tivessem oportunidade de fazer mais perguntas — Por isso, o Ashkore pediu-me para procurar os titãs por ele. Eu não queria ir, não estava pronta para voltar à Terra e tinha medo do que ele faria com nove novos titãs do seu lado, mas… eu… eu não sei — hesitei, confusa — Eu tinha um plano… um plano para entregar o esboço de um tratado de paz aos faeries, mas… o meu irmão… disse… ele disse algo que me fez mudar de ideias…

— O que disse ele? — perguntou Ezarel.

Franzi ligeiramente o sobrolho.

— Eu… não me lembro bem — murmurei, esfregando lentamente a testa, como se isso me ajudasse a relembrar.

— Faz um esforço.

Sacudi a cabeça, frustrada. Eu estava a esforçar-me, mas as únicas memórias claras sobre essa tarde eram as do beijo trocado com o titã. Memórias que aqueceram o meu peito, mas também me deixaram um gosto amargo na boca. Era estranho… Eu tinha uma vaga ideia de entrar no escritório do titã com medo dele… mas terminara a beijá-lo como se a minha vida dependesse disso. Não fazia sentido…

— Tu comeste ou bebeste alguma coisa antes dessa conversa que te fez mudar de ideias? — perguntou Ezarel, trazendo-me de volta à realidade.

— Ah… S-sim… — confirmei, confundida pela pergunta — O Ashkore convidou-me para lanchar com ele…

— Caso resolvido, então — disse Ezarel, cruzando as pernas compridas com ar satisfeito.

— C-como assim, caso resolvido?

— Perdas de memórias são um dos efeitos colaterais das poções do amor, principalmente nos primeiros minutos após a sua ingestão. Isso e a tua súbita mudança de ideias sobre um assunto tão sério não deixam dúvidas quanto ao facto de ter sido nesse momento que ele te fez beber a poção…

— N-não! O Ashkore… o Ashkore não me faria isso!

— Oh, mas fez. Tu não terias passado os últimos três dias a purgar o veneno no teu organismo se ele não te tivesse dado nada.

— Se eu já me livrei do “veneno”, porque é que sinto tanto a falta dele? — perguntei num tom desafiador.

— É a dependência da droga que te faz sentir assim. Irá demorar mais alguns dias até voltares completamente ao normal.

— Eduarda — chamou Nevra, interrompendo a minha conversa com o elfo — Tu disseste que mudaste de ideias sobre ir buscar os titãs à Terra. Isso quer dizer que… trouxeste titãs da Terra para Eldarya?

— Ah… bem…

— Trouxeste? — insistiu o vampiro, inquieto.

— S-sim… — admiti a medo.

— Quantos?

— Só um.

Nevra e Leiftan soltaram pequenos suspiros trémulos.

— Felizmente… Mesmo assim, quatro titãs é um número assustador — ponderou o vampiro.

— A propósito, Eduarda… como descobriste que havia mais nove titãs na Terra? — perguntou Leiftan.

Eu cerrei os maxilares, lutando contra a poção que me compelia a responder com a verdade. Leiftan fora logo fazer a pergunta que eu mais queria evitar! Eu não lhes podia dizer que fora Lee quem nos contara sobre os titãs na Terra, isso com certeza conduziria a questões muito comprometedoras! Infelizmente, o elixir da verdade era mais forte do que eu e as palavras começaram a sair-me da boca sem que as pudesse controlar:

— F… f-foi… foi… a…

— Não tentes lutar contra a poção — recomendou-me Leiftan — Só te fará sofrer desnecessariamente.

A veia na minha têmpora começou a martelar-me o crânio enquanto eu segurava o nome de Lee na ponta da língua. Não a podia entregar assim… Não podia! Tinha de haver outra maneira… uma saída…

— F-foi… foi a… ninfa! — quase cuspi — Foi a ninfa… quem nos contou…

Os três faeries retesaram-se e lançaram-me olhares muito sombrios.

— Há ninfas em Eldarya? — perguntou Leiftan num tom baixo que me provocou calafrios.

— E-ela disse que era a única…

— Como é que ela entrou aqui? — inquiriu Ezarel.

— N-não sei…

— Onde é que ela está agora? — questionou Nevra.

— Não sei, a última vez que a vi, estava trancada nas masmorras da colónia.

— O Ashkore não a matou? — admirou-se Leiftan, erguendo uma sobrancelha.

— Ele tentou… mas eu não deixei.

— Nunca pensei que diria isto, mas estou do lado do titã no que se refere à ninfa — disse Ezarel — Nós já temos problemas que chegue, não precisamos de um bando de ninfas a piorar as coisas.

Eu comprimi os lábios, lutando contra a vontade de defender Lee. Custava-me ouvi-los falar daquela maneira, mas eles não sabiam quem era a ninfa e eu deveria deixar as coisas assim. Quanto mais aquela conversa se estendesse, maiores eram as probabilidades de deixar escapar o que não devia. O melhor era não arriscar e ficar calada. Perguntava-me, porém, como eles reagiriam se soubessem que a tal ninfa era o “elfo” com quem eles tanto tinham convivido…

O meu estômago soltou um ronco escandaloso, fazendo-me corar violentamente. Ezarel soltou um risinho divertido.

— Já terminaste o interrogatório, Leiftan? — perguntou — A cuspideira precisa de comer e dormir e eu tenho um relatório médico para preencher…

— Só tenho mais uma questão — disse o investigador antes de me encarar com uma expressão severa — Quais serão os próximos passos do Ashkore? Onde e quando será o próximo ataque?

— N-não sei… Ele não costumava falar sobre esses assuntos comigo…

— Não sabes nada sobre os seus planos? — estranhou Leiftan.

— Além da sua intenção de libertar os titãs presos nos cristais… não, não sei nada.

Leiftan fixou-me por uns instantes, duvidoso, mas o elixir da verdade que ele misturara com a minha infusão não lhe deixou outra opção senão acreditar em mim. Soltando um pequeno suspiro desapontado, levantou-se.

— Eu vou relatar à Miiko o pouco que descobrimos aqui. Podes prosseguir com o exame médico, Ezarel. E, Eduarda… — acrescentou, olhando-me de lado — Tu és nossa prisioneira e não estás autorizada a sair deste quarto até eu ou a Miiko decidirmos o contrário. Se não acatares essas condições… teremos de tomar medidas drásticas. Fiz-me entender?

Eu assenti. Leiftan lançou-me um último olhar de aviso e saiu do quarto. Ezarel levantou-se com um pulo animado e um sorriso maquiavélico, dobrando as mangas da sua camisa até ao cotovelo.

— Ora bem, vamos lá começar…

— P-porque é que estás a olhar assim para mim? — perguntei ao elfo, amedrontada, puxando nervosamente as cobertas da cama até ao pescoço.

— Eu sempre quis examinar uma titânide…

— E-espera aí… O-o que é que me vais fazer? — Ezarel avançou na minha direção sem desfazer o sorriso — N-não me toques! Nevra…!

O vampiro comprimiu os lábios, parecendo estar a conter um sorriso, e encaminhou-se para a porta.

— Eu vou buscar qualquer coisa para comeres, volto já…

— Não! Nevra, não me deixes sozinha com ele! — a única resposta foi o som da porta a fechar-se atrás do vampiro. O sorriso de Ezarel alargou-se — N-não! NEVRA!!


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