Titanomaquia escrita por Eycharistisi


Capítulo 65
LXIII




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Ezarel adotou uma postura surpreendentemente profissional quando decidiu parar com as suas piadas ridículas, mas eu continuei a olhá-lo com desconfiança durante todo o exame. Como poderia ter a certeza de que ele não me tentaria tirar um pedaço para estudar em laboratório quando nem sequer sabia do que se tratavam metade dos procedimentos a que ele me submetia? Se o elfo tivesse agarrado algum instrumento mais ameaçador do que a seringa com que recolheu sangue do meu braço, tê-lo-ia pontapeado na cara sem hesitar!

O exame médico terminou com Ezarel a trocar os curativos que eu não notara ter nos pulsos e tornozelos durante o questionamento de Leiftan. Tocando-me com um cuidado que me parecia estranho vindo dele, o elfo desenrolou as ligaduras… e eu esbugalhei os olhos ao ver a carne dilacerada e macerada escondida sob a gaze.

— O que é que me aconteceu…? — perguntei, horrorizada.

— Ficaste muito… alterada durante a desintoxicação — disse Ezarel, sem desviar o olhar do que estava a fazer — Tivemos de te amarrar e isto é o resultado das tuas tentativas de te libertares.

— Ah…

— Não te preocupes, estarás como nova dentro de alguns dias. Mas tenho de admitir que estou um pouco desapontado. Pensei que seres poderosos como os titãs teriam uma cicatrização mais acelerada.

— Nós temos, mas… acho que os meus níveis de Maana estão demasiado em baixo para isso…

— Ah, estou a ver… Estavas mesmo em muito mau estado quando te trouxemos para aqui. Fisicamente, continuas um desastre, mas, em questão de Maana, melhoraste imenso nos últimos três dias. É meio contraditório os teus níveis de Maana terem subido durante uma desintoxicação tão severa, mas acho que não podia esperar outra coisa com o Nevra e o Leiftan praticamente acampados ao teu lado…

— O-o quê? O que queres dizer com isso?

Ezarel terminou de tratar os meus pulsos e virou-se para os meus tornozelos.

— Eu sei que os titãs produzem Maana através dos sentimentos dos faeries — disse ele — e não restam dúvidas de que aqueles dois têm sentimentos fortes por ti! O Nevra recusou-se a deixar-te sozinha naquele estado e o Leiftan parecia uma barata tonta, sempre a ir e vir da sala da Miiko. Ele dizia que só vinha ver se a desintoxicação já tinha terminado, mas acho que o facto de ele não conseguir ficar longe de ti durante mais de quinze minutos sugere outra coisa…

— Que… coisa?

— Não é óbvio? Ele estava preocupadíssimo contigo! Ficava branco como a cal sempre que te via contorcer e convulsionar, mas nem por isso desviava o olhar. Era capaz de ficar vinte minutos sentado naquela cadeira, só a olhar para ti.

Eu baixei o olhar, matutando nas palavras do elfo. De novo, as atitudes de Leiftan para comigo não faziam sentido nenhum. O que queria ele de mim, afinal…?

A entrada de Nevra distraiu-me dos meus pensamentos. No mesmo instante, Ezarel deu o exame por terminado e deixou-me sozinha com o vampiro depois de me recomendar descanso.

— Trouxe-te um creme de cenoura com arroz — anunciou o Mestre da Sombra, poisando um tabuleiro com comida nas minhas coxas — Não é muito, mas… temos de dar tempo ao teu corpo para se recompor depois do que aconteceu.

Eu limitei-me a concordar com um aceno e concentrei-me na tigela fumegante diante do meu nariz. Ao levar a primeira colherada à boca, soltei um murmúrio de contentamento. Era mesmo daquilo que eu estava a precisar…

— Posso… sentar-me ao teu lado?

Detive a segunda colher de sopa a meio caminho da boca para lançar um olhar surpreendido ao vampiro. Ele devolveu-me o olhar, expetante e um pouquinho nervoso.

— Não me lembro de alguma vez teres pedido permissão para esse tipo de coisa — comentei, continuando a comer.

Nevra fez um pequeno sorriso.

— Eu sei… mas não me vou esticar desta vez. Sei que estás confusa por causa da poção do amor e… não quero arriscar estragar tudo agora.

— Estragar o quê?

Nevra soltou um pequeno suspiro e puxou a cadeira onde Leiftan estivera sentado, acomodando-se ao meu lado.

— A poção talvez te tenha feito esquecer, mas… nós tínhamos uma relação antes de partires com o titã.

— Nós não tínhamos uma relação — neguei com azedume — Tu seduziste-me para poderes espreitar a minha pele…

— Não foi só isso — cortou-me o vampiro, sério — O que aconteceu entre nós naquela noite… foi sentido. Nunca tive a oportunidade de to dizer antes, mas, eu… eu… — um discreto tom de vermelho aflorou as suas maçãs do rosto — Eu gosto de ti, Eduarda. Gosto… muito de ti. No início, era só sobre o cheiro do teu sangue, mas com o tempo… tornou-se algo mais. Não te sei dizer quando aconteceu. Eu só comecei a dar-me conta dos meus próprios sentimentos quando te vi com o Leiftan e só percebi quão profundos eram quando… — Nevra fechou os olhos, soltando um suspiro trémulo — quando te senti definhar nos meus braços. Acredita, Eduarda, nunca, em toda a minha vida, me senti tão assustado como naquele momento. Se o Leiftan não tivesse aparecido e não te tivesse libertado da promessa… tu já não estarias aqui. Ter-te-ia perdido naquele dia…

— O que é que me aconteceu, exatamente? — perguntei num murmúrio, abananada pela sua confissão. Eu não estava pronta para lidar com aquilo naquele momento…

Nevra passou a mão pelo rosto.

— Não há muito para ser dito. Quebraste uma promessa assinada com sangue e foste punida por isso. Se o Leiftan não te tivesse libertado, terias continuado a esvair-te até à morte…

— Esvair-me?

— Provavelmente não te lembras, mas estavas a vomitar quando te encontrei…

— Eu lembro-me, mas o que é isso tem a ver com esva…?

— Sangue, Eduarda — cortou-me Nevra — Estavas a vomitar sangue — sacudiu a cabeça como se estivesse a afastar a memória — Foi horrível… Não parava de te sair em jorros pela boca… Acho que foi a primeira vez que não me senti tentado pelo cheiro de sangue.

Eu limitei-me a fixar Nevra, sem saber o que dizer ou sequer pensar. Ele realmente parecia abalado pela lembrança e eu queria acreditar que ele estava a ser sincero, mas, depois de tudo o que tinha acontecido, depois do que eu tinha feito… tinha sérias dúvidas de que os seus sentimentos permanecessem os mesmos. Não importava o quanto Nevra gostava de mim, ele não podia negar a minha culpa…

Uma suave batida na porta fez-nos olhar na sua direção e, sem esperar por licença, a Sacerdotisa da Guarda Reluzente entrou. Estava em péssimo estado, pálida e magra, exibindo olheiras profundas e parecendo estar a usar o seu cajado como muleta. Atrás dela vinha uma mulher que eu nunca antes vira. A sua pele acastanhada era evidenciada pela vestimenta vermelha e dourada. Os cabelos castanhos tinham uma coloração meio acobreada, emoldurando o seu corpo sumptuoso até à cintura. Os olhos alaranjados fixaram-se nos meus com uma intensidade que poderia ser facilmente confundida com hostilidade.

— Miiko, Huang Hua — reconheceu Nevra, levantando-se — Não esperava que viessem tão cedo.

A mulher desconhecida torceu a boca num discreto trejeito.

— É verdade que teríamos preferido esperar até ela estar completamente lúcida, mas temo que não possamos perder mais tempo…

— Podes dar-nos um minuto, Nevra? — pediu a Sacerdotisa, num tom grave — Gostaríamos de falar com ela a sós.

Nevra lançou-me um discreto olhar hesitante, mas assentiu e saiu do quarto. Pressentindo que o assunto era sério, desviei o olhar de Miiko e da sua acompanhante para poisar o tabuleiro com a tigela meio vazia na mesa-de-cabeceira ao meu lado. Quando voltei a concentrar-me nas duas mulheres… vi-as ajoelhadas sobre o tapete no meio do quarto. Eu endireitei-me, confundida e chocada com o seu comportamento.

— Miiko? O que é que…?

— Por favor, ilustre titânide — murmurou a mulher desconhecida, curvando-se até tocar com a testa nas mãos que dispusera num triângulo diante dos joelhos — Nós imploramo-vos… salvai o nosso povo…

— O… quê…?

— Nós prostramo-nos aos vossos pés para suplicar por perdão por todo o sofrimento que vos provocámos e aos vossos irmãos. Por favor, sede clemente e confiai na palavra destas humildes servas quando dizemos que nunca tencionámos molestar a vossa família. A Sacerdotisa Miiko teve somente o azar de herdar uma mentira mais velha do que qualquer um de nós, uma mentira que parecia impossível reverter de forma pacífica e indolor. Assistir ao tormento da titânide Sirsha corroeu a Sacerdotisa Miiko desde o primeiro dia, mas era-lhe impossível socorrer a vossa irmã sem ameaçar a harmonia e o equilíbrio deste mundo. Por favor, tentai compreender, sublime titânide… A Sacerdotisa Miiko apenas optou por aquele que pareceu ser o menor de dois males… tal como planeamos fazer neste momento. Nós sabemos que estais fraca e confundida, mas vós sois a nossa última e única esperança. O titã Ashkore ameaça lançar a destruição sobre as nossas cabeças e nós não temos mais ânimo para lhe fazer frente e aos seus adeptos. Se pretendemos sobreviver à sua próxima investida… precisamos da vossa ajuda, senhora. Eu ouvi da boca dos vossos consortes quão benevolente e justa sois, por isso, sustento a fé de que ireis escutar o nosso sincero e modesto apelo… Por favor, titânide, nós suplicamo-vos… salvai o nosso povo…

O meu olhar saltitou de uma mulher para a outra, atónita. A mulher desconhecida manteve-se completamente curvada, esperando pacientemente pela minha resposta. Miiko tentava manter-se direita, mas os ombros descaiam a par com a cabeça e as mãos cerradas sobre as coxas tremiam como varas verdes.

— Vocês… estão a pedir-me para enfrentar o meu irmão? — inquiri num tom quase tão baixo quanto um murmúrio.

— Infelizmente… sim, ilustre titânide — confirmou a mulher — É isso mesmo que estamos a pedir-vos. Por favor, tende piedade de nós…

— Piedade? — repeti, soltando um risinho sem humor — É uma piada, certo?

— N-não, titânide…

— O vosso descaramento é inacreditável — continuei, a voz subindo de tom sem que a pudesse controlar — Vocês estão mesmo a pedir-me para ter piedade dos seres que torturaram os meus irmãos durante centenas de anos e que teriam feito o mesmo comigo se eu não tivesse fugido?! Estão a tentar fazer de mim parva?!

— É claro que não, titânide, por favor, tentai compreender…

— Nós não tivemos escolha! — exclamou Miiko, interrompendo a sua acompanhante para se pronunciar pela primeira vez desde que Nevra saíra. A sua voz tremia tanto como as suas mãos — Eu… não tive escolha… Eu não sabia… Eu só descobri a verdade sobre a Titanomaquia depois de ser proclamada Sacerdotisa. Faz parte da cerimónia de sucessão assinar uma promessa inquebrável com o nosso antecessor, na qual o novo Sacerdote se compromete a manter as coisas exatamente como estão. Eu assinei essa promessa… sem sequer saber o que realmente significava! Se eu soubesse que estava a prometer manter pessoas presas dentro dos cristais, mesmo essas pessoas sendo titãs, jamais teria assinado! Juro! Eu… eu não podia concordar com o que os nossos antepassados tinham feito quando era diariamente confrontada com o desespero estampado no rosto da titânide do cristal azul. Fiquei noites inteiras diante dela, pensando no que poderia fazer para aplacar o seu sofrimento, mas… mesmo que não tivesse assinado uma promessa que me mataria se a quebrasse, que benefícios traria ao nosso mundo soltar os titãs? Eles nunca nos perdoariam pelo tempo que estiveram nos cristais, a sua ira desabaria sem misericórdia sobre as nossas cabeças… Seria a nossa ruína… Nós não teríamos onde nos esconder ou fugir, estávamos completamente encurralados! Nós estamos completamente encurralados! Não temos mais forças para parar o titã de Darr… e o maldito está tão empenhado em exterminar-nos que até se prontificou a sacrificar a própria irmã…!

— A própria irmã? — repeti — De que irmã estás a falar?

Miiko ergueu os olhos cheios de lágrimas na minha direção.

— Não é óbvio? Estou a falar de ti!

— O Ashkore não me sacrificou!

— Não? Pensa de novo, Eduarda… Tu não tiveste de quebrar uma promessa assinada com sangue para derrubares os escudos da nossa cidade, como ele te pediu para fazeres?

— Eu… eu não pensei que isso fosse o suficiente para quebrar a promessa… e o Ashkore…

— Ele sabia da promessa, não sabia? — continuou a mulher-raposa — Não me parece que um titã tão astuto como ele deixaria escapar um detalhe desses…

Eu trinquei o lábio inferior com força. Sim, Ashkore sabia da promessa… Ele vira a marca na minha mão no dia em que eu me transformara por completo. Fora, aliás, por causa da promessa que ele nunca insistira em fazer-me participar no conflito armado… isto é… nunca insistira até eu regressar da viagem à Terra…

— I-isso não quer dizer nada — murmurei num tom menos convincente do que gostaria — Como poderia o Ashkore saber que a promessa seria quebrada se eu baixasse os escudos?

— Ele saberia — garantiu Miiko num tom muito sério — Muitos dos procedimentos místicos existentes no nosso tempo foram inventados ou aprimorados pelos titãs. Ele saberia…

— Não — teimei uma última vez — O Ashkore… jamais me faria isso…

— Oh, por favor! Acorda, Eduarda! — exclamou a Sacerdotisa, impaciente, fazendo a mulher desconhecida sussurrar o seu nome em tom de aviso — O titã fez-te beber uma poção do amor! Isso não é prova suficiente da sua má índole?! Ele deu-te uma poção proibida para retorcer o teu raciocínio e poder controlar-te!

— Não…

— Ele usou-te, Eduarda! Ele estava perfeitamente consciente de que estava a enviar-te para a morte certa em Eel, mas não se compadeceu de ti, porque, para ele, nunca passaste de um peão descartável…!

— Para! — berrei, apertando a cabeça entre as mãos trémulas — Para… de falar… mentirosa…

— Eu não estou a mentir… e tu não tardarás a ver a verdade também — Miiko levantou-se com dificuldade, apoiando-se no seu cajado e contendo discretas caretas de dor. A sua acompanhante não se mexeu — Vou deixar-te em paz, por enquanto… Estarei de volta amanhã para saber se estás mais lúcida. Entretanto, pensa com cuidado naquilo que pretendes fazer daqui para a frente. Nós não vamos mais tolerar obstáculos à nossa existência, Eduarda. Espero que compreendas…

Dito isto, Miiko deu meia volta e saiu do quarto com passadas amplas que evidenciavam o seu coxear. Depois de a porta se fechar atrás da líder da Guarda Reluzente, eu e a mulher desconhecida ficámos imóveis e em silêncio até ela decidir quebrá-lo:

— Perdoai a Sacerdotisa Miiko, ilustre titânide. Os eventos recentes deixaram todos nós emocionalmente instáveis, mas garanto que não era intenção da Sacerdotisa Miiko desrespeitar-vos…

— Quem é você? — cortei com um murmúrio que saiu mais vacilante do que arreliado. Não estava com paciência para ver ou ouvir fosse quem fosse. Queria ficar sozinha para matutar nas barbaridades que Miiko dissera… mas que faziam um estranho e aterrorizante sentido na minha cabeça.

— O meu nome é Huang Hua dos Ren-Fenghuang, titânide. Sou uma aprendiza de Fénix e uma amiga de longa data da Sacerdotisa Miiko.

— E porque é que ainda está aqui, senhora? Não deveria ter ido embora com a Miiko?

A mulher com o nome estranho hesitou, mas acabou por se endireitar, olhando-me nos olhos.

— Lamento, titânide, mas não pretendo sair daqui enquanto não esclarecermos o futuro de Eldarya e dos faeries. Sei que estais fraca e confusa, seria muito mais gentil da minha parte deixar-vos descansar, mas este é um assunto demasiado sério para ser adiado. Nós precisamos de garantias…

Eu soltei um suspiro exasperado, deixando-me cair contra as almofadas atrás de mim.

— O que é que vocês querem de mim? Porque não me deixam em paz…?

— Nós queremos a vossa ajuda, titânide.

— Vocês querem que eu cace os meus próprios irmãos.

— De facto, é um pedido insensível e injusto, quase cruel… mas tendes de concordar connosco em como aprisionar os titãs de novo nos cristais é o melhor desfecho possível. As restantes alternativas conduzirão, invariavelmente, ao desaparecimento de uma das nossas espécies: os faeries ou os titãs. Não nos vamos iludir, titânide. O vosso irmão está a iniciar um extermínio em massa e nós, faeries, não temos a menor intenção de nos rendermos à morte sem lutar. Se deixarmos este conflito estender-se, milhões de vidas serão desnecessariamente perdidas. Por outro lado… se nos concentrarmos somente em aprisionar novamente os titãs, estaremos a salvar inúmeras pessoas da morte, inclusive os próprios titãs…

— Ficar enclausurado dentro de um cristal, sendo drenado até ao tutano dos ossos, é um destino pior do que a morte — cortei num tom seco — Não se atrevam a encarar isso como uma vida poupada…

— Lamento, titânide… mas é o melhor que temos para oferecer…

— A propósito — continuei, franzindo o sobrolho — Vocês estão a pedir-me para vos ajudar a aprisionar os meus irmãos, mas eu também sou uma titânide. Quais são os vossos planos para mim quando tiver feito o meu trabalho? Estão a planear prender-me com os meus irmãos quando for a única titânide em liberdade?

— Jamais vos faríamos tal desfeita, ilustre titânide. Se aceitardes lutar ao nosso lado, deixar-vos-emos retornar à Terra, como sempre quisestes.

— E se eu não aceitar?

A mulher hesitou, baixando o olhar para o próprio colo.

— Não vos sei dizer, titânide…

— Lérias. Se és amiga da Miiko, com certeza sabes o que ela tem planeado para mim. Fala.

— N-nada foi efetivamente determinado, titânide… mas… deveis estar consciente de que não podemos permitir que retorneis para o lado do titã.

— Por isso, vão prender-me ou matar-me — concluí.

A mulher fechou brevemente os olhos antes de murmurar:

— Lamento…

Eu soltei mais um suspiro exasperado. Porque é que eu acabava sempre presa entre a espada e a parede? Eu entendia que os faeries me quisessem punir pelos meus crimes e estava mais do que disposta a compensá-los, se era isso que eles queriam… mas não daquela forma. Eu não tinha a mínima vontade de lutar contra o meu irmão. Independentemente daquilo com que os faeries me intimidassem, independentemente daquilo que diziam que Ashkore me tinha feito, independentemente de quão responsável me sentia pela sua desdita… eu não queria enfrentar o meu irmão. Muito menos aceitaria condená-lo novamente à tortura do cristal. Eu não podia fazer isso. Não podia… Por outro lado, também não tinha desejo algum de me colocar novamente ao lado do titã e assistir ao extermínio dos faeries. Eu também não podia fazer isso. Estava cansada de tudo aquilo, das mentiras, das artimanhas, dos conflitos… das mortes… Não queria voltar a sentir-me como me senti após deixar Ashkore entrar em Eel. Não queria voltar a sentir aquela culpa torturante. Eu… só queria ir para casa… Infelizmente, nem isso me era permitido, agora que Úrano e Gaia me tinham incluído na sua lista negra.

O que faria? O que faria? Não me restava nada…

— Eu não pretendo exterminar os faeries — murmurei num tom quase inaudível —, mas também não pretendo lutar por vocês. Eu… só me quero ver livre de todos vocês…

— Infelizmente, tal não é possível, titânide. Estais demasiado envolvida no problema para poderdes dar-vos ao luxo de permanecer neutra.

— Não me posso dar ao luxo de escolher um lado — repliquei — Não pretendo enfrentar o meu próprio irmão por vossa causa, não tenho razões para lutar por vocês… mas também não posso concordar com o que ele está a fazer…

— Eu entendo que não tenhais razões para lutar pela raça faery e que vos custe enfrentar a vossa família, titânide — garantiu a mulher — Mas… não estais disposta a lutar pela vida dos vossos amigos e consortes?

— Que amigos? — volvi num tom desalentado — Que consortes?

— O Mestre Nevra, o Emissário Leiftan e o menino Adonis são os vossos consortes, não é verdade? Além disso, a menina Karenn também parece ter-vos na mais alta estima e, se não me engano, o menino Chrome partilhava da opinião dela. Não quereis lutar em sua memória?

As suas palavras atingiram-me como um murro no estômago. O meu sangue pareceu solidificar nas minhas veias e uma tontura fez estremecer a minha visão.

— Me… mória…? — balbuciei a medo — Memória… de quem? Do… Chrome? Ele… ele…? 

A expressão no rosto da aprendiza de Fénix tornou-se subitamente triste e apreensiva.

— Ah… parece que não vos informaram ainda…

— O que aconteceu ao Chrome? — perguntei, cada vez mais agitada.

— Não tenho a certeza se serei a pessoa certa para vos informar sobre…

— O que aconteceu ao Chrome?! — quase gritei.

A mulher hesitou, mas encheu o peito com o que me pareceu ser um fôlego de coragem.

— O menino Chrome é um dos desaparecidos em combate — revelou — É devastador dizê-lo, mas não alimentamos qualquer esperança de que esteja vivo…

Eu levei a mão à boca, tentando conter as náuseas que me assolavam. As lágrimas desciam com tal abundância pelo meu rosto que a figura da mulher se tornou um borrão vermelho e castanho.

Chrome… podia estar morto… e era culpa minha…

— Quem… quem mais está… desaparecido? — inquiri com dificuldade, respirando aos arrancos.

— Várias centenas de faeries. Não sei quantos eram vossos conhecidos, mas acredito que cruzastes caminho com o bibliotecário Keroshane, a enfermeira Eweleïn e o chef Karuto? Não sei se vos interessa saber também, mas o Comandante Valkyon e o Oficial Jamon sofreram ferimentos severos. Felizmente, já estão fora de perigo. A Sacerdotisa Miiko, como pudestes ver, também não escapou ilesa… e eu mesma só não me feri com maior gravidade graças à destreza do meu guarda pessoal.

Um soluço incontrolável escapou-se-me dos lábios e eu cobri o rosto com as mãos trémulas.

Tudo… culpa minha… Sentia-me tão mal que, naquele momento, acreditei mesmo que o arrependimento podia e ia matar-me. E eu nem tinha ânimo para me importar com isso…

A aprendiza de Fénix não se pronunciou durante vários instantes, deixando que os meus soluços abafados fossem o único som a cortar o silêncio. Quando ela decidiu falar, fê-lo num tom tão baixo que quase não a ouvi:

— O vosso coração é puro… por isso, sei que ireis tomar a decisão certa. Irei retirar o que disse anteriormente e dar-vos-ei um pouco mais de tempo para pensar. Mas nós não podemos esperar eternamente, adorável titânide. Eu voltarei amanhã com a Sacerdotisa Miiko e espero que tenhais uma resposta definitiva por essa altura. Até lá… desejo-vos as melhoras.

Não levantei o rosto das mãos, mas ouvi o sussurrar de tecido quando a mulher se levantou. Seguiu-se o som dos seus passos a atravessar o quarto e terminou com o suave clique da porta ao fechar. Eu mordi o lábio com força e continuei a chorar, a mente preenchida por pedidos de perdão a todos aqueles a quem eu permitiria que o mal se abatesse. Desculpem… desculpem… desculpem…

O barulho da porta a abrir-se de rompante fez-me saltar de susto e afastar as mãos do rosto. Nevra entrou com o sobrolho franzido e o maxilar tenso, fechando a porta com estrondo atrás de si, mas a sua expressão suavizou-se instantaneamente ao ver o meu rosto banhado em lágrimas.

— Eduarda…

— Eu… matei-os, Nevra — solucei com dificuldade, sem suportar mais aquela culpa — O Chrome… o Kero… a Eweleïn… Eu matei-os, Nevra!

As minhas palavras pareceram surpreender tanto o vampiro que ele não se mexeu durante alguns segundos. Porém, quando os meus soluços atormentados subiram de tom até virarem bramidos, ele não hesitou em correr até mim, apertando-me contra o seu peito e murmurando palavras indistintas. Eu envolvi-o com os braços e abandonei-me à dor que me consumia. Tremia tanto que me convenci de que o abraço do vampiro era a única coisa que me mantinha inteira. Se não fosse pela força com que ele me apertava, ter-me-ia despedaçado e desaparecido. Se não fosse pelo calor do seu corpo, teria enregelado e morrido. Se não fosse pela sua voz suave e carinhosa que se destacava contra os meus gritos… teria enlouquecido…


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Notas finais do capítulo

Tenho planos para matar dois daqueles quatro desaparecidos (Chrome, Kero, Eweleïn e Karuto). Aceito sugestões :D *inserir riso maléfico aqui*



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