Titanomaquia escrita por Eycharistisi


Capítulo 63
LXI




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O plano de Ashkore não era complicado… na teoria. Eu só teria de usar a camuflagem para entrar na cidade, seguir Rubih até um dos círculos do decagrama (fosse lá isso o que fosse…) e desativá-lo. Era basicamente a mesma coisa que fizéramos em Ryss para soltar Ihlini, portanto, nada de novo. O problema… era que eu estava mesmo muito em baixo em questão de Maana. Invocar e sustentar a minha camuflagem tornara-se novamente tão difícil quanto suster a respiração e o esforço que fazia para me manter invisível consumia as minhas forças ao ponto de quase não conseguir andar. Tropecei várias vezes no caminho até ao portão da cidade e Rubih, sentada no topo da minha cabeça para não se perder de mim, rapidamente percebeu que algo não estava bem. Ela perguntou-me algumas vezes se havia algo de errado, mas eu limitei-me a sacudir negativamente a cabeça. Não queria que a elemental soubesse quão debilitada estava. Isso só iria preocupá-la e não facilitaria em nada a nossa missão…

Chegada ao portão, não tive outra opção senão esperar pela melhor oportunidade para o atravessar sem roçar acidentalmente em alguém. A revisão obrigatória de quem entrava ou saia da cidade congestionava um pouco a circulação e, mesmo não havendo muita atividade àquela hora da manhã, convinha ter cuidado. Eu não queria dar razões aos guardas para sequer desconfiar de que eu estava ali… A minha impaciência, todavia, crescia a cada batida ansiosa do meu coração. Na minha atual situação, a prudência era tão prejudicial quanto a precipitação, fazendo-me desperdiçar tempo e energia preciosos. Eu sentia a minha força mágica abandonar-me rapidamente e era só uma questão de tempo até não ter Maana para segurar a minha camuflagem. Se eu me tornasse visível ali ou no caminho que me faltava percorrer até ao meu destino… estaria perdida.

A espera por uma oportunidade para entrar na cidade não durou nem um minuto, na realidade, mas, para mim, pareceu durar horas. Finalmente lá dentro, Rubih foi-me indicando o caminho até ao círculo e eu empenhei-me em apressar o passo, embora não me sentisse muito segura sobre as minhas pernas. Era mais fácil evitar tropeçar nos caminhos calcetados da cidade, mas os meus músculos estavam hirtos e os meus joelhos fracos, ameaçando atirar-me ao chão a qualquer momento. Quando tinha a oportunidade, caminhava com uma mão apoiada nas paredes ou nos muros das casas. Infelizmente, isso não me permitia avançar mais depressa nem aliviava o meu cansaço. Ao fim de dez minutos a serpentear pelas ruas da cidade, eu não aguentava mais. Exausta, escondi-me nas sombras de uma ruela estreita e deserta e permiti-me descansar contra a parede por uns instantes, largando a camuflagem para me recuperar mais depressa. Rubih saltou de imediato da minha cabeça e veio flutuar na frente do meu rosto, aflita.

— Ama, estais visível! Tendes de…! — silenciou-se ao ver a minha cara — Ama, estais doente? Ama… sentis-vos bem?!

Eu não respondi de imediato. Não tinha voz para isso. Precisava de respirar… Fazer uma pausa e respirar!

— Vou… ficar bem — murmurei entre arquejos — Deixa-me… descansar um pouco…

— Eu compreendo, Ama, mas… estamos no meio da cidade faery! Não é seguro ficardes visível aqui!

Eu concordei com a cabeça, mas não fiz qualquer gesto no sentido de continuar a andar ou repor a camuflagem. Mesmo estando no meio de território inimigo, a vontade de dormir ali mesmo era quase irresistível. O meu corpo inteiro parecia pesar uma tonelada, em particular as pálpebras…

— Estamos quase lá — insistiu Rubih, em jeito de incentivo — São só mais alguns metros. Por favor, Ama…

Eu acenei de novo, inspirando profundamente uma última vez. Não podia desistir quando estava tão perto. Eu conseguia fazer aquilo… Falhar não era uma opção quando Ashkore estava a contar comigo!

— Okay… vamos lá — murmurei, desencostando-me da parede.

Rubih fez um sorriso e um aceno encorajador antes de sentar-se novamente na minha cabeça. Fechei os olhos para me concentrar e invoquei a camuflagem. O encantamento não se manifestou à primeira, evidenciando quão cansada estava, mas, finalmente, estava pronta para continuar. Ou quase… O peso e a rigidez não tardaram a regressar e os poucos metros de que Rubih falara pareceram-me quilómetros quando os comecei a percorrer. Eu tentava dizer a mim mesma que só teria de aguentar mais um pouco, mas as pernas obedeciam-me com cada vez mais resistência.

— Estamos quase lá, Ama — repetia a menina vermelha sempre que me sentia fraquejar — Estamos quase lá…

Não me dei conta do momento em que fechei olhos e nem sei se isso aconteceu devido ao cansaço ou à minha concentração em meter um pé diante do outro. Teria continuado a andar em frente, de olhos fechados, se não tivesse ouvido a voz de Rubih, vinda de muito longe:

— É aqui, Ama! Chegámos!

Levantei as pálpebras com mais esforço do que seria de esperar enquanto sentia a elemental levantar-se da minha cabeça. Segui-a preguiçosamente com o olhar, mas endireitei-me com um pulo ao ver dois guardas de armadura mesmo ao meu lado, ladeando uma porta de madeira azulada. O meu raciocínio estava tão toldado pela exaustão que demorei um segundo a lembrar-me de que eles não conseguiam ver nenhuma de nós as duas. E demorei mais um a entender onde estava…

Rubih trouxera-me até à lateral da muralha da cidade, para um ponto afastado da azáfama do portão e do olhar da maioria dos guardas. A porta que aqueles dois estavam a vigiar dava acesso a um dos torrões da muralha, através do qual, presumivelmente, poderia subir até ao topo do muro de pedra. Não entendi porque estávamos ali se a nossa missão era desativar um círculo, mas optei por não questionar Rubih sobre esse assunto. Os guardas poderiam ouvir-me…

— Eles darão o alarme se virem a porta abrir-se sozinha — disse a menina vermelha enquanto flutuava em redor da cabeça de um dos guardas — Teremos de neutraliza-los, Ama…

Neutralizá-los? Como? Eu não trouxera nada para os pôr a dormir, ninguém me falara em trazer soníferos, a única coisa que tinha comigo era…

Senti o meu sangue gelar nas veias e engoli em seco com dificuldade quando entendi a intenção de Rubih. Ela não queria que eu os metesse a dormir… Ela queria que eu os matasse. Afinal, era para isso que servia a adaga que Ashkore me dera…

Fechei uma mão trémula no punho da arma, mas, em vez de a tirar da bainha… empurrei-a mais para baixo. Eu não queria fazer aquilo… Não era justo… Aqueles homens eram inocentes, manipulados pelas mentiras dos Sacerdotes, não mereciam o fim que a elemental me estava a pedir para lhes dar. Se eu conseguisse acertar-lhes um golpe que os deixasse inanimados, tê-lo-ia feito, mas com aquelas armaduras que eles vestiam… o que poderia fazer? Rubih tinha razão, os guardas achariam estranho se a porta se abrisse sozinha. Por outro lado… eles dificilmente assumiriam de imediato que a movimentação da porta se devia a uma titânide invisível, certo? Afinal, não eram muitas as pessoas no quartel que sabiam sobre a minha camuflagem e tinha sérias dúvidas de que alguém tivesse avisado aqueles guardas sobre isso. A surpresa e a confusão com certeza retardariam a sua reação e talvez isso fosse o suficiente para que eu concluísse a minha missão. Estaria a arriscar o meu pescoço e os planos de Ashkore, nos quais o fator surpresa era a única coisa que compensava a desvantagem numérica, mas eu preferia correr esse risco a manchar as minhas mãos com sangue inocente…

— Ama Eduarda? — chamou Rubih, estranhando a minha quietude — O que esperais?

Inspirando um fôlego de coragem, aproximei-me da porta e experimentei o puxador em forma de argola, sem fazer barulho. Estava destrancada. Perfeito… Recuei um passo para ganhar balanço e dei um pontapé na porta, empurrando-a completamente para trás. Os guardas viraram-se com um pulo ao ouvir o estrondo da porta a bater contra a parede, levando a mão às suas próprias armas.

— Ama Eduarda! — guinchou Rubih, aflita — O que estais a fazer?!

Eu ignorei-a, estudando o comportamento dos guardas. Como esperara, eles estavam demasiado surpreendidos para tomar uma atitude, limitando-se a fixar a porta até um deles perguntar ao outro:

— Que raio foi isto?

— Não sei… Viste alguma coisa?

— Não e tu?

— Também não…

— Terá sido o vento?

O segundo guarda torceu levemente a boca.

— Duvido. Eu não senti soprar…

— Pois, eu também não… Será que devíamos avisar alguém? — questionou o primeiro guarda, inquieto.

O seu colega não respondeu de imediato.

— Talvez seja melhor… Não sei quanto a ti, mas eu prefiro ouvir um raspanete do Valkyon e do Nevra por os termos chamado por nada do que descobrir que deixámos passar algo importante.

— É, talvez tenhas razão… Eu vou chamá-los, então — aprontou-se o primeiro guarda, afastando-se a correr. O segundo guarda ficou na frente da porta e sacou da sua espada antes de espreitar desconfiadamente para dentro do torreão, procurando a origem do movimento suspeito. Enquanto ele atravessava a porta com passos cautelosos, eu fiz um pequeno desvio para apanhar uma Rubih muito aflita. A elemental soltou um pequeno grito surpreendido quando sentiu os meus dedos fechar-se em seu redor, mas eu limitei-me a levar as mãos dos lábios e sussurrar por entre os dedos:

— Onde está o maldito círculo, Rubih?

— Es-está dentro do torreão, Ama… mas… porque fizestes aquilo?! O guarda não deverá tardar a regressar com reforços e…

— Vamos despachar o assunto antes que ele volte, então. Limita-te a levar-me ao círculo — ordenei, soltando a menina vermelha.

Rubih não parecia confiar muito no meu plano, mas fez um aceno afirmativo e encaminhou-se para a porta do torreão. Eu fui atrás dela.

O torreão era mais apertado do que esperava, devido há existência de uma segunda torre no interior da primeira. Uma escadaria de pedra espiralava por entre as paredes das duas torres e eu tive um breve vislumbre do guarda a subir os degraus à minha esquerda antes de ele desaparecer na curva da torre interior. Rezando para que ele não voltasse para trás tão depressa, concentrei-me na porta de madeira que estava mesmo diante de mim, para a qual Rubih apontava.

— Usai o encantamento que o Amo Ashkore vos deu para abrir a porta, Ama — pediu ela.

Eu procurei rapidamente nos bolsos das calças o pedaço de pergaminho que Ashkore me dera antes me mandar para ali. Era um simples desenho de um círculo com quatro pequenos triângulos sobre a linha, um em cada quadrante. Segundo o meu irmão, só teria de encostar o desenho à porta e pronunciar um rápido encantamento para abrir a maior parte das trancas. Eu conhecia o encantamento, ouvira Lithiel pronunciá-lo várias vezes durante a nossa viagem na Terra, mas não me lembrava de ela alguma vez ter usado um círculo para que este funcionasse… Teria de a questionar sobre o assunto quando regressasse à colónia. Isto é… se regressasse…

Sacudindo a cabeça para evitar pensamentos pessimistas, encostei o pedaço de pergaminho à porta e murmurei a ladainha. O encantamento consumiu de imediato o pouco que me restava de Maana… e a fraqueza suplantou-me. Aterrei sobre um joelho quando uma tontura me fez perder o equilíbrio e deixei cair a camuflagem quando fiquei com falta de ar.

— Ama Eduarda! — guinchou Rubih, aflita — Estais bem?! Sentis-vos bem?! Ama Eduarda!

Eu não lhe respondi, concentrando-me em puxar ar para os pulmões. Céus… Estava tão… cansada…

— Ama, falai comigo, por favor! — rogou a elemental, esvoaçando em redor da minha cabeça — Estais ferida? Estais doente? Devo avisar o Amo Ashkore?

Eu sacudi veemente a cabeça, apesar da dor que isso me provocou nas têmporas. Estava fora de questão permitir que Ashkore se expusesse ao perigo para vir salvar-me. Jamais me perdoaria se lhe acontecesse alguma coisa por minha causa…

— Conseguis levantar-vos, Ama? — inquiriu a menina vermelha — Por favor… nós não podemos ficar aqui, é demasiado perigoso! Talvez devamos regressar, vós não estais em condições de continuar a missão. Tenho a certeza de que o Amo Ashkore compreenderá…

Eu voltei a sacudir a cabeça. Rubih talvez não conseguisse ou não quisesse ver, mas eu estava acabada. Não conseguiria colocar-me de pé, muito menos fazer a viagem de volta. Só me restava ficar ali até alguém me encontrar e terminar a minha vida… ou usar o pouco vigor que me restava para concluir a missão que Ashkore me confiara. Não deveria faltar muito e, se fosse bem-sucedida, poderia esconder-me e esperar que o meu irmão me viesse buscar. Era um bom plano… o melhor que tinha naquele momento.

Inspirando um longo fôlego de coragem, empurrei a porta que acabara de enfeitiçar. Rubih colocou-se rapidamente na minha frente, com uma expressão preocupada.

— Ama… tendes a certeza de que quereis continuar?

Eu acenei afirmativamente com a cabeça e gatinhei para dentro da sala, fechando a porta atrás de mim com o máximo de cuidado de que fui capaz. Quando me virei para inspecionar a divisão, soltei um trémulo suspiro de alívio. O interior da torre estava completamente deserto e vazio… exceto pelo complexo círculo de luz azul desenhado no chão.

Estava quase lá… Só teria de desativar aquele círculo e a minha missão estaria terminada.

Rubih apontou os símbolos que teria de apagar e, com o estômago às voltas, arrastei-me até eles, um de cada vez. Gostaria de ter recorrido à magia para me livrar dos arabescos mais depressa e poder enfim descansar, mas não me sentia capaz de fazer sequer um simples encantamento para partir pedra. Na verdade, até esfregar os símbolos com a manga da minha blusa se tornava difícil no estado debilitado em que me encontrava. Sentia tonturas cada vez mais fortes e a minha respiração tornava-se mais pesada e difícil a cada arabesco que reduzia a um borrão de tinta negra. A minha visão começou a tremer quando me estava a debater com o último arabesco e, pouco depois, uma súbita e incómoda comichão atacou a ponta do meu nariz. Fiz uma pausa para me coçar com as costas da mão e, quando a baixei para continuar o que estava a fazer… vi uma mancha vermelha na minha pele. A minha mente toldada pela exaustão demorou alguns segundos a entender o que aquilo era: sangue.

— Ama… Estais a sangrar! — notou Rubih, aflita.

Levei novamente a mão ao nariz e senti o líquido quente humedecer as pontas dos meus dedos. Que raio… Porque diabos estava eu a sangrar do nariz? Não fazia sentido… mas, naquele momento, também não tinha importância. Eu estava quase a concluir a minha missão, teria muito tempo para me preocupar com o sangue no meu nariz quando desativasse o círculo…

— Ama, por favor… deixai-me avisar o Amo Ashkore de que não estais bem! — pediu a elemental, preocupada.

— Estamos quase lá — murmurei, retomando os meus esforços para apagar o último arabesco — Estamos… quase lá…

— Ama…!

A luz do círculo tremeluziu uma última vez e feneceu. Eu ensaiei um sorriso satisfeito por ter finalmente concluído a minha missão… mas este foi rapidamente substituído por uma careta e um silvo quando uma dor intensa me trespassou o braço direito. Levei instintivamente a mão acima do cotovelo, como se esperasse conter a sensação desagradável, mas os meus músculos não paravam de estremecer com as ondas de dor que pareciam irradiar dos meus próprios ossos.

— Ama! Eu vou chamar o Amo Ashkore! — anunciou Rubih antes de atravessar as paredes do torreão, voando tão depressa que deixou um rasto de luz atrás de si. Ainda bem que ela foi embora, porque o que se seguiu não foi bonito… No instante em que a elemental desapareceu, uma nova aguilhoada de dor subiu disparada desde a palma da minha mão até ao meu peito, explodindo no meu esterno. As ondas de dor em redor das minhas costelas eram tão intensas que quase não me permitiam respirar. Eu não conseguia sequer gritar! A falta de ar intensificou as minhas tonturas e eu dobrei-me até deixar a cabeça pender entre os joelhos, esperando sentir-me melhor ao fim de alguns instantes… mas não resultou.

— Eduarda!

A voz conhecida fez o meu coração dar um pulo e tentei levantar a cabeça para mirar o seu dono, mas uma ferroada de dor fez-me fechar os olhos e soltar um triste gemido. Ouvi passos apressados na minha direção e duas mãos cuidadosas seguraram-me pelos ombros para endireitar o meu tronco. O meu estômago, porém, não estava preparado para o movimento e uma náusea violenta fez-me vomitar sobre os meus próprios joelhos. Julgo que ouvi a voz murmurar um palavrão, mas este foi parcialmente abafado pelo som de uma explosão que fez estremecer o chão.

— O que…?

Uma segunda explosão interrompeu a voz e, nos segundos de intervalo entre esse e os estouros que se seguiram, gritos indistintos de dor e medo começaram a preencher o ar.

— Estamos… a ser atacados! — constatou uma nova voz, seguida de mais uma explosão.

— Vai e junta-te aos teus companheiros de armas!

— Mas… e essa raparig…?

— Eu trato dela, faz o que te digo!

— S-sim, Mestre Nevra!

O chocalhar da armadura a afastar-se foi abafado por mais um estouro. Quase ao mesmo tempo, as ferroadas de dor estenderam-se para as minhas entranhas, fazendo-me dobrar para a frente e vomitar mais uma vez. Céus… Parecia que tinha um punho espinhoso a espremer as minhas vísceras, tentando furá-las e rebentá-las… Era insuportável. Se eu tivesse ar nos pulmões, estaria a berrar ao ponto de rasgar a garganta…

— Eduarda… o que é que fizeste? — murmurou a voz conhecida — O que é que fizeste…?

Nevra continuou a repetir a pergunta, mas o seu tom amargurado não parecia esperar uma réplica. Ainda bem, porque eu não tinha voz para responder e, mesmo que tivesse, não saberia o que dizer…

Senti o vampiro mover-se em meu redor e pegar na minha mão direita. Não reagi ao seu toque, nem estranhei quando ele rasgou a manga da minha blusa com um puxão violento. A dor era demasiada, não me permitia concentrar em mais nada. Era até estranho que eu me mantivesse consciente e lúcida no meio de toda aquela agonia. A inconsciência seria muito bem-vinda naquele momento…

— Oh, Eduarda — gemeu Nevra num tom atormentado. Senti a ponta dos seus dedos desenhar uma linha sinuosa desde o meu pulso até ao interior do meu cotovelo — Porque é que fizeste isto…?

Eu respondi com mais um enjoo. O vampiro murmurou o meu nome num tom triste e compadecido e puxou-me para ele, apertando-me contra o seu peito. O que me restava de raciocínio enumerou de imediato todas as razões por que eu não deveria aceitar aquele abraço… mas nenhuma tinha realmente importância na situação em que me encontrava. Eu estava a morrer… e, avaliando pelo alarido do lado de fora daquele torreão, não era a única. Parecia… que o mundo estava a morrer comigo…

— Nevra…

O vampiro retesou-se e eu senti o meu coração falhar uma batida. Aquela voz… era…

— Leiftan — reconheceu Nevra, num tom trémulo, mas muito ameaçador — Liberta-a da promessa… agora…

A resposta só veio depois de o estampido de mais uma explosão se dissipar por completo.

— Eu não vou fazer isso…

Nevra soltou um risinho sinistro.

— Ah, vais, sim… Liberta-a da promessa, Leiftan…

— Ela quebrou um juramento assinado com sangue, Nevra… Ela traiu-nos…!

— A Eduarda jamais nos trairia! Achas mesmo que ela escolheria voluntariamente passar por este suplício?! O titã deve ter arranjado maneira de a controlar…!

— Mais uma razão para a deixar morrer. Será menos uma ameaça à nossa existência!

— Ela não é uma ameaça! Ela é a nossa única salvação! Nós não temos mais forças para lutar contra os titãs, Leiftan, e tu sabe-lo bem! A Eduarda é a única capaz de lhes fazer frente!

— Ela não lhes fará frente, ela está a lutar do lado deles…!

— Porque está a ser manipulada! Se nós a libertarmos da influência do titã, ela voltará a lutar do nosso lado, tenho a certeza!

— E se o titã tiver alterado a memória dela?

— A Miiko saberá reverter o feitiço.

— Isso pode matá-la…

— Ela já está a morrer!

Os dois homens calaram-se quando me ouviram vomitar, mesmo em cima do peito de Nevra. Uma pessoa normal ter-me-ia afastado, enojada, mas o vampiro abraçou-me com mais força e beijou o topo da minha cabeça, murmurando palavras de consolo. Talvez a minha proximidade da morte o deixasse mais tolerante…

— Leiftan, por favor — implorou Nevra, acariciando o meu cabelo — Ela não vai aguentar muito mais… e se a Eduarda morrer, Eldarya morrerá com ela! Eu imploro, Leiftan! Liberta a Eduarda dessa maldita promessa antes que nos condenes a todos!

O investigador da Guarda Reluzente não respondeu, mas eu ouvi os seus passos avançar lentamente na nossa direção. Pouco depois, uma mão fria e trémula cobriu a minha, unindo as nossas palmas.

— Só espero não me arrepender disto… — murmurou Leiftan antes de recitar uma rápida ladainha num tom quase inaudível. Instantaneamente, a dor que me consumia amainou. Não desapareceu por completo, mas foi o suficiente para me permitir respirar com mais facilidade. Consegui até entreabrir os olhos, encontrando Nevra e Leiftan a mirar-me com as mesmas expressões expetantes e preocupadas.

— Eduarda — murmurou o vampiro, tecendo uma suave carícia no meu rosto — Como te sentes? Consegues ouvir-me?

Eu estava a reunir ânimo para acenar com a cabeça quando uma explosão soou perto o suficiente para fazer tremer as paredes. Uma fina camada de pó choveu sobre nós. Nevra e Leiftan redirecionaram de imediato a sua atenção para a porta da torre.

— Temos de sair daqui — constatou o investigador, levantando-se e encaminhando-se para o exterior — Traz a Eduarda, eu dou-vos cobertura.

— Temos de a esconder num lugar seguro — disse o vampiro, erguendo-se comigo nos braços sem sequer soltar um grunhido de esforço.

Leiftan não pareceu ouvir, estando demasiado ocupado a verificar se o caminho estava livre. Finalmente, ele fez sinal a Nevra para sair do torreão… e eu senti o meu coração cair num abismo sem fim quando vi a destruição ao nosso redor. Era difícil acreditar que um exército tão pequeno fosse capaz de tamanha devastação, mas quando vi uma colossal silhueta branca iridescente caminhar por entre os destroços da cidade, tornou-se clara a origem do estrago. Os olhos de Nevra e Leiftan pareciam prestes a saltar-lhes das órbitas enquanto miravam a titânide e a sua reação confundiu-me até me lembrar de que aquela era a primeira vez que eles viam, ao vivo, um titã completamente transformado.

— O que é que vocês lhe fizeram? — murmurou Leiftan com a voz a tremer — O que é que vocês…?

O estrondo de uma rua inteira a ir pelos ares com um simples meneio da mão de Ihlini silenciou o investigador. Nevra recuou um passo alarmado, murmurando:

— Bendita Chama… Diz-me que também tens uns truques daqueles, Eduarda…

— Tira a Eduarda daqui — ordenou Leiftan, puxando um punhal que trazia escondido — Se os titãs voltarem a meter as mãos em cima dela, teremos de lidar com duas daquelas…

— E tu, onde vais? — perguntou o vampiro, desconfiado.

— Vou ajudar a Miiko — anunciou o investigador, sem desviar o olhar da titânide — Tu não precisas da minha ajuda para sair da cidade, os titãs e os seus adeptos estão concentrados à volta do quartel. Tens o caminho livre para o portão. Vai!

Nevra inspirou como se fosse falar, mas Leiftan correu na direção do centro da confusão antes que o vampiro tivesse a oportunidade de soltar um som. Praguejando baixinho, Nevra deu meia volta e começou a correr na direção do que restava do portão da cidade. Os destroços das casas que Ihlini tinha destruído a caminho do quartel deveriam ter dificultado o avanço do vampiro, mas ele limitava-se a desviar ou saltar por cima dos escombros com uma agilidade e leveza inacreditáveis. A visão dos corpos feridos e mutilados sob os destroços, todavia, não era tão fácil de evitar… A maioria dos faeries por que passámos estava morta, mas alguns estavam vivos, murmurando pedidos de socorro. As suas fracas súplicas, aliadas à visão dos ferimentos expostos, não tardaram em deixar-me tonta. O desconforto não se devida só ao sangue espalhado por todo o lado; devia-se também à consciência de que eu era a principal culpada por aquilo. Eu provocara a destruição daquelas casas, daquelas famílias e daqueles corpos quando permitira ao meu irmão entrar na cidade. Eu meio que estivera a contar com aquilo, mas a realidade era muito pior do que eu poderia alguma vez ter imaginado… Quando vi um faery arrastar-se de debaixo de um monte de pedra, deixando metade da perna esquerda para trás… entreguei-me enfim à inconsciência, sem saber se valeria a pena voltar a acordar.


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