Titanomaquia escrita por Eycharistisi


Capítulo 42
XLI. Porque chorais, Ama?


Notas iniciais do capítulo

[Capítulo agendado]



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Nevra soltou-me antes que tivesse oportunidade de empurra-lo ou protestar e regressou descontraidamente à sua muda de roupa. Leiftan desviara o olhar no início do beijo, mas a rigidez do seu maxilar não era difícil de interpretar. Eu olhei de um homem para o outro, cada vez mais confusa e assustada. No que é que eu me fora meter?!

— Não vais vestir-te no outro quarto, Eduarda? — perguntou-me Nevra enquanto vestia uma camisola de cavas negra — Preferes ficar aqui?

— N-não, eu v-vou vestir-me no outro quarto — murmurei — Eu… hã… A-até já…

— Até já, bombom…

Quase corri para o corredor, deixando que Leiftan fechasse a porta atrás de mim. A minha vontade era trancar-me no quarto em frente e nunca mais sair, mas tinha de me certificar que o investigador não estava zangado comigo. Virei-me para ele, nervosa, murmurando o seu nome… e soltei um arquejo surpreendido ao ser empurrada contra a parede do corredor.

— Leif…

O resto do nome foi engolido pela boca ávida do investigador. Leiftan beijou-me como nunca antes, com paixão, fome… possessividade. Um dos seus joelhos forçou-me a separar as pernas enquanto uma mão agarrava a minha coxa e a puxava contra a sua cintura. A outra mão foi para a minha nuca, agarrando os meus cabelos e impedindo-me de virar a cabeça enquanto a sua língua explorava a minha boca. Leiftan não foi meigo ou carinhoso. Foi quente, selvagem… e muito sensual. Deixou a minha mente sem reação enquanto o meu corpo se rendia às suas carícias.

— Estás muito empenhado em “marcar território” para quem não se importa de partilhar…

Eu teria saltado para trás se não estivesse espremida entre a parede e o corpo de Leiftan. O investigador afastou relutantemente a boca da minha e, ofegante, começou a soltar-me. Quando se virou para encarar Nevra, estava novamente no controlo das suas emoções.

— Eu disse que não me importo de partilhar… mas isso não quer dizer que não queira ser o favorito.

Nevra soltou um risinho trocista.

— Desculpa, Leiftan, mas acho que já vens tarde…

— Eu é que vim tarde? Esqueceste que a Eduarda me escolheu primeiro?

— Se ela estivesse satisfeita contigo, não me teria procurado.

Leiftan estava de costas para mim, mas não precisei de ver o seu rosto para pressentir o confronto. Quando o investigador cerrou os punhos e ensaiou um passo na direção de Nevra, corri a colocar-me entre eles. Por instantes, pensei ter visto uma sombra negra passar pelos olhos de Leiftan, mas preferi acreditar que era impressão minha.

— P-parem com isso! — ordenei — Eu não escolhi ou procurei ninguém! Vocês beijaram-me, os dois, sem aviso ou autorização!

— Não te queixaste — lembrou Nevra com um sorrisinho torto.

— É difícil falar com uma boca a tapar a minha! — defendi-me, corando.

— Podias ter-me empurrado, esmurrado, mordido ou dado um pontapé — enumerou o vampiro — Em vez disso, agarraste-te ao meu cabelo!

O meu rosto ardeu de tanto que corei.

— Podemos deixar esta conversa para outra altura? — pediu Leiftan num tom mais seco que o costume — Já devíamos estar na estrada!

Tu já devias estar na estrada — corrigiu Nevra — Não vais patrulhar o caminho na nossa frente?

Leiftan hesitou, mirando-me demoradamente. Eu limitei-me a devolver o olhar, sem saber o que dizer ou que cara fazer. O investigador soltou um pequeno e discreto suspiro.

— Vou, sim — acabou por dizer — Vejo-te à hora de almoço? — acrescentou na minha direção.

Eu confirmei com um rápido aceno. Leiftan acenou também, deu-me mais um beijo, breve, mas profundo, e foi-se embora. Nevra abriu um sorriso maldoso enquanto o via afastar-se.

— Já lhe consegui tirar o arzinho presunçoso da cara… Só falta tirar-lhe a namorada.

— O que é que se passa contigo?! — perguntei, irritada.

— O que foi?

— Tinhas mesmo de me beijar na frente do Leiftan?!

— Porque não? Ele teria de saber que nós também temos uma relação, mais cedo ou mais tarde…

— Relação? Qual relação? Nós não temos uma relação, só… trocámos uns beijos! É preciso bem mais do que isso para entrar numa relação! Tu és o mestre dos casos de uma noite e não sabes isso?!

— Sei, mas como eu pretendo continuar contigo, estamos numa relação.

— O quê?!

— Eu quero continuar contigo — repetiu o vampiro pausadamente — Tu não?

— Eu já estou com o Leiftan!

— E daí? Ele não se importa de partilhar…

— E tu? Estás bem com isso?

Nevra fez uma pequena careta.

— Não, nem por isso. Sei que é hipocrisia da minha parte querer “exclusividade” quando eu mesmo não consigo fazê-lo, mas… quero-te só para mim — abriu um sorriso endiabrado — Felizmente, estás a cumprir um castigo que te impede de ver o Leiftan. Ou seja… és minha!

— I-isso não é bem assim!

Nevra riu-se.

— Vamos ver… — disse antes de dar meia volta e ir-se embora. Eu soltei um estalido arreliado com a língua e entrei no quarto vazio.

Céus… O que estava a acontecer? O que é que Nevra e Leiftan estavam a fazer? Disputar-me como se fosse uma espécie de prémio? Ridículo! Era quase ofensivo! Eles pensavam que eu era o quê? Um pedaço de carne? E os meus sentimentos, onde ficavam?! Bem… essa era uma questão que nem eu mesma saberia responder… e talvez fosse justamente esse o problema.

Eu não podia apenas culpar Nevra e Leiftan pelo que estava a acontecer. Afinal, eu compactuara com tudo aquilo, apesar de não nutrir sentimentos românticos por nenhum dos dois homens. No fundo, estava a servir-me deles… e sentia-me mal por isso. Não era justo usá-los daquela forma. É certo que o investigador da Reluzente se predispusera a ser usado, mas eu não era esse tipo de pessoa. O que eu estava a fazer com Nevra e Leiftan ia muito além do namoriscar inocente a que recorrera para convencer Adonis a mostrar-me os relatos originais da Titanomaquia. Era muito, muito pior. Eu estava a “namorar” com dois homens ao mesmo tempo para meu próprio proveito e um deles nem sequer sabia o que realmente estava por detrás da nossa “relação”. Se bem que… verdade fosse dita… eu estava mais perto de sentir algo por Nevra do que por Leiftan. Talvez até… já sentisse alguma coisa. Por isso não conseguira afastá-lo quando me beijara na noite anterior. Por isso retribuíra. Por isso desejava mais…

Sacudi rapidamente a cabeça, como se isso me ajudasse a organizar os pensamentos. Estava tão confusa! Era tão complicado! Seria tudo tão mais simples se eu conseguisse simplesmente ignorar os meus preceitos morais (ou a transgressão deles) e aproveitar a inédita oportunidade de ter dois homens lindos a lutar pela minha atenção… mas não conseguia! Eu não era esse tipo de pessoa! Precisava resolver a situação… o mais rapidamente possível!

Uma suave batida na porta, acompanhada pelo tilintar de guizos, interrompeu as minhas conjeturas. Dei autorização para entrar sem sequer perguntar quem era, adivinhando que seria Lithiel. A minha dupla viera para garantir que vestíamos o mesmo conjunto de roupa e interrogar-me sobre a noite passada com o Mestre da Sombra, mas ambas esquecemos o assunto quando comecei a despir-me… e tiras inteiras de pele vieram agarradas à roupa.

— Como é que isto aconteceu? — perguntou Lithiel, chocada.

— Não sei, eu não sei — murmurei, tentando segurar as lágrimas — Ontem só tinha uma linhazinha de pele azul no pescoço e agora…

Agora a pele humana que restava no meu tronco e na minha perna direita estava espalhada pelo chão.

— Eduarda — murmurou Lithiel, séria — Se a tua pele continuar a cair a este ritmo… amanhã de manhã estarás completamente transformada. Talvez mesmo hoje, ao final do dia…

— O que é que eu faço? — solucei, enterrando o rosto nas mãos — Custou-me tanto esconder isto ao Nevra…!

— Como é que escondeste a tua pele dele?

— Eu… disse que não queria mostrar-lhe.

— E ele “respeitou a tua vontade”? — perguntou, desenhando aspas com os dedos.

— Sim…

— Sua burra! Tens noção que ele provavelmente espreitou durante a noite, certo?!

— O Nevra não faria isso!

— Achas que não?

— Acho! Eu confio nele e… e se o Nevra tivesse visto a minha pele, ele já saberia que sou uma titânide e já me teria matado!

— Isso é verdade — concordou Lithiel, pensativa — Talvez ele tenha visto, mas não percebeu…?

— Ele não viu a minha pele, Lithiel. Tenho a certeza.

— Vamos perguntar-lhe — desafiou-me a minha dupla.

— O quê?

— Vamos perguntar-lhe e eu aviso-te se ele mentir.

— Não — recusei, começando a vestir-me — Independentemente de ter espreitado ou não, eu não quero chamar a atenção dele para esse assunto. Vamos… assumir que ele não espreitou e não sabe de nada.

— E se estiveres enganada?

— Se estiver enganada, ele sabe o que sou e mesmo assim não me matou. Isso basta-me.

Lithiel não se pronunciou e o silêncio durou até eu terminar de me vestir. Inventei um curativo para esconder a mancha iridescente no meu pescoço e estava pronta para sair. Fisicamente, digo. Psicologicamente… era outra história. Eu não sabia como lidar com a minha nova “relação” com o Mestre da Sombra e o meu medo de ouvir comentários maldosos e menos decentes do resto do grupo quase me convenceu a quebrar o jejum no quarto, com os restos de comida que tinha na minha mochila. Foi Lithiel quem me arrastou para o andar de baixo para comer uma refeição decente na companhia dos outros. Como temia, todos os olhares se fixaram em mim quando entrei na cozinha… e os risinhos vieram assim que encontraram o curativo no meu pescoço. Ignorei-os o melhor que pude.

Tomado o pequeno-almoço, despedimo-nos dos nossos anfitriões e seguimos viagem. Karenn e Lee colocaram-se ao meu lado assim que saímos da aldeia, mas os seus objetivos pareciam ser completamente dispares. Enquanto a vampira tinha uma expressão muito apreensiva, Lee exibia um pequeno sorriso malicioso nos lábios.

— Eduarda — chamou ele ao fim de algum tempo, fazendo um esforço para conter o seu sorriso.

— O que foi, Lee? — suspirei, adivinhando o que viria.

— O que é isso no teu pescoço?

— Um curativo — respondi num tom neutro, levando automaticamente a mão ao pescoço. Será que a pele azul se escapara por baixo do penso? Não, não podia ser, Karenn e Lithiel ter-me-iam avisado…

— Porque é que precisas de um curativo no pescoço? — continuou o elfo a interrogar-me.

— Porque me magoei.

— Hum… Não terá sido o Nevra a magoar-te…?

— O quê? O que é que estás para aí a dizer? — perguntei, franzindo o sobrolho.

Lee não se aguentou e soltou uma pequena gargalhada.

— Ele mordeu-te, não foi? E recusou-se a curar-te!

— O-o quê?!

— Ai, ai — suspirou o elfo, abanando a cabeça com ar reprovador, embora tivesse um sorriso rasgado nos lábios — Os vampiros são tão territoriais… Felizmente, eles só te deixam a marca da dentada no pescoço. Os lobisomens deixam-te a cheirar a cão…

— Lee! — berrou Nevra, lá da frente do grupo — Anda cá!

— Ih, descobri-lhe a careca — notou o elfo, mas sem parar de sorrir — Já volto…

Lee afastou-se para ir receber o seu sermão e Karenn poisou nervosamente uma mão no meu braço.

— O Nevra… mordeu-te mesmo?

Eu soltei um pequeno suspiro e certifiquei-me de que ninguém nos estava a prestar atenção antes de erguer uma pontinha do curativo e lhe mostrar o que estava por baixo. Karenn arquejou.

— Ele viu…?

— Espero que não…

Karenn baixou nervosamente o olhar para a ponta dos pés. Ao mesmo tempo, a sua mão escorregou pelo meu braço. Chegando à minha mão, agarrou-a e puxou-a, convidando-me a abrandar o passo.

— O que foi? — perguntei, confusa.

Karenn limitou-se a sacudir a cabeça e puxou-me com mais insistência. O resto do grupo continuou a afastar-se, aumentando a distância que nos separava deles. Adonis olhou por cima do ombro e hesitou ao ver-nos para trás, mas Karenn fez-lhe um gesto para virar-se para frente e continuar a andar.

— O que foi? — repeti quando os outros já estavam a vários metros de distância.

Karenn humedeceu nervosamente os lábios e apertou a minha mão com mais força.

— Eu… quero contar-te uma coisa.

— Sim?

— Por favor… não fiques zangada.

— O que é que se passa? — inquiri, desconfiada.

Karenn voltou a humedecer os lábios com a ponta da língua.

— Eu… quebrei a promessa que te fiz.

Senti o meu coração gelar-se-me no peito.

— O que é que tu fizeste? — murmurei, aterrada.

— Eu não contei a ninguém o que és! — afiançou rapidamente — Não foi essa promessa que quebrei… Foi a promessa sobre não contar da tua mão. Lembraste?

— Karenn…

— Eu contei ao Nevra — admitiu a pequena vampira — Eu contei-lhe porque… queria ajudar-te a descobrir o que estava a acontecer com a tua mão e porque precisei da ajuda dele para enfeitiçar a porta do teu quarto para ninguém conseguir entrar…

— Karenn…

— Eu contei-lhe que não querias que ninguém descobrisse sobre a tua mão e ele convenceu o Ezarel e a Eweleïn a desistir das amostras…

— Quanto é que lhe contaste? — perguntei, irritada.

— T-tudo — admitiu a pequena vampira — Eu contei-lhe tudo o que sabia sobre a tua mão até à noite em que me disseste o que eras.

— Ele sabe da asa?!

— Não! — Karenn negou rapidamente, sobrepondo a sua voz à minha — Eu não lhe contei sobre isso. Só descobrimos… isso na mesma noite em que me contaste a verdade, lembraste? Eu não lhe contei mais nada a partir desse dia… e ele estranhou — soltou um pequeno suspiro — O Nevra tem-me pressionado para falar desde o dia em que partiste o osso, mas eu não lhe contei mais nada, juro! E acho que foi por isso que ele te chamou para passar a noite com ele… Queria ver o que se passava por baixo da tua roupa com os seus próprios olhos…

Eu cerrei os punhos e dirigi um olhar fulminante às costas do vampiro que caminhava lá muito ao longe. Fora esse o seu propósito, então? O castigo, os beijos, as carícias… tinham como único intuito seduzir-me e convencer-me a tirar a roupa para que Nevra pudesse descobrir o que estava por baixo? E, como o plano não resultara como era esperado, pedira para iniciar uma “relação” que justificasse uma nova tentativa. Fui tão estúpida! Achara mesmo que…? Tão estúpida! Nevra jamais aceitaria ficar preso a uma relação séria! Ele era um mulherengo, só se queria divertir… e juntara o útil ao agradável no que me dizia respeito! Lithiel tinha razão! Eduarda, sua burra!

— Maldito vampiro — mastiguei para mim mesma, cerrando os punhos com tanta força que começaram a tremer — Vou arrancar-lhe a garganta…!

— Eu não sei se o Nevra sabe o que és — disse Karenn —, mas se ele viu a tua pele… é bastante provável.

— Se ele sabe, porque não me matou? — indaguei por entre os dentes cerrados.

— Eu… não sei…

— Eu vou falar com ele — decidi, começando a acelerar o passo.

— Não, Eduarda! — negou Karenn, pegando-me na mão outra vez — Não fales com ele! Não agora, pelo menos. Os outros poderão ouvir… e poderão não ser tão clementes como o Nevra sobre a tua raça!

Eu sentia-me humilhada, furiosa e aterrorizada. Nevra seduzira-me e mentira-me para tentar deslindar os meus segredos… e eu não só não sabia quanto o vampiro descobrira, como não sabia o que ele pretendia fazer com o conhecimento que adquirira. Pensara que ele ter poupado a minha vida, assumindo que sabia a minha raça, era bom o suficiente… mas agora perguntava-me se não teria um destino muito pior reservado para mim! O que queria Nevra de mim, afinal? Quais eram os seus planos? Eu precisava de saber! Karenn, todavia, tinha razão. Não era o momento certo. Eu teria de ser paciente…

A viagem prosseguiu tranquilamente até fazermos a nossa pequena paragem para almoçar. Eu pretendia aproveitar a ocasião para atualizar Leiftan sobre o avanço da pele iridescente e suplicar por uma solução, mas Nevra não me permitiu ir até ao investigador, relembrando-me do castigo. A minha reserva de paciência quase rebentou nesse instante e a única coisa que consegui fazer, antes de começar a atirar umas verdades à cara do vampiro, foi virar costas e afastar-me a passos largos. Nevra avisou-me para não me afastar muito ou iria buscar-me por uma orelha e eu quase lhe mostrei um dedo por cima do ombro. Não pretendia parar de caminhar até escoar à minha ira.

Só cessei os meus passos quando o pensamento de que me iria perder me ocorreu. Soltando um pequeno rugido enraivecido, dei um murro numa árvore. Soube-me bem, por isso dei-lhe um pontapé também. Praguejei baixinho e dei-lhe mais um murro. Que nervos! Iria arrancar o outro olho de Nevra e obriga-lo a engoli-lo! Como pudera cair nas suas artimanhas? Como…?

Os meus olhos encheram-se de lágrimas, mas recusei-me a soltá-las. Não iria chorar às custas de Nevra! Eram os meus punhos o que ele merecia, não as minhas lágrimas! E pensar que nessa manhã me sentira culpada por me servir dele… Eu, pelo menos, não o usara deliberadamente! Se ele não me tivesse beijado, eu também não teria tomado a iniciativa! Se o meu coração não mo tivesse ordenado, eu nem sequer teria correspondido…

E que bela altura para admitir que sentia algo por ele!

— Raios te partam, Nevra — resmoneei para mim mesma — Raios me partam a mim também! Eu sei que não posso criar laços aqui e mesmo assim…

Uma lágrima teimosa escapou e eu limpei-a com um gesto furioso da mão. Quase ao mesmo tempo, ouvi uma vozinha infantil:

— Porque chorais, Ama?

Virei-me com um pulo e recuei com outro ao encontrar uma luz vermelha a flutuar a poucos centímetros de distância de mim. Semicerrei desconfiadamente os olhos e recuei mais um pouco, cautelosamente. O que era… aquilo?

— Magoaram-vos, Ama? Quem foi o desgraçado?

O meu cérebro estava a ter dificuldade em compreender a informação que recebia dos meus olhos, mas optei por partir do princípio de que aquilo era real e não uma alucinação. Aparentemente, a voz infantil pertencia à luz vermelha que não era só uma luz. Eu conseguia distinguir no meio do brilho a silhueta de uma menina rechonchuda… Uma silhueta com a altura do meu dedo mindinho. A força da luz, porém, não me permitia distinguir detalhes. Era tão intensa que se tornava difícil olhá-la diretamente.

— Ama? — chamou a menina, estranhando a minha ausência de reação.

— Quem és tu? — consegui finalmente perguntar — O que és tu?!

— Ah…! Perdoai-me a minha indelicadeza, Ama! — rogou a menina, curvando-se numa vénia — O meu nome é Rubih! Vim a mando do Amo Ashkore…

— Ashkore? Quem é esse?

A menina hesitou, intrigada.

— O vosso irmão, Ama. O titã vermelho de Darr.

Eu petrifiquei por um momento, sem saber como reagir àquela informação. Então, o titã chamava-se Ashkore… e enviara aquela menina até mim? Ela sabia que eu era uma titânide? Pergunta estúpida, claro que sabia! Presumi que o titã lhe contara…

— Ele… enviou-te? — inquiri nervosamente — P-porquê?

— O Amo Ashkore pediu-me para vos transmitir uma mensagem — disse a pequena — Pediu-me para vos avisar que a vossa vida está em perigo. O vosso disfarce está fraco e a vossa situação no meio dos faeries é cada vez mais precária… Por isso, o Amo Ashkore roga-vos para que vos junteis a ele antes que os faeries possam magoar-vos.

Ah… O titã viera aliciar-me de novo. Gostaria de ter recusado o convite com a mesma prontidão de antes… mas não consegui. Não podia. Na verdade, aceitar parecia a solução para os meus problemas. Rubih tinha razão no que dissera. A minha verdadeira identidade estava prestes a ser revelada e o que fariam os meus companheiros de viagem nessa altura? Não era difícil adivinhar: eles matar-me-iam sem hesitar.

O sucedido com Nevra também me incitava a aceitar. Eu estava cansada daquilo, das mentiras, dos segredos, das omissões, cansada de usar e ser usada… Acima de tudo, estava cansada de ter medo. Se me juntasse ao titã, não teria de voltar a senti-lo. Ele era um titã, como eu, por isso iria proteger-me. Os seus apoiantes também, presumo. E o titã, ao contrário de Leiftan, até se mostrara disposto a contar-me a verdade. É claro que não teria quaisquer garantias de que o que ele me contaria era a verdade, mas…

— Qual é a vossa resposta, Ama? — inquiriu entretanto a pequena Rubih.

Soltei um pequeno suspiro, esfregando insistentemente a têmpora. Eu não podia responder com a cabeça quente. Precisava de pensar, pesar os prós e os contras… O problema é que, graças ao silêncio de Leiftan, nem sequer tinha verdadeira consciência do que estava a acontecer! Na situação em que me encontrava, aceitar parecia simples e recomendável… mas era demasiado fácil. Tinha de haver um senão. Havia sempre um senão.

— Quero saber uma coisa antes…

— Sim, Ama?

— O que quer o titã de mim? Sei bem que a insistência dele em ter-me ao seu lado não é desprovida de interesse! O que quer ele de mim? Estará à espera que eu o ajude a destruir este mundo?

— O Amo Ashkore não pretende destruir Eldarya! — defendeu Rubih, exaltada.

— O que quer ele, então?

— O Amo só quer fazer justiça. Libertar os vossos irmãos e recuperar o que é vosso.

— Hum… E onde é que eu entro nessa história? — perguntei, cruzando os braços diante do peito.

— Vós sois irmã do Amo Ashkore. Sois parte da família, por isso, o Amo quer proteger-vos.

— Só isso?

— Sim, Ama. Só isso. O Amo não vos irá forçar a participar na guerra se esse não for o vosso desejo. O Amo Ashkore quer somente a companhia da família. A companhia da própria espécie. Ele sente-se muito sozinho…

Ergui uma sobrancelha, desconfiada. Não acreditava nem um pouco naquilo…

— Eu não me importaria de fazer-lhe companhia se isso não entrasse em conflito com os meus próprios interesses.

— Quais interesses, Ama?

— Voltar para a Terra.

— Quereis voltar para a Terra? — admirou-se a menina.

— Sim. Porque não haveria de querer? É o meu mundo.

— Eu não… Perdoai-me, Ama, mas não concordo com isso…

— Porquê? — perguntei, franzindo o sobrolho.

— Vós ireis transformar-vos completamente muito em breve. Fareis mais parte deste mundo do que do outro… Nesse caso, não seria melhor ficardes aqui?

— Não — neguei de imediato, recusando sequer ponderar essa hipótese — Eu não quero ficar em Eldarya. Quero recuperar o meu corpo humano, voltar para casa e esquecer que este maldito mundo existe.

— Entendo — murmurou Rubih, desanimada — Sendo assim, creio que o Amo Ashkore teria todo o gosto em levar-vos…

— O quê? Ele pode fazer isso? — admirei-me.

— É claro, Ama. O Amo Ashkore não está ainda no auge do seu poder, por isso poderá não conseguir abrir um portal de imediato, mas é somente uma questão de tempo.

— Menos tempo do que os faeries demorariam a fazê-lo?

— Muito menos.

Eu levei uma mão à testa, atordoada. Como não pensara nisso antes? Os titãs eram visitantes de outra dimensão, não eram? Logo, deveria ser-lhes simples viajar para outro mundo! Imagino que, com tempo e completamente transformada, eu mesma conseguisse abrir o portal! Como nunca pensara nisso?

— Pergunta ao teu amo se ele aceita levar-me para a Terra — pedi a Rubih — Já! Eu… eu preciso de sair daqui!


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Notas finais do capítulo

[Próximo: 3/6/18]



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