Titanomaquia escrita por Eycharistisi
Notas iniciais do capítulo
[Capítulo agendado]
— Hum… Kero? — chamei, aproximando-me discretamente da secretária do bibliotecário.
— Sim?
— Será que posso… ler os relatos da Titanomaquia?
Kero fez uma expressão confusa.
— Referes-te aos relatos originais?
— Sim.
A confusão do bibliotecário intensificou-se.
— Porque queres lê-los?
— Curiosidade.
Kero fixou-me, talvez a tentar deslindar as minhas verdadeiras intenções, mas acabou por desistir e soltar um pequeno suspiro.
— Lamento, Eduarda, mas os relatos não estão disponíveis para consulta. São documentos antigos e preciosos que não podemos correr o risco de danificar.
— Eu não vou estragar nada — garanti.
— Sei que não o farias de propósito, mas os acidentes podem ocorrer com qualquer pessoa. Lamento, mas a resposta continua a ser não.
Comprimi os lábios, desagradada pela recusa, mas aceitei-a com um aceno de cabeça.
— Podes sempre ler as compilações feitas pelos Sacerdotes — sugeriu Kero — É quase a mesma coisa.
Torci a boca num pequeno trejeito.
— Parece que não tenho escolha, não é? — murmurei mais para mim do que para ele — Onde encontro as compilações?
— Estão numa estante no fundo da biblioteca, eu posso levar-te lá — Keroshane começou a levantar-se, mas parou e voltou a sentar quando os seus olhos poisaram no pergaminho em que estivera escrever — Quero dizer… Eu provavelmente devia terminar isto primeiro… Já ultrapassei o prazo de entrega da Miiko, ela deve estar…
— Eu consigo encontrá-los sozinha, não tem problema — tentei tranquiliza-lo, preparando-me para dar meia volta.
— Não, não, espera, tenho alguém que pode ajudar-te… Adonis! — chamou Kero num sussurro estridente, erguendo uma mão no ar — Adonis, vem cá!
Eu segui com o olhar a direção em que Kero acenava e vi um rapazote meio escondido atrás duma estante, ostentando a expressão apavorada de quem fora apanhado a fazer o que não devia. Ficou completamente petrificado quando Kero o chamou, empalidecendo e arregalando os olhos de cores diferentes. Castanho e verde, se a distância não me engana.
— Adonis? Vem cá! — insistiu o bibliotecário, fazendo gestos para ele se aproximar.
O rapaz hesitou. Piscou nervosamente os olhos que começavam a deslizar sem rumo pelo espaço, até que, por fim, poisaram nos meus. A troca de olhares durou um milésimo de segundo, talvez nem isso, mas foi o suficiente para o miúdo ficar da cor de um tomate maduro. Ele desviou rapidamente o rosto, tentando esconder o rubor com uma cortina do seu longo cabelo castanho, mas não foi muito bem-sucedido.
— Adonis? — chamou Kero, levantando-se com uma expressão preocupada.
— Acho que o deixei nervoso — notei, sem conseguir disfarçar a surpresa na minha voz. Será que ele tinha… medo de mim?
— Vocês já se cruzaram antes? — perguntou Kero, curioso.
— Não, mas…
Silenciei-me quando o rapazinho começou a avançar na nossa direção, ostentando uma expressão resoluta e evitando a todo o custo olhar para mim. Eu não pretendia deixá-lo mais desconfortável do que já estava, mas não conseguia parar de fitá-lo. Nunca vira um centauro antes.
O rapaz não tinha mais de quinze anos, avaliando pelo tronco magro e desengonçado, mas era bastante alto. A sua metade de cavalo, especialmente as pernas, eram as principais responsáveis pelo tamanho, fazendo-o erguer-se vários centímetros acima da minha cabeça.
O jovem centauro deteve-se diante da secretária de Keroshane, colocando-se a meu lado, mas deixando uma distância segura entre nós. Eu continuei a fixá-lo, admirando o pelo castanho e lustroso do seu dorso. Devia ser tão macio…
— Está tudo bem, Adonis? — perguntou Kero, preocupado.
O rapazinho engoliu em seco, espreitou-me pelo canto do olho e corou tanto que temi que um fio de sangue lhe descesse do nariz. Baixou rapidamente o rosto e só então fez um pequeno aceno afirmativo.
— Estás muito vermelho — constatou o bibliotecário — Estás doente?
Os ombros do rapaz estremeceram enquanto a cabeça tombava ainda mais para o peito. Sacudiu-a rapidamente, negando.
— De certeza?
Aceno afirmativo.
— Deixa-o em paz, Kero — pedi, tentando conter um sorriso — Ele só está com medo de mim…
O rapaz ficou branco como giz, dirigindo-me um olhar arregalado e horrorizado.
— N-não! — negou num fio de voz aguda — N-n-não é isso! E-e-eu não tenho… não tenho…
A voz do rapazinho foi enfraquecendo à medida que o nosso contacto visual se prolongava, até que voltou a ficar da cor de um tomate. Desviou apressadamente o olhar e balbuciou mais qualquer coisa, mas não consegui perceber o quê. Não importa. A sua reação fora esclarecedora o suficiente… e muito conveniente…
— Não há qualquer razão para teres medo da Eduarda, Adonis — tranquilizou-o Kero.
— Sou um amor de pessoa — reforcei.
— E-eu n-não tenho medo — murmurou o pequeno, batendo nervosamente os cascos.
— Ainda bem, porque queria pedir-te para levares a Eduarda até às compilações dos Sacerdotes. Podes fazê-lo? Eu estou ocupado de momento…
— Claro…
— Ótimo!
Keroshane sentou-se, devolvendo a sua atenção ao pergaminho, e o jovem centauro aproximou-se de mim, engolindo em seco antes de apontar o caminho:
— P-por aqui…
Disfarçando um pequeno sorriso, segui o rapazinho por entre o labirinto de estantes.
— O teu nome é Adonis, não é? — perguntei quando Kero já não nos podia ver ou ouvir.
Adonis corou, mas respondeu:
— É… é, sim…
— É um nome muito bonito.
Ele corou ainda mais, baixando o rosto para que o cabelo escondesse o seu rubor.
— O-obrigado… O teu também é… m-muito bonito…
— O pelo do teu dorso é fantástico — continuei a elogiar — Parece ser tão macio…
Adonis voltou a corar ao ponto de quase sangrar pelo nariz, gaguejando uma data de sons incoerentes até que conseguiu dizer:
— E-eu l-lavo-me t-t-t-todos os dias…!
Acho que parti uma costela a tentar segurar a gargalhada que me subiu disparada pela garganta, mas consegui impedi-la de sair. Céus, ele era demasiado adorável, não lhe conseguia resistir!
— Nota-se — comentei, ainda com resquícios de riso na voz — Deve dar imenso trabalho lavar e escovar esse pelo todo!
— U-um pouco…
— Eu posso ajudar-te, se quiseres. Convivi bastante com cavalos em pequena, então tenho alguma experiência…
Os quatro joelhos de Adonis vacilaram e ele cambaleou para o lado, batendo com o ombro numa estante próxima. Os livros sacudiram-se violentamente e eu agarrei rapidamente o braço do rapazinho, pronta para puxá-lo no caso de algum dos pesados volumes cair na sua direção.
— Estás bem? — perguntei depois de me certifiquei que os livros permaneceriam no seu lugar.
Adonis acenou freneticamente com a cabeça, embora respirasse com dificuldade.
— Queres que chame alguém?
— N-não… eu estou bem… Só…
— Só…? — incitei, quando ele hesitou.
— Não devias… dizer essas coisas — murmurou o rapaz num tom quase inaudível.
— Que coisas?
Ele corou ainda mais, se é que tal é possível.
— Ofereceres-te p-para me ajudar… a lavar e… I-isso não é apropriado. Não devias dizer… esse tipo de coisa…
— Ah… — fiz, escondendo um sorriso — Tens razão, não seria apropriado. Peço desculpa.
— T-tudo bem… Não faz mal… A-anda, estamos quase a chegar —chamou, recomeçando a caminhar. Eu segui-o, desta vez em silêncio. Não ia atormentar mais o pobrezinho. Já confirmara aquilo de que desconfiara: Adonis tinha uma paixoneta por mim. Um sentimento pueril, inocente e sem qualquer fundamento, como eram todas as paixões adolescentes, mas que poderia vir a ser-me muito útil no futuro. Partir-me-ia o coração usá-lo daquela forma, mas eu precisava mesmo de descobrir a verdade. Precisava mesmo daqueles relatos…
Não demorámos muito a chegar ao fundo da biblioteca. Adonis avançou até à última prateleira, encostada à última parede, e apontou para uma longa extensão de livros grandes e pesados.
— As… as tiras de cor nas lombadas indicam o tema de cada volume e os números dentro delas indicam a ordem em que devem ser lidos — explicou o centauro num murmúrio.
— Qual é a cor da Titanomaquia?
— Verde.
Procurei rapidamente a fileira de livros com tiras verdes nas lombadas e puxei o que estava assinalado com o número um antes de dirigir um pequeno sorriso ao centauro.
— Pareces conhecer bem a biblioteca…
— E-eu trabalho aqui.
— A sério? Não me pareces ter idade suficiente para trabalhar.
— Já tenho quinze anos — defendeu-se o rapazinho, franzindo ligeiramente o sobrolho — Tenho idade suficiente para fazer parte das Guardas.
— Aceitam-vos assim tão novos?
— Os treinos são extensos… Quanto mais cedo começarmos, melhor.
— Qual é a tua Guarda? — perguntei enquanto folheava lentamente o livro. As páginas eram enormes, mas a letra continuava pequena e apertada… Seria uma tortura ler aquilo.
— Eu não… entrei em nenhuma — admitiu o rapazinho, triste.
Ergui os olhos do livro para o fixar, intrigada.
— Porquê?
Adonis encolheu levemente os ombros.
— Não… quero falar sobre isso… Desculpa…
— Tudo bem — cedi, controlando-me para não lhe dar um abraço. Ele parecia tão triste e desamparado… Era tão fofo!
— P-precisas de ajuda com mais alguma coisa? — perguntou Adonis, mudando rapidamente de assunto.
— Ah, não, penso que não… Obrigada — acrescentei com um pequeno sorriso.
O rapazinho voltou a corar, pigarreou suavemente e aceitou o agradecimento com um gesto de cabeça.
— Foi um prazer — murmurou antes de dar rapidamente meia volta. Observei-o afastar-se até a ponta da sua sedosa cauda desaparecer por entre as estantes e só então devolvi a minha atenção ao livro.
O meu interesse naquelas histórias escritas a partir de relatos selecionados era bastante reduzido, mas teria de me contentar com aquilo até convencer Adonis a mostrar-me os originais. Fiquei mais de uma hora diante da prateleira, sentada no chão, folheando os livros com tiras verdes nas lombadas. Não tinha tempo para começar a lê-los, mas as gravuras que surgiam pontualmente no meio do texto chamaram-me a atenção. Encontrei várias com representações dos titãs e demorei-me a observá-las, fascinada. Os titãs surgiam sempre como seres gigantescos a arrasar o campo de batalha, pisoteando os faeries, esmagando-os com os punhos ou varrendo-os com as grossas caudas. Nada parecia pará-los, nem sequer as inúmeras armas que perfuravam as asas com que se defendiam dos atacantes. Continuavam a lutar até reduzir o exército faery a cinzas… ou até soltar o último suspiro.
— O chão… não é confortável…
Virei a cabeça na direção da voz conhecida, abrindo um sorriso ao ver Adonis parado a vários passos de mim.
— Eu sei, não estava a contar ficar muito tempo por aqui. Parece que a história me prendeu mesmo!
Adonis lançou um olhar curioso às pequenas pilhas de livros que me rodeavam.
— Vais levá-los a todos contigo?
— Não, não — neguei, esticando lentamente as pernas doridas — Tenho uma data de livros no quarto que preciso de terminar primeiro. Virei buscar estes depois disso…
Comecei a devolver os livros aos seus respetivos lugares e, quase ao mesmo tempo, ouvi o som dos cascos de Adonis aproximar-se.
— Eu ajudo-te — murmurou o rapazinho antes de pegar nalguns livros.
Agradeci, dirigindo-lhe um pequeno sorriso.
— Sabes a que horas abre o refeitório? — perguntei no entretanto, empurrando o último volume para o seu lugar.
— Deve estar a abrir agora mesmo.
— Ah, ainda bem, porque estou a morrer de fome!
— É-é, eu também tenho fome…
— Queres vir comigo? — convidei.
Adonis corou até à raiz dos cabelos e começou a gaguejar, até que disse:
— E-eu… gostava, m-mas… os meus amigos…
— Já tens coisas combinadas? — alvitrei.
— P-pois…
— É pena — lamentei com trejeito triste — Adoraria ter companhia para jantar, estou sempre sozinha…
— P-p-podes vir connosco — disse rapidamente o rapazinho.
— Os teus amigos não se importam?
— N-não, quer dizer, eles não têm razões para se importar. N-não te preocupes, eu não… não vou deixar que te façam mal — prometeu, muito corado, mas sem desviar os olhos desiguais dos meus.
Eu abri um sorriso lento, completamente seduzida pela sua fofura.
— Sendo assim, aceito — murmurei, batendo as pestanas — Vamos?
Adonis abriu também um sorriso, muito animado, e deu a volta com tanta rapidez que os seus quadris chocaram contra uma estante próxima. Ele corou e soltou um pequeno queixume de dor, mas o sorriso não lhe abandonou os lábios.
Caminhámos juntos até à entrada da biblioteca, onde Adonis se deteve para avisar Keroshane de que ia sair, e depois dirigimo-nos para o refeitório. Os amigos do centauro não estavam lá, mas não tardaram a juntar-se a nós na fila para os tabuleiros. Nem de propósito… eram o grupo de rapazinhos que estivera atrás de mim no dia anterior.
Adonis apresentou-me todos os rapazes, mas não fixei o nome nem de metade. O único que fiz questão de não esquecer foi o nome do rapaz que andou a farejar os armários de Eweleïn para descobrir o ladrão das amostras: Chrome.
— Então, tu és a humana vinda da Terra — constatou um dos outros rapazinhos, abrindo um sorriso coroado por longas presas brancas — Estava curioso para te conhecer!
— Cheiras tão bem — comentou outro, com pequenos chifres negros a espreitar por entre o cabelo — Dás água na boca…
— P-parem com isso! — defendeu rapidamente Adonis, soerguendo um braço diante de mim para me separar dos rapazes — A Eduarda não é comida!
— O que é que ela tem na mão direita? — perguntou Chrome de súbito, lançando-me um olhar muito desconfiado.
Eu devolvi-lhe o olhar, perguntando-me como teria ele notado a mão ferida. Mantivera-a junto ao corpo o tempo todo, não a erguera ou sequer mexera desde que eles tinham chegado…
— Queimei-me — respondi, sucinta — Porquê?
As narinas do rapazinho dilataram-se ligeiramente.
— O cheiro… é diferente.
— Diferente como?
O rapaz abriu a boca para responder, mas voltou rapidamente a fechá-la enquanto arregalava os olhos. Voltou-se na direção da porta do refeitório no preciso momento em que começaram os gritos no átrio.
— O que é que se passa? — indagou um dos rapazes, estranhando a confusão.
— O ladrão da enfermaria… — murmurou Chrome, absorto —Encontraram o ladrão da enfermaria! Não pode ser…!
Exaltado, Chrome saiu disparado para o átrio. Eu segui-o sem pensar duas vezes, com o coração a palpitar no peito. Encontraram o ladrão? Encontraram Leiftan? Como é que era possível?!
Chrome dirigiu-se com passadas largas para a enfermaria, entrando de rompante na sala apinhada de gente. Eu mantive-me junto à porta, tentando apenas entender o que se estava a passar.
Ezarel e Eweleïn estavam debruçados sobre um humanoide deitado numa cama ao fundo da divisão, trocando palavras baixas e urgentes enquanto remexiam o indivíduo. Dois outros humanoides, aparentemente enfermeiros, detinham-se perto deles enquanto aguardavam instruções. Um pouco mais afastados, dois homens com ar triste e exausto conversavam com Nevra e Valkyon. Jamon estava parado algures no meio dos dois grupos e foi ele quem se lançou em frente para impedir Chrome de se aproximar dos quatro enfermeiros, agarrando-o pelo colarinho.
— Chrome não dever estar aqui — grunhiu o homem-javali.
— Eu preciso de saber o que aconteceu! — exigiu o pequeno, tentando soltar-se.
— Chrome ter de acalmar…
— Chrome, não devias estar aqui — reforçou Nevra, atraído pela confusão — Vai lá para fora e…
— Eu não vou sair daqui! — volveu o rapaz — Não vou sair daqui enquanto não me explicarem porque diabos está ele morto!
Senti-me como se tivesse levado um murro no estômago. Morto? Ele estava a dizer que Leiftan…? Não… Não! Leiftan era a minha última esperança de descobrir o que eu era! O único em quem eu (acreditava que) podia confiar! Ele não podia estar morto! Não podia!
Avancei com passadas largas até à cama rodeada pelos enfermeiros, aproveitando que Jamon e Nevra estavam ocupados com Chrome para conseguir passar. Empurrei um dos enfermeiros sem cerimónia e fixei o corpo sem vida que se quedava diante de mim.
— Oh… Céus… — arquejei, cobrindo rapidamente a boca com as mãos enquanto os olhos se enchiam de lágrimas.
— Eduarda! — gritou alguém.
— O que faz ela aqui?!
— Quem é que a deixou entrar?!
— Ela não precisa de ver isto!
— Tirem-na daqui!
Senti alguém agarrar-me pelos ombros e puxar-me para longe do defunto, mas já era tarde demais. A imagem daquele torso esfaqueado estava imprensa na minha retina, sobrepondo-se a tudo aquilo que surgisse diante de mim. O meu estômago revolveu-se e precisei de toda a minha concentração para não vomitar nos pés da pessoa que me guiava para fora da enfermaria.
Céus…
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