Titanomaquia escrita por Eycharistisi


Capítulo 13
XII. Eu sempre quis ter uma humana...


Notas iniciais do capítulo

[Capítulo agendado]



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O quarto a que Keroshane me apresentou entrava e não entrava nas minhas expetativas. Eu sabia que não iria encontrar uma suite de luxo, óbvio, mas julguei que teria, pelo menos, uma cama decente onde dormir. Um colchão com três dedos de altura e um lençol fino não entravam na minha definição de decente!

— Sem mobília, hã? — comentei num tom forçosamente casual enquanto entrava no quarto e mirava as paredes rosadas e vazias. Não havia nada ali. Nada para além dos dois objetos já mencionados e um pequeno castiçal com uma vela.

Keroshane empurrou nervosamente os óculos contra a cana do nariz.

— N-nós não investimos nos quartos vazios porque nunca sabemos a quem estes irão pertencer. Raças diferentes têm necessidades básicas diferentes, por isso o melhor é simplesmente… manter os quartos vazios e deixar que o seu ocupante os mobile de acordo com as suas necessidades.

— Estou a ver…

— T-tenho aqui a chave do teu quarto — anunciou Keroshane, entregando-me uma pequena chave prateada — Tranca a porta sempre que saíres e antes de te deitares, não vá algum mascote entrar aqui e…

— Mascote? — repeti, confusa.

— São os nossos bichinhos de estimação. Eu acho que te entreguei um livro sobre isso…

— Ah, okay… vou lê-lo, então.

Keroshane fez um pequeno aceno de cabeça, em jeito de incentivo, e não disse mais nada. Mergulhámos num pequeno silêncio desconfortável até que ele levou rapidamente a mão aos óculos, para os empurrar contra a cana do nariz, dizendo:

— B-bom, então… hã… Já te mostrei o quarto, já te dei a chave… já te disse onde são as casas de banho, certo?

— Sim, primeiro piso do dormitório, porta do lado direito.

— Exato. Então… hã… penso que o meu trabalho aqui está feito. Tens mais alguma questão ou dúvida que me queiras colocar?

— Não, acho que não — neguei com um pequeno suspiro.

— Sendo assim, deixo-te por tua conta. Voltarei dentro de algumas horas para te levar ao refeitório, tudo bem?

— Tudo bem…

— Ótimo, então… Até já.

— Até já.

Keroshane dirigiu-me um último sorriso, um aceno… e foi-se embora.

Soltando um longo suspiro cansado, poisei os livros que trouxera da biblioteca no chão, entre a “cama” e o castiçal, e fui trancar a porta do quarto. Virei-me para regressar aos livros… mas a única coisa que de facto fiz foi encostar as costas à porta, sentindo-me subitamente exausta. Deslizei pela madeira abaixo até ficar sentada no chão e mirei as paredes vazias e o céu azul através da janela. Sem alguém para me distrair, a minha cabeça enchia-se de perguntas sobre o como e o porquê. Como era possível existir um mundo paralelo ao meu? Como é que eu viera ali parar? Porque é que de entre os biliões de pessoas que existiam na Terra… fora justamente eu a vítima daquele infortúnio?

Senti os meus olhos encherem-se de lágrimas e um frio glacial oriundo do medo e da confusão apoderou-se de mim. Enrolei-me numa bola, abraçando os joelhos contra o peito, mas nada afastava a sensação gelada que me esmagava o peito. Porquê eu? Porquê?

As lágrimas começaram a deslizar-me pelo rosto quando os tremores já me faziam bater os dentes. Um soluço inconsolável subiu-me pela garganta e pressionei os lábios contra um dos joelhos para impedir que mais o seguissem. Porquê eu? Porquê?!

Comecei a chorar tanto que teria caído se estivesse de pé. Os soluços que abafava contra os joelhos sacudiam-me o corpo e intensificavam os tremores. As lágrimas eram tão abundantes que me cegavam e inchavam as pálpebras. Senti, por instantes, a minha sanidade mental abandonar-me e a única coisa que ficou foram os sentimentos duma menina indefesa e aterrorizada que apenas queria regressar ao conforto e segurança dos braços da sua mãe.

Porquê eu…?

Não sei durante quanto tempo estive sentada no chão. Não sei quando parei de chorar. Estava apenas vagamente consciente quando ouvi alguém bater à porta atrás de mim. Ergui lentamente o rosto que poisara nos joelhos e olhei para a janela, através da qual entravam os derradeiríssimos raios de luz solar. O céu era agora azul-escuro e as primeiras estrelas começavam a surgir, piscando com timidez.

— Eduarda? É o Kero. Está na hora de jantar — ouvi a voz abafada do outro lado da porta como a voz que me chamava para o mundo real. Mesmo que me desgostasse admitir que aquela dimensão bizarra era o mundo real…

Inspirando um fôlego de coragem, passei as mãos pelo rosto para limpar os restos das lágrimas e comecei a desenrolar o corpo hirto. Foi difícil levantar-me, mas lá consegui suster-me nas pernas.

— Eduarda? — tornou a voz de Keroshane, com uma nota de preocupação — Consegues ouvir-me?

Pigarreei levemente para aclarar a garganta, mas a voz ainda me saiu ligeiramente enrouquecida quando lhe respondi:

— Sim, eu… Desculpa, eu adormeci.

— Ah, tudo bem, não tem problema! — disse rapidamente Keroshane, aliviado — Leva o tempo que precisares.

Precisar para quê? Não tinha nada para fazer, nada para vestir, nada para disfarçar o rosto inchado de tanto chorar… Nada para melhorar o humor miserável com que me encontrava!

Inspirando um novo fôlego, desta vez de paciência, abri a porta do quarto e saí para o corredor. Keroshane estava à minha direita, dirigindo-me um pequeno sorriso.

— Pronta?

Eu limitei-me a um aceno de cabeça e segui-o a arrastar os pés. Estava exausta. A minha mente fora exaurida pela descarga emocional, o meu corpo ainda se ressentia da posição desconfortável em que estivera nas últimas horas e a minha mão ferida começava a latejar e a doer. Se não fosse pelos roncos do meu estômago, acho que teria desistido do jantar para ficar no quarto a dormir.

O caminho até ao refeitório foi longo e penoso. Fizemos todo o trajeto de regresso ao átrio e foi aí que encontrámos uma porta escancarada para uma divisão grande, quente e muito barulhenta. Eu fiz uma careta quando o som dos talheres e das conversas me entupiu os ouvidos e o calor me arrancou o apetite. Nunca conseguia comer quando me sentia demasiado quente…

— Eduarda, por aqui! — quase gritou Keroshane, guiando-me para um balcão não muito longe.

O refeitório parecia funcionar da mesma forma que os da Terra. Keroshane tirou um tabuleiro de madeira duma pilha na ponta do balcão, entregou-mo e depois levou-me até vários recipientes com comida, perguntando:

— O que gostarias de comer?

Eu lancei um olhar curioso aos recipientes, perguntando-me a mesma coisa. Vi travessas com sopas, saladas, peixes, bifes, coxas de frango, frutas… Havia uma variedade enorme de alimentos e possíveis combinações, mas o que mais me impressionava era o facto de eu os reconhecer a todos. Era um alívio saber que não teria de comer coisas estranhas e desconhecidas, mas um mundo paralelo não deveria ter uma alimentação mais… exótica, talvez?

— Acho que vou escolher o frango — anunciei por fim.

Keroshane fez sinal a uma mulher com orelhas de raposa do outro lado do balcão e transmitiu-lhe o meu pedido.

— Queres o frango com arroz ou batata? — perguntou a mulher-raposa na minha direção.

— Batata — murmurei, acanhada.

Ela colocou uma generosa porção de batata assada num prato com duas coxas de frango e entregou-mo. Agradeci e apressei-me atrás de Keroshane, aceitando os talheres que ele já separara para mim.

— Não vais comer? — perguntei, mirando as suas mãos vazias.

— Irei depois de te deixar com os chefes das Guardas — disse ele, abrindo um pequeno sorriso — O Valkyon está ali daquele lado, anda!

Segurando o tabuleiro com dificuldade devido à mão ferida, segui Keroshane até uma mesa redonda cercada por quatro cadeiras. Uma delas já estava ocupada… pelo general que me arrastara até Miiko.

— Eduarda, apresento-te o Valkyon, o Comandante da Guarda Obsidiana — disse Keroshane com um pequeno sorriso empolgado — Valkyon, apresento-te a Eduarda.

O Comandante inclinou a cabeça na minha direção, em jeito de cumprimento.

— Muito prazer — disse num tom baixo que aprofundava ainda mais a sua voz.

Eu poisei o tabuleiro na mesa com força suficiente para chocalhar os talheres.

— A sério? Vais mesmo agir como se nós não nos conhecêssemos? Quantas pessoas agarras por o dia para o teu amiguinho lhes despejar poções pela garganta abaixo para agora não te lembrares de mim?

Valkyon remexeu-se na cadeira, desconfortável.

— Nós não nos conhecemos sob a melhor das circunstâncias, mas pensei que pudéssemos atirar isso para trás das costas e começar de novo.

— Ah, claro, porque ser agarrada por um brutamontes é mesmo o tipo de coisa que uma rapariga atira facilmente para trás das costas!

— Oh, começaram o espetáculo sem mim? Isso não é nada cortês!

Virei rapidamente a cabeça na direção da nova voz e vi o vampiro confortavelmente sentado na cadeira à minha direita. Desde quando estava ele ali?!

— Olá, bombom — ronronou ele, dirigindo-me um sorriso provocante.

— E-Eduarda, apresento-te o Nevra, o Mestre da Guarda Sombra — disse Keroshane, fazendo um gesto na direção do recém-chegado.

— Ele também é chefe duma Guarda? — perguntei ao bibliotecário, descrente.

— Não se nota logo? — perguntou o vampiro, passando uma mão pelo espesso cabelo negro enquanto assumia uma pose galante — Na minha beleza etérea, no meu poder indomável…?

— Na atitude arrogante? — sugeri também.

Valkyon começou subitamente a tossir, mas eu podia jurar que o que lhe saiu da boca primeiro foi um risinho. Nevra abriu um novo sorriso provocante, revelando as presas brancas e afiadas.

— Não me desafies, bombom. Não te esqueças de que posso vir a ser o teu Mestre.

Eu soltei um soluço de desdém, nem um pouco intimidada.

— A-algum de vós sabe se o Ezarel virá? — intrometeu-se Keroshane, olhando de Valkyon para Nevra.

— Ezarel? — repeti — Espera aí, esse não é…?

— O elfo a quem cuspiste na cara? — alvitrou uma voz atrás de mim.

Eu voltei-me lentamente para encarar o elfo de cabelos azuis.

— Hã… Eduarda — começou Keroshane, num tom lento e cauteloso — Apresento-te o Ezarel, o Diretor da Guarda Absinto.

O elfo fez-me uma vénia trocista e depois encaminhou-se para a cadeira à minha esquerda, onde se sentou com um largo sorriso.

— Não fiques de pé, cuspideira, senta-te — convidou-me ele, apontando para a cadeira diante de mim.

— Cuspideira? — repeti num tom perigoso.

— Não é esse o teu nome? — perguntou o elfo, forjando uma expressão surpreendida.

Eu abri a boca para lhe responder, mas Keroshane cortou-me rapidamente a palavra:

— Va-va-vamos acalmar os ânimos, pode ser? Eduarda, p-podes sentar-te, por favor?

Sem interromper o olhar mortífero que dirigia ao elfo, eu cedi.

— P-pronto… — murmurou o bibliotecário, aliviado — Agora que estamos mais calmos podemos ir ao que interessa. Reuni-vos aqui para que a Eduarda pudesse conhecer os chefes das Guardas de Eel e…

— Desculpa interromper — intervim de repente —, mas as Guardas não são quatro? Onde está o chefe da Guarda Reluzente?

— A-a Guarda Reluzente funciona de forma ligeiramente diferente das restantes. A entrada é feita exclusivamente através dum convite do chefe da Guarda que, neste caso, é a Miiko.

— Ah, okay… Desculpa, podes continuar.

— B-bom, como estava a dizer, reuni-vos para que a Eduarda vos pudesse conhecer e esclarecer qualquer dúvida que possa ter em relação às vossas Guardas. Não posso ficar para mediar a conversa, mas tenho a certeza de que, como homens respeitáveis que sois, sereis capazes de se comportar com seriedade e simpatia — concluiu o bibliotecário num tom incisivo.

— Eu vou protege-la de tudo o que lhe tentar fazer mal, Kero, prometo — ronronou o vampiro.

— A-ainda bem. Nesse caso, deixo-vos sós. Tenham uma boa noite — despediu-se antes de dar meia volta e desaparecer no meio da multidão.

Eu e os três homens ficámos em silêncio, a olhar uns para os outros, até que Ezarel decidiu falar:

— Espero que não estejas a pensar entrar na Absinto, cuspideira. A última coisa de que preciso é duma humana que nem a própria saliva consegue segurar.

— Ainda bem, porque eu também não quero entrar — garanti-lhe — Diz-me só o que tenho de fazer para que essa desgraça não aconteça e podes ir embora.

— Vem para a Sombra! — sugeriu Nevra, chegando-se à frente para segurar uma madeixa do meu cabelo — Eu sempre quis ter uma humana…

— Não, obrigada! — exclamei, afastando a sua mão — Valkyon?

— A Obsidiana não seria uma boa opção para ti. És demasiado franzina para aguentar o esforço físico exigido.

— É, fazer parte do exército não me interessa particularmente — admiti de boca torcida.

— A Sombra é a única hipótese, então? — perguntou Nevra, esperançado.

— A Sombra é tão exigente quanto a Obsidiana em termos de esforço físico — disse Valkyon, sacudindo a cabeça — Penso que a opção mais segura seria a Absinto.

— Desculpa? — admirou-se Ezarel.

— Ela só teria de aprender a misturar líquidos e ervas…

— Líquidos e ervas que, se forem mal manuseados, podem explodir com o quartel-general!

— Isso é altamente improvável…

— Sabes quantas explosões ocorrem por dia na ala de Alquimia?! Ela cospe, ainda por cima!

Valkyon e Ezarel continuaram a discutir, mas a aproximação pouco discreta de Nevra desviou a minha atenção deles.

— Devias vir para a Sombra — disse ele, sorrindo — Eu gostaria imenso de te ter lá.

— Ah, sim? Porquê? Achas que terei alguma utilidade na tua Guarda?

Nevra abriu mais um dos seus sorrisos sedutores e vi a ponta da sua língua percorrer um dos caninos afiados.

— Depende. Não serás uma grande ajuda nas missões, mas tens o que é necessário para deixar o Mestre mais eficiente no trabalho e muito feliz.

— Não me digas… — murmurei, semicerrando desconfiadamente os olhos — E o que faria o Mestre feliz?

O sorriso dele alargou-se e voltou a deslizar a língua pelo dente afiado.

— Que tal uma dentadinha nesse pescoço tentador que tu tens? — sugeriu, num tom íntimo e quente.

Eu forcei uma gargalhada antes de lhe lançar um olhar reprovador.

— Nem penses.

— Oh, por favor — implorou o vampiro, fazendo beicinho — Serei meigo, prometo. Não vai doer nada e eu curo-te no fim. Por favor…

— Não.

— Vá lá, não me faças passar fome…

— Não te preocupes, não vais passas fome. O Keroshane explicou-me que a Maana sacia a vossa necessidade de sangue e carne humana.

— Oh, sim, mas tu cheiras mesmo bem — insistiu ele, acentuando o beicinho — Nunca cheirei nada assim, o teu sangue…

— Vai dar-te uma dor de barriga monumental — garanti, reparando nesse instante que Ezarel e Valkyon estavam calados e a observar-nos — Oh, já acabaram?

— Sim, mas não quisemos interromper o ritual de acasalamento do Nevra — disse o elfo com um sorriso matreiro.

— Muito atencioso da tua parte, mas podes ir embora agora. Não preciso mais de ti aqui.

— Ah, não, não, não, eu não me vou embora enquanto não te contar as novidades. Foi só para isso que vim.

— Diz lá, então, que novidades são essas? — perguntei com um suspiro arreliado.

Ezarel abriu um sorriso satisfeito.

— É sobre a poção para detetar Maana, aquela que te queimou. Passei o resto da tarde a verificar a validade da poção e acontece que ela estava perfeitamente confecionada! A reação estranha foi, portanto, provocada por ti!


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Notas finais do capítulo

[Próximo: 14/11/17]



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