Titanomaquia escrita por Eycharistisi


Capítulo 14
XIII. Isto não devia estar assim...


Notas iniciais do capítulo

[Capítulo agendado]



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As palavras de Ezarel fizera-me sentir um aperto gelado no peito, mas não me afetaram tanto quanto ele provavelmente estaria à espera. Já encarara demasiadas provas da minha ascendência não-humana (a conversa com Eweleïn, os avisos de Leiftan…) para agora ficar abalada com aquela “novidade”. Custava-me, ainda assim, ver aquela minha última esperança desaparecer.

Engoli em seco para desobstruir a garganta, mas a voz ainda me saiu enrouquecida quando murmurei:

— Bom saber…

Ezarel fixou-me por alguns instantes, talvez desapontado com a minha ausência de reação, mas acabou por encolher os ombros e levantar-se.

— Não tens de quê. Não ficaria descansado enquanto não limpasse o meu nome como alquimista. Agora, se me dão licença, vou dedicar-me a tarefas mais interessantes. Boa noite.

Ezarel afastou-se, acenando uma despedida por cima do ombro, e eu baixei o olhar para o prato onde ainda não tocara.

Porquê eu…?

— Eduarda?

Ergui a cabeça e vi Nevra lançar-me um olhar ligeiramente preocupado. Começou a estender uma mão na minha direção, mas, antes de me conseguir alcançar, foi rodeado por um grupo de quatro raparigas aos risinhos.

— Boa noite, Mestre Nevra…

— Não esperávamos encontrá-lo aqui…

— Gostaria de juntar-se a nós?

— Venha divertir-se connosco…

Eu levantei uma sobrancelha, sem querer acreditar no que via. Se Ezarel achava que a minha conversa com Nevra fora um ritual de acasalamento, gostava de saber o que chamaria ele àquilo. As raparigas não paravam de tocar e acariciar o vampiro, contorcendo-se, insinuando-se como gatas no cio, completamente alheias à minha presença e à do Comandante!

— Oh, eu adoraria juntar-me a vocês, a sério que sim, mas estou meio ocupado agora — disse Nevra com um beicinho entristecido.

As raparigas protestaram, agarrando e puxando os braços de Nevra para o incentivar a segui-las.

— Não pode ficar para depois?

— Por favor…

— Nós faremos com que valha a pena…

— Venha, Mestre…

O beicinho de Nevra começou lentamente a dar lugar a um sorriso interessado e nem sequer olhou para mim quando perguntou:

— Eduarda, ficas bem sozinha?

— Sozinha? — repetiu Valkyon, franzindo ligeiramente o sobrolho — Eu sou invisível agora?

— Oh, tu vais ficar por aqui? Ótimo! — festejou Nevra, levantando-se com um pulo entusiasmado — Sendo assim, deixo a Eduarda em boas mãos. Boa noite, meninos!

Sem esperar qualquer tipo de resposta da nossa parte, Nevra abraçou duas raparigas contra si e afastou-se com passos rápidos e ligeiros.

Sozinha com Valkyon, voltei a baixar o olhar para o prato cheio de comida, sem saber o que fazer ou dizer. Provavelmente devia pegar nos talheres e começar a comer, mas…

— Devias comer — murmurou Valkyon, como se me tivesse lido os pensamentos — Precisas de energia para… lidar com tudo isto.

Fiz uma pequena careta, mas peguei no garfo e comecei a debicar as batatas.

— E tu? Não comes? — perguntei, vendo o tampo vazio diante do Comandante.

— Já comi.

— Porque estás ainda aqui, então?

Ele hesitou e eu ergui uma sobrancelha desconfiada quando uma hipótese me ocorreu.

— Estás a certificar-te de que não tento fugir? — arrisquei.

— Não, não — negou rapidamente — Eu só… queria falar contigo.

— Sobre quê?

Valkyon voltou a hesitar.

— Sobre o teu sangue faery.

— Ah, sim?

— Sim… A situação em que te encontras não me é desconhecida e pensei que… poderia ajudar-te a ultrapassá-la. Se mo permitires, é claro — acrescentou rapidamente.

— Não te é desconhecida? — repeti, interessada — Como assim?

— Eu também sou um híbrido de humano e faery.

— A-a sério? — perguntei, admirada.

Valkyon anuiu com um gesto de cabeça antes de esfregar nervosamente o lábio superior com o polegar.

— Ouve… Eu só queria dizer-te para não te preocupares com o resultado do teste — disse lenta e ponderadamente, como se pesasse cada palavra antes de a pronunciar — O resultado não muda a pessoa que és. Dá-te um maior entendimento do teu corpo e das tuas origens, é certo, mas as tuas vivências, valores e aquilo em que acreditas… tudo o que faz de ti a pessoa que és hoje permanece o mesmo. Não precisas, por isso… de te… preocupar…

Valkyon baixou o rosto à medida que a sua voz perdia o ímpeto, parecendo um pouco embaraçado pelo próprio discurso. Eu dei-lhe alguns segundos para se recompor antes de responder:

— Entendo o que queres dizer… mas não é algo com que concorde. Se os meus pais não forem como eu… se eles não forem os meus pais, então tudo aquilo em que acredito… é mentira. Eu cresci a acreditar em mentiras.

— A mentira é, por vezes, mais real do que a verdade.

— C-como assim?

Valkyon cruzou os braços diante do peito.

— Os teus pais criaram-te porque te amam como a uma filha, mesmo que não partilhes o seu sangue. Não serão, nesse caso, os sentimentos deles mais reais do que o facto de não seres sua filha biológica?

Eu fiquei a abrir e fechar a boca como um peixe fora de água enquanto o meu cérebro se contorcia para assimilar o significado do que ele dizia.

— Queres dizer que… os sentimentos deles, por serem verdadeiros, conferem verdade à mentira? — procurei confirmar.

Valkyon limitou-se a fazer um aceno afirmativo com a cabeça e eu franzi ligeiramente o sobrolho.

— Nunca… tinha pensado nisso — admiti.

— Não tens de o fazer. Pergunta apenas a ti mesma: amas as pessoas que te criaram como se dos teus pais se tratassem?

— S-sim… quer dizer, claro, mas…

— Nesse caso, eles são os teus pais. Essa é a tua verdade e é a única que precisas de saber. O resto… não é real o suficiente.

Franzi ainda mais o sobrolho, confusa, embora tivesse compreendido a maior parte do que Valkyon me tentara dizer. Talvez… talvez ele tivesse razão…

Acabei por afastar aqueles pensamentos com um pequeno sacudir de cabeça. A conversa com Valkyon decorrera como se estivesse confirmado que as pessoas que me criaram não eram os meus pais biológicos, mas a verdade é que nada estava provado. Os meus pais podiam ser também híbridos sem saber. Um deles podia ser um faery escondido. Gostaria muito, aliás, que fosse esse o caso. Se um deles fosse faery, não deveria demorar a perceber onde me encontrava e a ajudar-me a sair dali.

— Come — insistiu subitamente o Comandante, arrancando-me das minhas conjeturas — Estás só a picar as batatas, precisas de comer convenientemente.

Soltando um suspiro para libertar a tensão dos ombros, peguei na faca e dediquei-me a cortar o frango. O meu apetite regressou assim que separei o primeiro pedaço de carne e, durante alguns minutos, não me concentrei noutra coisa que não no prato diante de mim. Ia já a meio quando me dei conta de que Valkyon permanecia sentado na minha frente, observando-me em silêncio.

— Então… hã… Achas mesmo que eu me daria melhor na Guarda Absinto? — perguntei, tentando iniciar um diálogo que afugentasse aquele silêncio incómodo.

Valkyon encolheu os ombros.

— Seria a Guarda à qual te adaptarias mais rapidamente.

Eu fiz uma pequena careta desprazida.

— Tenho as minhas dúvidas.

— Porquê?

— O Ezarel é o líder — lembrei-o com uma nova careta.

— O Ezarel é um bom rapaz. Só precisas de ter um pouco de paciência.

— Paciência nunca foi o meu forte e o Ezarel tem o condão de evaporar a pouca que tenho assim que abre a boca.

Valkyon abriu um pequeno sorriso.

— Preferes aturar o assédio do Nevra?

— Não! — neguei, arregalando os olhos ao imaginar o horror que seria entrar para a Sombra.

O sorriso de Valkyon alargou-se e apontou para o próprio rosto.

— Preferes os treinos exaustivos e impiedosos deste brutamontes?

— Longe disso.

— Então…?

— Nenhuma das Guardas me interessa realmente, mas sei que tu serás uma companhia muito mais fácil de suportar do que o Ezarel e o Nevra.

— Sinto que acabei de ser elogiado…

— Quase — confirmei, abrindo um sorriso — Mas fala-me da tua Guarda. Como é que funciona exatamente?

Valkyon recostou-se na cadeira, ajeitou os braços cruzados, e começou a relatar em detalhe qual seria o destino dos membros mais recentes da Guarda Obsidiana. “Levantar ao raiar do dia” e “treinar até sangrar” eram sujeições com que eu já contava, mas as “tarefas comunitárias” que ele enumerou fizeram o meu estômago revolver-se de horror. Era, aparentemente, costume das Guardas colocar os novos recrutas a cumprir as tarefas que todos consideravam ingratas, como servir no refeitório, limpar o quartel… e lavar as casas de banho. Bestial…

A nossa conversa foi interrompida por Eweleïn, que me convidou a acompanhá-la até à enfermaria para refazer o curativo antes da hora de deitar. O conselho de Leiftan para esconder o ferimento ecoou na minha mente nesse momento, mas recusar o tratamento de Eweleïn não chegou a afigurar-se-me como uma hipótese. Eu preferia, de longe, cuidar da minha saúde a acatar o aviso inexplicável dum estranho. Despedi-me, portanto, de Valkyon e segui Eweleïn até à enfermaria. Sentei-me na cama que ocupara nessa manhã (era difícil acreditar que tudo acontecera apenas doze horas atrás…) e esperei pacientemente que a enfermeira recolhesse o material necessário para o curativo.

— Como te sentes? — perguntou ela no entretanto — Sentiste algum tipo de dor ou desconforto?

— Estou bem, mas a mão começou a doer-me há algumas horas. Imagino que o efeito dos medicamentos tenha passado…

Eweleïn anuiu com um gesto de cabeça e sentou-se do outro lado da mesa com rodinhas, puxando a minha mão para cima da toalha branca. Desenrolou rapidamente as ligaduras e, recorrendo de novo à estranha lupa, examinou atentamente o ferimento na palma. Eu não notei qualquer tipo de alteração na queimadura, mas Eweleïn não parecia satisfeita, avaliando pela forma como franziu o sobrolho. Pegou na pinça metálica e usou-a para puxar uma ponta de pele calcinada… que se soltou e ficou presa entre os dedos da pinça.

— Estranho… — murmurou Eweleïn, examinando o pedacinho de pele azulada — Isto não devia estar assim…

— Como assim? — perguntei, preocupada.

Eweleïn não respondeu. Esfregou a pinça contra a toalha sob a minha mão para limpar o pedaço de pele e repetiu o processo anterior, obtendo o mesmo resultado.

— Dói quando faço isto? — perguntou ao puxar a terceira ponta de pele.

— Não… Devia?

— Não, nem por isso. A pele que estou a tirar está completamente morta, por isso é natural que não sintas nada.

— Qual é o problema, então?

— A tua pele não devia estar assim — revelou, continuando a puxar as pontas secas — Eu espalhei um pouco de regenerador na queimadura para revivescer a tua pele, mas ela está a secar e a cair — abanou lentamente a cabeça, confusa — Não percebo…

— Talvez o regenerador não esteja a fazer efeito…

— Seguramente — concordou ela — Importas-te que tire uma nova amostra?

— Não, está à vontade…

Eweleïn recolheu alguns pedaços de pele morta num frasquinho antes de colocar a pinça de lado e pegar, finalmente, nos potes com unguentos.

— Vou colocar uma camada de regenerador na mesma — anunciou entretanto — Pode não ter surtido efeito antes porque a pele estava demasiado danificada para ser revivida, mas, agora que tirei toda a pele morta, talvez funcione melhor…

— O que acontecerá se… não funcionar?

Eweleïn soltou um pequeno suspiro.

— A pele terá de se curar sozinha e, nesse caso, já não posso garantir que ficarás livre de cicatrizes.

— Ah…

— Desculpa — murmurou Eweleïn, triste.

— Não faz mal — tranquilizei-a com um pequeno sorriso — Ficar com uma cicatriz é a minha menor preocupação neste momento. Acho que consigo viver com isso…

— Uma cicatriz na palma da mão não deverá causar-te grande transtorno — reforçou Eweleïn — Seria pior se fosse no rosto…

— Muito pior! — concordei, num tom sério que arrancou uma pequena gargalhada a Eweleïn.

— Pronto, terminei — anunciou, satisfeita — Já podes ir dormir descansada, livre de dores!

— Obrigada, bem preciso de descansar. Se bem que… — detive-me quando uma ideia me atravessou o espírito.

Eweleïn inclinou a cabeça ligeiramente para o lado, intrigada.

— Se bem que o quê?

— Acho… que dormiria melhor aqui do que no meu quarto. Será que posso ficar aqui?

— P-podes, mas… porquê? — perguntou a enfermeira, curiosa.

— Não acho que o meu quarto tenha condições para acolher uma pessoa em recobro.

Eweleïn semicerrou desconfiadamente os olhos, mas as curvas nos cantos da boca denunciavam o sorriso contido.

— O teu quarto está vazio, não está? — adivinhou.

— Só tem um colchão e um lençol fino — lamentei-me.

— Isso não é suficiente?

— Não, eu sou uma pessoa ferida e necessitada de cuidados!

Eweleïn atirou a cabeça para trás, soltando uma gargalhada.

— Tudo bem — cedeu — Vou autorizar-te a dormir aqui esta noite, mas será apenas esta noite!

— Mesmo que amanhã não esteja melhor?

— Tu estarás melhor — afiançou a enfermeira, sorrindo — Queres que te arranje uma muda de roupa para dormir?

— Agradecia…

Eweleïn retirou dum armário uma túnica e umas calças de algodão brancas e entregou-mas juntamente com o que parecia ser um pedaço de papel quadrado com cheiro a limão.

— O que é isto? — perguntei, pegando no pequeno quadrado.

— Pasta de dentes.

— Hã? — fiz, aparvalhada.

— É uma pasta para lavar os dentes. Só tens de a poisar na língua e esperar que se desfaça.

Eu ergui uma sobrancelha desconfiada, mas obedeci e levei o quadrado de pasta à boca. Senti-o desfazer-se quase de imediato, dissolvendo-se na minha saliva e enchendo-me a boca com o seu aroma a limão.

— A pasta vai atuar durante toda a noite, por isso é possível que ainda sintas um travo a limão na boca quando acordares — acrescentou Eweleïn.

Eu limitei-me a fazer um aceno em sinal de que compreendera. Eweleïn deu-me mais algumas informações essenciais (como chegar à casa de banho mais próxima e como acender os orbes de luz suspensos sobre as camas) e despediu-se depois de se certificar de que eu ficaria confortável.

O silêncio súbito que preencheu a divisão quando fiquei sozinha era-me desfavorável, deixando-me com nada para além do zumbido dos meus próprios pensamentos. Tentando evitá-los ao máximo, apressei-me a trocar de roupa e a deitar na cama. A imobilidade, porém, só pareceu contribuir para o intensificar do zumbido. Um sentimento de puro pavor começou a borbulhar dentro de mim, mas, desta vez, não o tentei conter. Enterrei o rosto na almofada e deixei-me chorar e soluçar tanto quanto foi preciso. Estava esgotada quando terminei, pelo que não tive qualquer dificuldade em adormecer.

Julgo ter ouvido o som da porta da enfermaria abrir-se a determinada altura, mas estava tão mergulhada na exaustão que nem me incomodei em verificar se o som era real ou fruto da minha imaginação. Provavelmente era só um sonho…


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Notas finais do capítulo

[Próximo: 21/11/17]



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