Titanomaquia escrita por Eycharistisi


Capítulo 12
XI. Posso... dar-te um conselho?


Notas iniciais do capítulo

[Capítulo agendado]



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Estava fisicamente apta a abandonar a enfermaria quando o meu novo curativo ficou feito, mas percebi que não o estava psicologicamente quando Keroshane abriu a porta para o átrio e vi os humanoides que por lá deambulavam. Metade deles não tinha nada de estranho para além de algumas características animais, mas havia outros que eram verdadeiramente assustadores e dos quais eu não queria mesmo aproximar-me.

Keroshane saiu para o átrio sem hesitar e estava quase a misturar-se com a multidão quando notou que eu já não o seguia. Deu rapidamente meia volta e lançou-me um olhar muito curioso quando me viu parcialmente escondida atrás da porta.

— Eduarda? Passa-se alguma coisa?

Eu engoli levemente em seco e fiz-lhe sinal para vir até mim. Curioso e confuso, ele cedeu.

— Estava aqui a pensar… — murmurei, vigiando o cenário do outro lado da porta aberta — Há vários tipos diferentes de criaturas em Eldarya, não é?

— Sim, há…

— Algumas delas não serão, por acaso… perigosas para os humanos?

— Perigosas?

— Sim, quer dizer… o tipo que me encontrou quando fugi da cela parece ser uma espécie de vampiro e, tanto quanto sei, os vampiros bebem sangue humano, logo…

Silenciei-me quando percebi que Keroshane estava a debater-se para esconder um sorriso.

— Bom… — começou ele, empurrando os óculos contra a cana do nariz — É certo que existem algumas raças de faeries que te poderão achar… bom… apetitosa, mas garanto-te que nenhuma te fará mal.

— Como sabes?

— A Maana suprime grande parte da sua ânsia por sangue ou carne humana, pelo que nenhum deles sentirá realmente a necessidade de se alimentar de ti. É possível, porém, que recebas alguns… convites nesse sentido.

— Ah — fiz, numa voz ligeiramente esganiçada — Bom saber…

Keroshane soltou um risinho divertido.

— Não te preocupes. Ninguém te fará mal, prometo.

Eu não estava muito convencida, mas acenei leve e nervosamente com a cabeça.

Keroshane voltou a sair para o átrio e eu segui-o sem parar de lançar olhares cautelosos em redor. Quando estávamos prestes a misturar-nos com a multidão, peguei-lhe instintivamente na mão para evitar perder-me dele no meio daquela confusão. O meu gesto, contudo, pareceu sobressaltá-lo, avaliando pela forma como corou e pelo olhar admirado que me dirigiu.

— Desculpa — murmurei, sem o soltar — Não me quero perder…

Keroshane abriu a boca como se fosse dizer algo, mas a única coisa que fez foi gaguejar alguns sons incompreensíveis. Acabou por desistir e limitou-se a um pequeno aceno de cabeça antes de me puxar para a multidão.

Tinha todos os meus sentidos em alerta máximo enquanto atravessávamos aquele mar de aberrações. A maior parte das criaturas não nos deu qualquer atenção, mas vi algumas (justamente as mais assustadoras) abrandar a marcha para lançar olhares intrigados na minha direção. Eu aproximei-me mais de Keroshane e apressei o passo, ansiosa por sair dali.

Não tardámos a abandonar o átrio e a seguir por outro corredor que, apesar de mais sossegado, ainda era bastante movimentado. A quantidade de gente que passava por nós começou a intrigar-me a determinada altura, pelo que cheguei-me a Keroshane para lhe perguntar baixinho:

— Todas estas pessoas fazem parte das Guardas?

— Quase todas.

— A sério? As Guardas são assim tão grandes?

— Oh, sim, enormes. Somos cerca de cinco mil faeries no total e três mil deles vivem aqui, no quartel-general.

— Isso é muita gente — comentei, admirada — Têm espaço para todos?

Keroshane riu-se.

— Temos, sim. Construímos no ano passado um novo pavilhão de dormitórios, então temos até vários quartos livres. Ah, aliás, temos de arranjar um quarto para ti! Trataremos disso quando tiveres os livros, pode ser?

— Claro…

Keroshane abriu um pequeno sorriso e continuou a puxar-me pelos corredores.

A biblioteca não era nada de que eu não estivesse à espera. Era uma divisão ampla e bem iluminada, forrada a prateleiras e com um grande conjunto de secretárias ao centro. Eram poucas as pessoas que circulavam por ali, de modo que o silêncio era quase absoluto.

— Os livros de que precisas estão aqui — apontou Keroshane, guiando-me para uma prateleira não muito longínqua da porta — Podes levá-los para fora da biblioteca, mas para isso precisas de preencher um pequeno formulário. Não é nada de complicado, serve apenas para sabermos quem tem cada livro e…

— Eu conheço esse sistema. As bibliotecas da Terra funcionam da mesma forma — informei para o poupar à explicação.

— Oh… A-a sério? — perguntou ele, parecendo desanimado — Não sabia… Eu e a Ykhar pensámos que era uma ideia bastante original…

— Ná, nem por isso. As bibliotecas da Terra usam esse sistema há já um bom tempo — estaquei quando uma nova pergunta me atravessou o espírito — Espera aí, o que é que surgiu primeiro? A Terra ou Eldarya?

Keroshane soltou um longo suspiro entristecido.

— Todas as respostas que procuras estão aqui — murmurou, começando a retirar livros da prateleira — Terás de lê-los aqui por enquanto, uma vez que o formulário para os levar para fora da biblioteca exige uma indicação de residência, coisa que tu ainda não tens. Eu vou falar com a Miiko sobre isso agora… e tu ficas aqui, entendido?

Anuí com um gesto de cabeça e peguei nos livros que ele me estendia.

— Entendido.

Keroshane imitou o meu gesto, com ar infeliz, e foi-se embora.

Fiquei vários instantes ali parada, a mirar a porta por onde ele desaparecera, consciente de que estava sozinha e sem vigilância pela primeira vez desde que ali chegara. Eu podia fugir. Os humanoides ali presentes estavam demasiado longe e demasiado concentrados nas suas leituras para me impedir. Bastar-me-ia largar os livros e correr para a porta. Fazer o caminho de volta ao átrio não seria difícil. Mas e depois? Para onde iria? Quem me ajudaria a abrir o portal? Quem me ajudaria a sobreviver naquele mundo? Fugir apenas frustraria os meus planos; não era uma opção. E eles sabiam-no, foi por isso me soltaram. Eles sabiam que havia agora algo muito mais poderoso do que uma cela a manter-me ali: necessidade.

Soltando um pequeno suspiro derrotado, virei costas à porta e dirigi-me para uma secretária livre. Dispus os livros numa linha diante de mim e fui analisando os títulos, perguntando-me qual deveria ler primeiro. Havia uma “História de Eldarya”, um “Breviário de Faeries”, um “Grande Exílio”, uma “Titanomaquia”… Acabei por estender a mão para um “Elucidário de Maana”, curiosa. O tema da Maana não me interessava particularmente, acreditava já saber o essencial sobre esse assunto. A gravura dum cristal na capa de couro, contudo, chamou-me a atenção. Puxei o livro para mim e abri-o, pronta para começar a ler.

O livro não era muito grande e a informação que fornecia estava bastante resumida, mas foi o suficiente para me fazer entender muita coisa. A Maana, aparentemente, era mais do que mera magia. Era… vida. Era o que mantinha a terra fértil, a água límpida e o ar respirável, criando as condições essenciais à sobrevivência de toda e qualquer espécie. Apesar de poderosa, era uma energia muito frágil que precisava de ser constantemente renovada e era para isso que serviam os cristais. Os faeries alimentavam-nos com amor e respeito (veneravam-nos, por assim dizer) e estes convertiam os seus sentimentos em Maana.

Admito que fiquei bastante impressionada com o que descobri. A existência daquele mundo era tão complexa quanto precária, arriscando-se a desaparecer com o mais leve dos distúrbios. Não era de admirar que a minha aparição súbita junto do cristal tivesse exaltado os ânimos de toda a gente! Eu poderia tê-los condenado a todos à extinção naquele momento.

— Olá, Eduarda.

Saltei de susto na cadeira ao som da nova voz e ergui rapidamente o olhar na sua direção, deparando-me com o homem de cabelo loiro e negro.

— Oh… Olá… hum… Como é que te chamas mesmo?

— Leiftan — disse ele, abrindo um pequeno sorriso — Estás com melhor aspeto… Como está a tua mão?

— Bem — respondi, mirando a mão envolvida por ligaduras — Não sinto dores, consigo mexê-la… A propósito, obrigada por apagares a chama. Sabe-se lá o que restaria da minha mão se não o tivesses feito.

Leiftan abriu um novo sorriso antes de dar um pequeno passo na minha direção, apoiando as ancas contra a secretária antes de dizer:

— Posso… dar-te um conselho?

— C-claro — respondi, surpreendida pela repentina mudança de assunto.

Leiftan lançou um rápido olhar em nosso redor, certificando-se de que ninguém nos prestava atenção, antes de sussurrar:

— Esconde bem o ferimento na tua mão. Não deixes que mais ninguém o veja.

Franzi ligeiramente o sobrolho, confusa e um pouco desconfiada.

— Porquê?

— Não é seguro.

— Porquê?

Leiftan não respondeu. Limitou-se a olhar para a porta da biblioteca, por onde Keroshane tinha acabado de entrar.

— Leiftan! — exclamou o bibliotecário, em jeito de cumprimento — O que te traz aqui hoje?

— Vim entregar o meu relatório, mas, como não estavas, decidi vir importunar a Eduarda com as minhas curiosidades sobre a Terra — disse em tom de gracejo — Espero não te ter aborrecido… — acrescentou na minha direção.

— N-não, claro que não — neguei, forjando um pequeno sorriso.

— Queres que trate do teu relatório agora? — intrometeu-se Keroshane.

— Sim, por favor — disse Leiftan, desencostando-se da secretária e ajeitando o manto branco que lhe cobria os ombros — Boa sorte para regressares a casa, Eduarda!

— Obrigada — murmurei, vendo-o afastar-se com Keroshane.

Que raio de conversa fora aquela? Porque dizia ele que não era seguro mostrar o meu ferimento? O que sabia ele sobre aquele assunto? Será que ele… sabia o que eu era?

Senti o coração gelar-se-me no peito quando esse pensamento me ocorreu. Fazia sentido, na verdade. O seu olhar assombrado da primeira vez que me via, o seu ar apreensivo durante o exame para procurar Maana no meu corpo… Leiftan fora, aliás, o único que não parecera surpreendido com o resultado! Mas se ele sabia, porque não me dissera? Podia presumir, pelo seu “conselho”, que ele não queria que outras pessoas descobrissem… e talvez estivesse a incluir-me também a mim nesse grupo!

Não voltei a olhar para os livros. Estava demasiado agitada para conseguir concentrar-me na leitura. Preferi, em vez disso, dedicar-me a vigiar o sítio onde Keroshane e Leiftan tinham desaparecido, ansiosa pelo seu retorno. Não ia aceitar ficar na ignorância! Leiftan contar-me-ia tudo, nem que tivesse de lhe dar o mesmo elixir da verdade que me tinham dado a mim!

Quando os dois homens finalmente regressaram, levantei-me tão depressa que por pouco não atirei a cadeira ao chão. Leiftan apercebeu-se logo da minha aproximação e não tardou a despedir-se de Keroshane, quase correndo para fora da biblioteca.

— Onde é que ele vai com tanta pressa? — perguntei a Keroshane, fixando a porta que Leiftan acabara de transpor.

— Fazer o seu trabalho, presumo… — humedeceu os lábios, hesitante — Eduarda?

— Sim?

— O Leiftan não… foi inconveniente contigo, pois não?

— Hã? — fiz, admirada — Não, porque…? — silenciei-me quando uma ideia me atravessou o espírito — Ele não é uma das raças potencialmente perigosas para os humanos, ou é?

— Não, não, mas…

— Mas…?

Keroshane soltou um pequeno suspiro.

— Não confio nele — admitiu — Há algo nele que… me deixa muito inquieto. Não sei porquê. O Leiftan nunca foi… desagradável comigo ou com alguém que eu conheça, até o considero uma pessoa bastante pacífica e gentil, mas… — abanou lentamente a cabeça, angustiado — Há algo nele que me arrepia o corpo todo.

— A sério? — perguntei, interessada.

Keroshane acenou levemente antes de me dirigir um pequeno sorriso nervoso.

— Não estou a dizer isto para te colocar contra ele ou algo do género, queria simplesmente… avisar-te. Não creio que ele seja… uma boa companhia para ti.

— Estás a tentar monopolizar-me, Keroshane? — perguntei em tom de brincadeira.

— N-não, claro que não! — negou ele, atrapalhado e muito corado.

Eu abri um pequeno sorriso divertido e Keroshane acabou por me acompanhar. Mal sabia ele que eu estava mais inclinada a confiar em Leiftan do que nele…

— Vamos mudar de assunto — decidiu Keroshane, recompondo-se — Falei com a Miiko e com a dirigente dos dormitórios e consegui um quarto só para ti. Falei também com os chefes das Guardas e acho que os convenci a encontrar-se contigo durante a hora de jantar. Achei que gostarias de os conhecer antes de voltarmos a tentar o teste das Guardas.

— Oh — fiz, surpreendida — Isso foi… muito atencioso da tua parte, obrigada.

— N-não foi nada — negou Keroshane, corando e coçando nervosamente a nuca — Não te posso sequer garantir que eles irão mesmo aparecer, mas… bom, pelo menos tentei.

— O que conta é a intenção.

— P-pois, talvez — murmurou, pigarreando de seguida — Bom… vamos tratar da papelada dos livros e mostrar-te o teu novo quarto, pode ser?

— ‘Bora.


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Notas finais do capítulo

[Próximo: 7/11/17]



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