Moon's Consort escrita por Labi


Capítulo 1
Um


Notas iniciais do capítulo

Dedicado à Doubleside, a minha gaúcha favorita, que infelizmente mora a um oceano de distância.



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À porta podia ler-se num pequeno cartão escrito com uma caligrafia meticulosa: "Aberto de Segunda a Sexta das 08:00 às 19:50.  Sábados das 10:00 às 15:00. Se só puder vir de noite por favor combinar horário com o funcionário."

Na janela da montra vários vasos de suculentas e cactos estavam alinhados por tamanhos sendo que alguns balançavam levemente como se dançassem sozinhos. Talvez realmente o fizessem quando ninguém estava a olhar.

 O funcionário estava lá dentro a agrupar pequenos saquinhos de terra para poder colocar no expositor, cantarolando baixo consigo mesmo para combater aquele silêncio da loja mesmo que achasse que uma das melhores vantagens de trabalhar no Ervanário era justamente a falta de barulho.

A entrada da loja era ampla com móveis escuros antigos e à esquerda tinha uma porta dava para uma estufa grande nas traseiras que estava atulhada de todo o tipo de plantas, desde pequenas ervas aromáticas a plantas exóticas penduradas no tecto que se moviam como serpentes à procura de luz. Essa estufa era a jóia dos olhos de Basil. O rapaz cuidava de todas aquelas plantas como se de crianças se tratassem e fazia os encantamentos para as poções e pomadas com uma precisão inigualável. 

 Algumas dessas plantas podiam parecer inofensivas à primeira vista -algumas realmente o eram- mas havia outras que podiam ser bem perigosas se não fossem tratadas com cuidado e respeito. Basil era um amante da natureza e isso reflectia-se na qualidade das suas plantas, das suas infusões e no carinho dos seus clientes.

 Ele regava alguns dos vasos com uma paciência quase treinada quando ouviu o sininho em cima da porta abanar com força. Assim que levantou a cabeça viu uma miúda pequena correr na sua direcção, "Eles chegaram, eles chegaram!" 

 "Bom dia."

 A pequena bufou impaciente, "Bom dia! Eles chegaram!", voltou a dizer aos saltos e Basil precisou de sacudir as mãos no seu avental, com tanta calma que chegava a irritar a mais nova.

"Quem chegou, Blayke?"

 "Os duendes, os ciganos ora! Quem mais podia ter chegado?!"

 Ele ficou pensativo por um momento, passando mentalmente a lista de coisas que estava a precisar e deu de ombros, "Não preciso de cristais para já."

"Mas eu quero que venhas comigo."

"Eu estou a trabalhar."

 Blayke agarrou-lhe no braço, "Vamos! São só cinco minutos. Quero uma pulseira nova! A mamã deu-me duas moedas!"

 Basil podia ter tentando impedir, mas sabia que era uma batalha perdida e simplesmente deixou-se ser arrastado só para não se incomodar mais. Tanta energia numa pessoa deixava-o desnorteado, mas ele já se tinha habitado à presença daquela criança na sua vida. Pediu-lhe um segundo só para poder tirar o avental e vestir o casaco.

 

 Blayke tinha-se mudado para Mirfield com a mãe, Clio. Clio, que não aguentava estar quieta por muito tempo, tinha restaurado uma das casas velhas e desabitadas junto da lagoa e transformara-a num pequeno restaurante que servia como café e ponto de encontro de todos os habitantes da vila que antes se agrupavam nos casebres perto dos campos. A menina era única criança de Mirfield naquele momento e tinha toda a liberdade para andar por onde quisesse com três condições: 1) que não fosse para a floresta 2) estivesse com atenção durante as aulas que a própria Clio lhe dava e 3) Não incomodasse demais os mais velhos.

 Apesar de se dar bem com todos, privilegio de ser criança, a sua vítima preferida era Basil.

Havia algo na calma do ervanário que a deixava mais à vontade mesmo que a sua personalidade extrovertida muitas vezes chocasse com a do mais velho. Gostava de perguntar sobre as flores e as plantas e fazia mil questões todas seguidas esperando que ele lhe ensinasse sobre hervalismo e magia botánica. Como Basil nunca tinha reclamado nem a mandado ir embora, e sempre lhe tentava explicar da melhor maneira o que fazia, Blayke aproveitava-se do ditado, "quem cala, consente."

 O rapaz quando deu por si, já a menina já lhe tinha agarrado na mão e arrastava-o consigo, mal lhe dando tempo para pegar na carteira, pela rua até à praça principal onde várias barraquinhas de pano improvisadas junto às carroças faziam o deleite de uma pequena multidão barulhenta que se acotovelava.

 

Mirfield era a última localidade antes da floresta adensar, ou a primeira depois de sair dela depois de vários dias a atravessa-la e, por esse motivo, era frequente a passagem de viajantes ou mercadores para abastecerem mantimentos ou só descansar.

A vila sobrevivia graças a esse comércio ambulante e todos os seus habitantes estavam habituados a conviver com uma grande variedade de criaturas desde as mais simpáticas até às mais bizarras. Era raro existirem novidades daquelas que não fossem trazidas pelos andarilhos e Blayke fazia questão de ver tudo.

Na maior parte das vezes corria pelas ruas de pedra, cumprimentando os mais velhos e saltitando entre as pessoas para conseguir ver o que estava exposto. Não dispensava as pulseiras brilhantes e os colares com cristais falsos que alguns duendes vendiam. Blayke era particularmente fã das medusas e de algumas feiticeiras que montavam tendinhas e afirmavam poder ler o futuro através de magia. Ela não ligava se as previsões eram ou não verdadeiras. O que gostava mesmo era de ver os fluxos mágicos saírem dos cristais em forma de fumo e fazerem desenhos no ar. 

 Algumas dessas feiticeiras não iam embora sem passar no ervanário de Basil para comprar ervas para fazer incenso e a pequena adorava ver que roupas usavam e a forma ritmada com que falavam. Ficavam tão diferentes quando estavam fora das tendas que a mais nova ficava encantada só de olhar para as suas roupas coloridas.

 A jovem continuava a saltitar de um lado para o outro sem largar a mão do mais velho, apontando para os diferentes cristais e explicando-lhe (pela milésima vez) quais as suas propriedades e para que serviam. Basil sorria levemente e assentia com a cabeça, incentivando-a a continuar, mas a verdade é que prestava mais atenção ao que estava à sua volta enquanto procurava outros possíveis ervanários ou agricultores.

 Basil podia não ser o maior fã da confusão, mas aproveitava aquela ocasião para procurar novas plantas ou encontrar alguma que fosse mais difícil de arranjar uma vez que era ele mesmo que cultivava todas as plantas da loja e não resistia a uma novidade. Alguns dos vendedores mais velhos encaravam-no desconfiados, não acreditando que alguém tão jovem tivesse conhecimento sobre como usar aquelas plantas. Ele usava essa situação em seu favor para regatear preços quando os vendedores não o conheciam.

 Assim que notou um casal de idoso a vender frutas e flores deixou Blayke "livre" enquanto foi comprar um pequeno ramo de alfazemas da montanha e ainda mal tinha guardado a carteira quando a multidão ficou subitamente silenciosa e começou a formar um círculo.

 O burburinho inicial depressa foi substítuido por suspiros surpresos e comentários tanto de descrença como de espanto. Basil franziu o sobrolho e aproximou-se também com o intuito de encontrar a mais nova. Ao reconhecer os caracóis escuros dela  mais à frente relaxou um pouco e foi então que viu o velho Scott apoiado num banco público, ofegante.

Ele tentava falar, mas tinha de parar para recuperar a respiração, "Lobos!" 

A multidão susteve a respiração em simultâneo e ele continuou, "Lobisomens! Estão a chegar da floresta, são dezenas!"

 Uma mulher da vila pousou a mão sobre o peito e questionou de forma dramática, "Vão atacar-nos?!"

Scott rolou os olhos, "Eu sei lá, mulher! Aqueles lupinos são imprevisiveis e sabe-se lá o que já caçaram! Eu vinha do campo e vi fogueiras então quis investigar e... Vi alguns transformados em humanos e outros de quatro patas!"

O barulho retomou quando todos começaram a falar ao mesmo tempo para expressar a sua opinião e Basil deu um estalido com a língua, passando entre a multidão até chegar junto de Blayke e pegar nela ao colo, "Vamos embora."

A menina abraçou-o pelo pescoço, apertando, "É verdade que vamos morrer?"

"Não, claro que não."

 "Mas o senhor Scott viu os lobos-homem."

 "Lobisomem. Nem todos os lobos são maus."

  

Blayke pareceu aceitar a informação (confiava no ervanário) e ficou quieta enquanto Basil descia apressadamente a rua em silêncio. 

Várias pessoas vinham atrás de si com o mesmo intuito de seguirem para o café de Clio mas à sua frente só ia um gato preto que parou por uns momentos, piscando os seus grandes olhos amarelos antes de fugir para cima de um muro.

O pequeno restaurante-café ficava junto da lagoa, mas a vila era tão pequena que não demorava mais que alguns minutos.

 

Como era de esperar, a notícia já tinha chegado ali também, provavelmente mais cedo graças aos forasteiros, e havia um burburinho sobre o assunto.

Assim que viu a mãe atrás do balcão, Blayke saltou para o chão e correu até ela, abraçando-a pela cintura, "Mamã! Os lobos!"

A mais velha suspirou e fez-lhe um carinho leve nos caracóis, despenteando-os, "Está tudo bem."

"Mesmo?"

 "Mesmo." 

O sorriso leve de Clio era o suficiente para que a pequena acalmasse. Havia qualquer coisa nas feições da mãe que sempre tinham esse efeito em si. Talvez fosse o olhar doce, ou a pele escura que era bem macia ou então só o cheirinho dos seus cabelos longos tão encaracolados quanto os seus. No entanto, o tempo de mimo não durou muito uma vez que entraram mais homens no café a falar alto e a discutir sobre o assunto. Entre eles estava o senhor Scott a recontar pela milésima vez o que tinha visto. Na verdade, viera desde o centro até ali a contar alto para quem quisesse ouvir mas sempre reclamando que precisava de uma bebida e ainda nem recuperara o fôlego.

 Basil, prevendo a confusão, murmurou que se tinha de retirar e voltar para a loja não fossem os forasteiros precisarem de abastecer. Acenou acanhadamente a Clio que lhe devolveu o gesto com um breve aceno com a cabeça e Blayke levantou o braço numa despedida mais efusiva. Despediu-se  igualmente dos mais velhos de forma educada e saiu apressado. Não tinha tempo para rumores e deixara a sua rega a meio.

 

Scott sentou-se ao balcão, bem ao lado do seu vizinho de longa data, Adrian, e pediu por uma cerveja de mirtilo a Clio, que logo se desembaraçou de Blayke para o poder servir.

 "Com que então tu viste lobisomens?", Adrian perguntou, puxando os seus óculos para longe da ponta do nariz.

 "Sim! Uns estavam a montar tendas na orla da floresta e outros a correr de um lado para o outro nas quatro patas."

"Ora!", o outro deu um estalido com a língua, "Isso é motivo para alarme? Tem muitos viajantes a fazer isso."

Scott bufou, "Eles tinham madeira também. Ninguém constrói casas de madeira temporárias."

Outro homem, sentado numa mesa atrás, comentou, "Será que se vão mudar para aqui?"

As vozes do café começaram a levantar-se todas ao mesmo tempo numa discussão desordenada, "Eu não quero esses cães perto de minha casa!"

"Não são cães, são lobisomens! São quase humanos!"

"Eles são humanos! Só que tem outro tipo de magia."

"Aquilo não é magia! É uma maldição qualquer, já a minha avó dizia."

 "A tua avó viva noutro século, deixa-te disso."

"Ouvi dizer que não sabem usar magia."

"Eu acho que ter lobisomens era bom para Mirfield. Precisamos de gente jovem."

"Todos sabem que ele tem ninhadas como coelhos!"

"Isso é preconceito."

 "É a realidade!"

 "A realidade é que vais ficar sem ovelhas quando for lua cheia.”, Scott voltou a dizer aos companheiros e Adrian apenas abanava com a cabeça, não acreditando como aquelas pessoas faziam tantos julgamentos. 

 "Eles não são propriamente animais, já te disse. Eles têm formas de se controlarem."

 Clio finalmente pousou a cerveja de mirtilo em frente ao homem barbudo e este continuou a falar alto, levantando a mão numa típica pose de filósofo, "Eu sei o que digo! Vi na minha infância o gado ser varrido por lobos!"

"Isso foi noutros tempos!", reclamou o sr. Adrian, "Faz décadas que não vejo uma matilha de lobisomens aqui. E podem ter sido lobos selvagens."

Blayke subiu para a cadeira alta do balcão, aguardando que a mãe lhe desse um copo de leite e perguntou ao homem barbudo, a sua voz fina e delicada contrastando com os berros dos mais velhos, "Mas senhor Scott, os lobisomens agora podem vir as lojas comprar comida, não é? Não precisam de roubar ovelhas."

Os homens ficaram em silêncio por uns segundos, rindo depois da inocência de criança, e Adrian fez-lhe carinho na cabeça, "Eles podem, pequena Blayke. Mas às vezes eles não controlar os instintos sabes? É por isso que algumas pessoas têm medo porque não sabem como os afastar se eles estiverem descontrolados."

Scott concordou, "A minha avó costumava ter um certo tipo de papoilas plantadas junto da casa para que os lobisomens ficassem longe."

"Eles têm medo de papoilas?", pestanejou.

Com uma paciência que não lhe era muito comum, Scott explicou, "Não. Mas elas são usadas para fazer um chá que os acalma."

Clio voltou com o copo de leite para a mais nova e ela logo sorriu abertamente, "Ora, então não tem problema! O Basil pode fazer chá!"

 Os adultos riram e Clio fez carinho no obro da filha, "É. Os chás do Basil resolvem tudo." 

"Por falar nisso, onde é que essa cabeça de urtiga está?"

Blayke pestanejou, "Ele disse que ia embora, não ouviu?"

Scott bebeu a cerveja toda de uma vez e deu de ombros, "Não dei importância."

 

Nessa noite, Clio fechou o café bem mais tarde como já era habitual sempre que existiam forasteiros na vila. Os habitantes de Mirfield tinham-se juntado a eles para saberem mais sobre a suposta matilha e alguns duendes confirmaram que viram o acampamento improvisado bem antes de entrarem na rua principal que dava ao centro da aldeia. Porém, ninguém tinha visto nenhum lobisomem quer na sua foram humana quer na forma animal por ali junto às habitações.

 Mesmo após muito debate, as opiniões continuavam a dividir-se. Havia quem não se importava com os lobisomens, outros não os queriam por perto e uma pequena minoria era indiferente a eles.

 Pessoalmente, ela não era muita adepta de lobisomens, mas estava tudo bem, contando que eles não se envolvessem em problemas. Às vezes alguns clãs passavam pela vila durante as suas migrações, não era nada de especial.

 As duas moravam numa casinha pequena na outra ponta da rua e a mais velha levava Bayke ao colo. Ela não tinha medo de andar sozinha na rua mas depois de tanta conversa sobre lobos ela preferiu acelerar o passo, murmurando um encantamento para que aparecesse uma pequena bola de luz a iluminar o caminho.

 "Mamã, eu vou poder usar uma varinha?", a mais jovem questionou do nada, seguindo a luz com o olhar e pousando queixo sobre o ombro dela, que sorriu, "Se quiseres."

"O Basil disse que era coisa de velho."

Clio soltou uma gargalhada, "É, está fora de moda."

Blayke olhou para o pequeno cristal pendurado num fio que a mãe usava, "Quando vou poder ter um cristal?"

"Quando fores maior."

Ela bufou amuada, "Dizes sempre isso!"

 "Ainda não tens idade para um."

  A menina sabia que era uma luta perdida. Um dos seus maiores anseios era poder finalmente usar os cristais para fazer encantamentos. Invejava -de uma maneira de quem admirava-  ver a mãe usar magia para limpar a farinha do balcão ou quando o ervanário cantarolava baixo para as flores e elas floresciam mais rápido. Sabia, no entanto, que a magia era frágil e que os cristais erlo se esgotavam se fossem usados em excesso. Sempre ouvia a mãe reclamar que precisava de comprar mais para ter como recurso mas os duendes só passavam de vez em quando  pela vila e Hefus, o único duende da Mirfield, nem sempre conseguia compor os cristais partidos.

"Mamã?"

"Sim?"

"Os lobos são nossos amigos?"

"Ainda não sabemos. Vamos esperar.”

Assim que entraram em casa, Clio levou-a até ao quarto. A menina assentiu e deixou que a mãe a pousasse na cama depois lhe vestir o pijama.

"Até amanhã. Dorme com os elfos."

"Tu também."

 Clio sorriu e beijou-lhe a testa antes de sair e apagar a luz.


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