Do Outro Lado do Véu escrita por Miahwe


Capítulo 8
Miasma




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            Chihiro havia esquecido totalmente de ir encontrar-se com os amigos para comerem a torta de morango.

            Distraíra-se totalmente com Kohaku no Grande Parque, porém não tinha nenhum arrependimento.

            Chegava a ser incrível o sentimento de que proximidade que ia se abrindo aos poucos entre as pessoas, como uma cortina de veludo que aos poucos ia se abrindo e mostrando a verdadeira pessoa com quem se começava uma amizade. Não que Haku fosse exatamente uma pessoa, mas Chihiro de vez em quando esquecia que ele era um espirito.

            Conversaram ali mesmo, perto do salgueiro, sobre várias coisas além de nuvens e Chihiro se sentiu bem, pois de alguma forma sabia que ele era confiável, que podia confiar tudo a ele, era incrível como ele a fazia se sentir com o coração aberto para contar qualquer coisa, como se a barreira de um segredo não significasse nada. E Chihiro, quando notou isto, sentiu medo, como poderia se sentir tão entregue a ele? Como tinha tanta certeza de que podia abrir seu coração para ele? E ele, será que estaria fazendo o mesmo?

            No entanto, era mais confuso do que parecia, até mesmo para ela, pois quando ela o fazia sorrir, tudo ao seu redor parecia sorrir também e ela sorria e era bom. Como se não existisse tristeza, apenas sorrisos e o sorriso de Kohaku em sua mente, as bochechas altas, os olhos verdes divertidos e uma gargalhada linda, sincera, contagiante.

            E quando ele contou algo para ela e ela não riu, ele a fez cócegas e o sentimento de proximidade foi tão bom que Chihiro quis abraça-lo, apenas senti-lo mais perto de si, porque tudo indicava que ficar perto dele seria muito bom e quanto mais perto melhor.

            Quando o sol começou a se pôr, Chihiro levantou-se da grama onde, no momento estavam calados, apreciando o silêncio e a natureza que os cercavam.

            —Já vai? — ele perguntou sentando-se e passando a mão nos cabelos para limpa-los de quaisquer sujeiras.

            —Está ficando de noite — ela falou.

            —Eu te acompanho até em casa — Haku falou, não fora uma pergunta, apesar de ter soado como uma, havia um ponto final ali mesclado ao tom levemente imperativo da certeza.

            —Então vamos, é domingo, meus pais foram ao teatro hoje — ela comentou refletindo enquanto caminhavam, mas ele nada comentou, apenas caminhou junto a ela, as mãos dentro do bolso da calça. — Comprei um DVD semana passada, é um curta, ainda não assisti, você quer ver comigo?

            —O que é um curta?

            —Ah, é um vídeo pequeno, menos de uma hora.

            Ele puxou um mexa de cabelos da franja e a observou, em um gesto tímido, pensativo e constrangido. — E... um vídeo é?

            Chihiro balançou a cabeça descrente. — Você vai ver, é bem legal, não se preocupe.

            Ele assentiu e esfregou a palma da mão na franja, descendo-a pelo rosto e deixou-a cair de volta no bolso da calça. Chihiro nada comentou do gesto sem sentido, pelo menos para ela.

            —Chihiro... — Kohaku começou lentamente de forma languida e curvou-se abraçando o estômago, apoiou-se na parede de madeira que cercava um terreno baldio pelo qual passavam e ajoelhou-se no chão, pálido.

            —Haku, o que houve? O que aconteceu? — ela perguntou assustada sem saber o que fazer, vários pensamentos passaram por si sobre o que poderia ter causado aquilo, todavia foram interrompidos quando escutou um barulho grotesco, assustador, então só teve a certeza de seus instintos: pegar Haku e correr o máximo que podia.

            Agachou-se ao lado dele, que ficava mais pálido do que já era, a boca aberta à procura de ar, os braços fortemente abraçados a barriga. O que ele tinha? Parecia que iria desmaiar a qualquer instante... Não Chihiro, nada disto, não pense nisto, apenas fuja, corra, saia daí.

            —Kohaku, está me ouvindo? Precisamos sair daqui, tudo bem?

            Então ele virou de costas para ela, em movimentos robóticos e vomitou. O corpo sacudindo-se e tremendo enquanto o líquido saía da boca, Chihiro só teve tempo de segurá-lo, quando o corpo ficou mole, para que ele não caísse no próprio vomito.

            —Ei, está tudo bem? Consegue andar? Precisamos sair daqui... — ela falou enquanto o ajudava a levantar, ele era mais pesado do que ela podia imaginar.

            —Você não consegue sentir? — ele perguntou escorando-se na parede, puxando o ar com força para os pulmões.

            —O que?

            —Essa força esmagadora, a pressão do ar, a tensão...

            Chihiro negou com a cabeça. — Haku, vamos sair logo daqui, por favor, eu escutei algo vindo.

            —Eu sei, vamos, desculpe — ele falou e começaram a correr. —Chihiro, por aqui... — ele falou, a voz quase um sussurro, e entraram um beco estreito entre duas lojas, a luz dos postes não chegava até ali. Entraram mais um pouco a dentro da fissura até que se viram bastante próximos um no outro. Os braços de Haku estavam apoiado ao lado da cabeça de Chihiro, as barrigadas se separavam por dez centímetros e apesar de que a garota não conseguia enxergar nada, ela sentia o cheiro doce e salgado de Haku, como também conseguia escutar as respirações arfantes de ambos.

            Então o barulho surgiu, mais perto, Chihiro olhou para a rua e viu uma criatura enorme, sem braços, o corpo marrom e laranja rastejando pela calçada. Prendeu a respiração assustada e desviou o olhar, então sentiu os braços de Kohaku caírem em seus ombros, tremendo, apoiando-se nela.

            —Haku... — Chihiro começou sussurrando baixinho, mas as palavras quebraram em sua garganta quando imaginou a possibilidade daquele youkai a escutar.

            Talvez esse mal estar dele seja devido ao youkai...

            Sentiu Haku começar a cair à sua frente e, sem pensar duas vezes, deu um passo e o envolveu em um abraço, para servir de alicerce. Chihiro não sabia dizer quando tempo ficaram ali escondidos, mas foi o tempo o bastante para que Kohaku começasse a sentir bem novamente e quando se afastaram e escorregaram para fora do beco, após ter certeza de que não havia mais sinais do youkai, Haku caiu sentado na calçada.

            —O que aconteceu? — Chihiro perguntou apoiando as costas na parede.

            —Miasma, eu acho, muito forte... — ele falou e escondeu o rosto entre os joelhos, em um gesto cansado.

                                                           ***

            Fazia muito tempo desde que Kohaku havia sentido um miasma que o arrasasse daquela forma. Mal lembrava do sentimento ruim que era ter contato com um ar cheio daquela substancia abominável. Surpreendeu-se por Chihiro não ter sentido, mas de fato os humanos sentiam o sobrenatural muito pouco, como se tivessem desenvolvido um tipo de armadura, todavia ele como espirito sentia o miasma da pior forma possível, por alguns segundos pensou que fosse perder a consciência, que fosse deixar Chihiro em perigo. Pensar nisso o deixava preocupado, receoso do que poderia vir a acontecer mais a frente.

            Está tudo bem...tudo bem...

            Respirou fundo tentando controlar o leve enjoou que sentia.

            —Obrigado — falou enquanto levantava-se, lentamente arrastando as costas na parede. —Vamos... sua casa não está longe, certo?

            Ela assentiu e eles começaram a andar.

            Quando chegaram à casa de Chihiro, ela o convidou para entrar, mostrou a sala onde assistiriam o DVD e foi a cozinhar pegar pipoca e água —pois foi a única coisa que Kohaku aceitou.

            Ele encostou-se no sofá confortável com o copo de água em mãos e observou fascinado enquanto as belas imagens corriam pela tela da televisão — como Chihiro chamou. Demorou um pouco, mas se acostumou com o curta, era uma história bonita, mas infelizmente terminou em trinta minutos.

            — Iblard Jikan, bonito curta, eu gostei muito — Chihiro comentou e Haku concordou. —Entendeu o que vídeo?

            —Acho que sim, mas não sei como funciona.

            —Isso é o de menos.

            —Certo.

            —Olhe, ainda são sete e vinte, quer ir ver um filme? Ou tem que ir embora?

            —Acho melhor eu ir... amanhã a gente conversa mais — ele falou e levantou-se do sofá.

                                                           ***

            Depois que Kohaku foi embora, Chihiro desligou a televisão e guardou o DVD de volta na caixa, para então subir para o quarto.

            Deitou-se na cama com o celular nas mãos e colocou Ms.OOJA para tocar. O som de Lights encaixava-se perfeitamente no momento em que se encontrava, deixando a atmosfera ao redor confortável.

            Suspirou pesadamente e abriu o whatsapp para ver se tinha alguma mensagem, mas não respondeu nenhuma. Deixou o telefone cair para o lado e observou o teto cor creme.

            Tudo o que sentiu hoje mais cedo foi tão bom. Sorriu para si mesma. Cada vez que passava mais tempo a sós com Kohaku parecia que tudo se tornava mais real e ela não sabia muito bem como deveria reagir a aquilo.

            One way, começou a tocar. Era uma de suas favoritas.

            Lembrou-se das imagens que viu mais cedo, antes de discutir sobre as nuvens, com Haku. Imaginava se talvez não fosse uma lembrança, como ele havia sugerido; tal fato apenas servia para afirmar e firmar tudo o que estava acontecendo.

            Ela havia perdido a memória em algum momento quando tinha de dez à onze anos, mas como.

            “Comece tentando lembrar o que a fez esquecer”, ele tinha dito no dia em que a salvara do youkai no Grande Parque.

            O que me fez esquecer? Com dez anos... talvez tivesse ocorrido alguma experiência traumática, mas eu lembraria se fosse algo tão forte a ponto de me fazer esquecer de uma parte do meu passado, não lembraria? Talvez minha mãe saiba de algo.

            Levantou com preguiça e saiu do quarto. Os pais tinha chegado a uns cinco minutos em casa e quando chegou na base da escada, avistou a mãe reclamando das dores nos pés causada pelo salto.

            —Chihiro, o que está fazendo acordada? — ela perguntou sentando-se no sofá e esticando os pés em um banquinho.

            —Queria fazer uma pergunta — falou sentando ao lado da mãe.

            —Faça duas.

            —O que aconteceu comigo quando eu tinha mais ou menos dez anos? Você lembra de algo? Qualquer coisa — indagou e observou o cenho da mãe franzir levemente.

            —Você não lembra dos pesadelos, Chihiro?

            A garota negou de forma incerta.

            —Eu lembro muito bem, você acordava gritando ou chorando, dizia que sentia saudades de alguém ou que estava sendo perseguida, depois contava histórias estranhas sobre um sapo falante e duas bruxas. Era muito fora do comum, para falar a verdade, eu e seu pai ficamos preocupados então a colocamos em uma psicóloga.

            —Eu lembro! — falou subitamente — Senhora Maya, não é?

            —Sim, depois de dois meses de consulta, seus pesadelos terminaram, felizmente, não...

            Todavia, antes da mãe terminar de falar, Chihiro já tinha se distraído. Aos poucos, começava a lembrar...

            A senhora Maya nunca acreditava em si, lembrou-se; Chihiro contava tudo sobre o que sonhava, no entanto, a senhora Maya dizia... “São apenas fantasias de sua mente infantil, minha flor, eles a fazem chorar, não é? Por que quer tanto que sejam reais? Por que não os esquece?” ... Ela parecia estar tão certa, falava tudo com tanta certeza...

            Então eu esqueci. Aprendi a bloquear meus sonhos... eu lembro agora... ela me ensinou como não deixar meus sonhos me perturbarem.

            Sentiu a cabeça pulsar com uma pré-enxaqueca e levantou-se do sofá, indo até a cozinha ingerir um comprimido para a dor.

—Chihiro? Está tudo bem? — escutou a mãe perguntar.

—Fiquei com um pouco de dor de cabeça, mas logo vai passar — contou antes de soltar um longo suspiro. Como as coisas ficaram daquele jeito?

 Era muita coisa para se lidar ao mesmo tempo, o coração pulsava como se para lembra-la que estava ali, os olhos não sabiam para onde olhar, incomodados por tudo que estava pensando. Via a bancada com pratos para guardar na estante, o fogão com marcas de óleo e gordura, a pia com alguns pratos, os pequenos azulejos com desenhos de margaridas, a mesa para quatro pessoas forrada com pano listrado... Parecia tudo tão comum e ao mesmo tempo tão longe de seus pensamentos. Eu vejo, mas não consigo absorver o que observo, pensou fechando os olhos.

            Respirou fundo, e foi em direção ao varal pegar uma toalha.

            Precisava de um banho quente e uma boa noite de sono.

                                               ***

            Naquela segunda-feira, Chihiro teve uma série de aulas de humanas e agradecia por isso, se bem que trocaria de bom grado a aula de geografia, pela aula de matemática que teria na quarta-feira.

            Suspirou pesadamente enquanto copiava o assunto do quadro, pensativa sobre tudo que havia ocorrido na noite passada.

            Então sentiu alguns toques no braço e virou para ver o que Mugi queria, foi lhe estendido um papel dobrado. Chihiro o pegou e o abriu, o mais escondido que pode dos olhos do professor.

            Por que não foi ontem?

         Era sobre a torta... rasgou um outro pedaço de papel do caderno e se pôs a escrever:

            Estava com Kohakunushi, perdi o horário. Desculpe.

         Depois de entregar de volta o papel e de Mugi ler, ambos trocaram um olhar cheio de informação e foi lhe esboçado um sorriso que Chihiro tentou não retribuir.

                                               ***

            Kohaku suspirou pesadamente, precisava descobrir a fonte de todo aquele miasma descomunal, talvez fosse algum youkai de um lugar imundo ou algo do gênero. E se fosse isso, não perduraria por muito tempo ali, ele esperava que não, pois enquanto Chihiro estivesse na escola, ele tinha tempo o bastante para procurar pelo mundano que vira a conversar com o youkai kitsune na floresta.

            Ele tinha quase certeza de que aquele homem traria as respostas que precisava e, depois que contara tais fatos para Zeniba, a mesma concordou, afirmando que qualquer pista deveria ser investigada a fundo.

            No entanto, achar um mundano era mais difícil do que parecia, todos os humanos era muito iguais, todos tinha os membros no mesmo lugar, e o cabelo castanho que procurava, era igual a vários que já tinha visto. Talvez quem sabe, ele pode ter passado por aquele mundano várias vezes e não tê-lo percebido.

            Cada vez que saía para investigar, conhecia mais da pequena cidade. E agradecia por ela ser pequena.

            Sentou-se em um banco qualquer em uma praça qualquer, cansado. Aquele corpo mundano era muito frágil comparado ao seu corpo espiritual.

                                               ***

            No segundo intervalo, Chihiro, Misaki e Mugi se reuniam juntos em uma das mesas que ficavam ao ar livre e comiam juntos. Em certo momento uma garota passou correndo por eles, a face tão pálida quanto leite.

            —O que tem de errado com ela? Não poderia esperar pela aula de educação física? — Misaki comentou e voltou-se para o suco de uva que bebia.

            —Vocês viram a Hana? — Uma outra garota parou em frente à mesa deles.

            —Quem é Hana? — Mugi perguntou.

            —Deve ser a garota que passou por aqui correndo — Chihiro tentou engolindo sem mastigar direito o pedaço do sanduiche, sendo forçada a tomar grandes goles do próprio suco de laranja.

            —Ela foi para lá — Misaki apontou com desinteresse. — O que houve com ela?

            —Não sei, ela simplesmente começou a correr — a amiga falou. — Obrigada! — falou antes de começar a caminhar de forma apressada na direção apontada.

            —Estranho — Mugi comentou. — O que faria alguém correr dessa forma?

            Antes mesmo que Chihiro pudesse formular uma futura resposta em sua mente, o barulho de latas caindo no corredor, atraíram a atenção dos três.

            —Quem derrubou aquilo? — Misaki perguntou e Chihiro notou que a amiga não estava vendo o mesmo que ela, muito menos Mugi. Respirou fundo, e foi a última coisa que fez antes de começar a correr.

            Está atrás de mim...

            —Chihiro! Vai para onde? — Misaki gritou.

            —Eu já volto! — gritou de volta e fez uma curva no prédio da escola, desviou de algumas meninas que conversavam de baixo de uma árvore e virou uma curva novamente. Deve ter algum lugar, qualquer lugar, ao qual pudesse se esconder, ali na escola, ela estava sozinha, não tinha Haku para ajudá-la; precisava se virar sozinha.

            Um lugar para me esconder... Um lugar para me esconder...

            Atrás de si conseguia escutar o barulho de coisas caindo e pessoas fazendo exclamações sobre empurrões e esbarros, Chihiro achava quase inacreditável o fato de que nenhum deles conseguia ver o youkai. Então avistou o corredor que levava um quartinho onde eram guardados os instrumentos para faxina. Correu pelo pátio externo, pulou a pequena mureta que separada o corredor do pátio e correu por ele até o quartinho, abriu a porta, entrou e a fechou. As mãos tremendo, o peito clamando por ar e uma dor terrível na lateral esquerda do corpo — provavelmente causada por ter corrido antes de digerir totalmente a comida.

            Sentou-se no chão acalmando-se e desejou que o youkai não a encontra-se.

            Quando tempo será que terei que ficar aqui?

           


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado. Desculpe-me quaisquer erros e também a demora para atualizar. hehe.
Tentarei postar o próximo o mais breve possível.
Obrigada a todos que estão acompanhando e também pelos comentários deixados ^^
Até mais ver,
— Miah



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