No More Secrets: Segunda Temporada. escrita por CoelhoBoyShiper


Capítulo 9
Perfeita imperfeição (A Musa - Parte 2)


Notas iniciais do capítulo

VOCÊS PENSARAM QUE NÃO IA REBOLAR MINHA BUNDA HOJE, NÉ?!

Desculpe, mas eu precisava dizer isso.
Quanto tempo, não?
Voltei, e agora pra ficar, muitas coisas aconteceram nos últimos cinco meses. Não vou dizer muito aqui, porque não deve ter graça nenhuma me ouvir falando depois de todo esse tempo sem um update, devem estar ansiosos para lerem logo o resto da história...
Então, não vou fazer muitas delongas.
Só digo uma coisa: estou pronto para recompensar vocês pelo tempo perdido.

Boa leitura.



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(30 anos antes)

Stanford vivia com um peculiar problema.

 Ele não se lembra exatamente de quando isso havia começado ou o motivo —           talvez tenha sido os inúmeros anos nos quais ele havia passado sem alguém para chamar de amigo, ele realmente não fazia ideia se isso tinha alguma relação —, mas ele sabia quando aparecia: aparecia sempre quando ele começava a ficar próximo demais de alguém.

 Ele não sabia diferenciar um colega de um amigo.

 Ele não sabia também quando era o momento exato para categorizar um amigo como o melhor amigo.

 “Essa pessoa é meu amigo ou um simples colega de trabalho?”

 “Essa pessoa é meu amigo ou meu melhor amigo?”

 “Ele é o meu melhor amigo ou... algo a mais?”

Toda vez em que Ford começava a se aprofundar na socialização com alguém, fosse quem fosse, pensamentos como esses se tornavam recorrentes, até mesmo perturbadores.

De todos os campos científicos nos quais ele havia se dedicado a estudar, de todos os tópicos que a sua mente brilhante havia lhe permitido dominar, havia um no qual ele se via completamente inapto de compreender totalmente: o das relações humanas.

Ou melhor, das suas relações humanas.

O de decifrar o enigma que era os seus sentimentos. E os sentimentos que ele, possivelmente, viria a adquirir pelos demais.

Mas, mesmo com todas aquelas reentrâncias no seu psicológico, Stanford tinha certeza de uma coisa; uma coisa na qual ele não podia mais negar, que não era possível mais de esconder, pois já estava ali, palpável de tão óbvio: ele admirava muito Bill Cipher.

 A criatura, antes uma forma geométrica bizarra a planar num plano de existência chamado mindscape, agora se refestelava sobre a cama diante dele na presença de um garoto excêntrico de cabelo loiro e um único olho (enquanto o lugar que deveria ter seu lho esquerdo, estava coberto por um tapa-olho preto no qual o próprio Ford havia feito de presente para ele com esmero) de cor roxa. Os dois se encaravam incertos, a chuva estava a cair lá fora, as gotas densas de água embaçando as janelas e obliterando a energia elétrica, deixando os dois à mercê das luzes das velas que estavam espalhadas por quase toda a cabana.

 — Sabe, Sixer — Bill começou a quebrar o gelo na sua voz ronronada, já fazia um bom tempo que os dois estavam sem trocar nenhuma palavra, afinal, fazia poucos dias desde quando Stanford tinha conseguido abrir uma brecha entre dimensões e trazer Cipher para a Terra. Ainda estavam se acostumando com a forma humana do ser de um só olho, tanto Ford quanto o próprio Bill aprendendo a se acostumar no seu mais novo organismo. —, eu poderia muito bem usar os meus poderes para poder reacender as luzes, ou até mesmo criar uma fonte nova de energia para nós.

— E por que não faz isso? — indagou o jovem cientista de seis dedos que estava ao lado dele, do outro lado do colchão, limpando constantemente os óculos que teimavam em continuar a condensar as lentes por causa do ar frio que repercutia nos arredores.

Bill girou em cima da cama, ficando de barriga para baixo, as pernas para o alto a açoitar o ar, enquanto ele brincava despretensiosamente com a cera recém derretida de uma das velas que estava a escorrer para fora do criado mudo de Ford. Ao ouvir a pergunta, esbambeou um pouco antes de responder, como se caçasse a melhor resposta para ele, até que, finalmente, disse com um ar maroto:

— Porque eu gosto muito do jeito que o seu rosto fica à luz de velas, Stanford.

Stanford imediatamente corou, antes mesmo de o garoto terminar a frase, ficando mais vermelho do que a própria chama da vela na qual seu rosto estava perto. O homem não tinha certeza se Bill dizia aquilo consciente da malícia presente, pois havia acabado de chegar ao mundo dos humanos, mas, o conhecimento infinito do ser dimensional fazia-o ficar com um ponto de interrogação a pairar acima da sua cabeça. Não era apenas o conteúdo da frase, como também o fato de Bill chamá-lo pelo nome, uma coisa que Ford percebera que ele raramente, talvez até nunca antes houvesse feito antes.

— V-você está falando sério? — Stanford estremeceu.

Bill teve de suprimir uma risada de tanto achar a cena graciosa.

— Talvez. É uma meia-verdade.

— Como assim? — perguntou, já logo desconversando em prol do seu constrangimento.

— Os meus poderes.

— O que têm eles? — estava tão nervoso que nem percebeu ao fazer aquela pergunta boba.

— Eu os perdi, esqueceu? — Bill virou o rosto lentamente na direção do outro, a sua franja longa, que carecidamente pedia por um corte, escorreu pelo lado direito do seu rosto, ocultando-o a janela para as intenções das palavras que provinham de sua alma. — Inclusive, eu estava falando sobre isso com você nestes últimos dias. Eu falei que se eu tivesse meus poderes, eu poderia facilmente terminar de abrir o portal que você está tentando construir no porão. Eu poderia facilmente te ajudar a concluir o seu projeto. Eu seria a chave mestra para tal.

— Ah... tá. — Ford pressentiu que um silêncio sepulcral estava a se aproximar, então continuou logo com a conversa. — E como você vai adquiri-los de volta? Você disse que tinha um modo, não é?

O olhar de Cipher percorreu pelo corpo de Ford, o homem usava apenas uma regata branca com a samba canção vermelha xadrez – enquanto o outro estava aconchegado dentro do suéter vermelho de Ford, grande demais para o seu corpo esguio, o que escondia totalmente os seus braços e depois da cintura. Ford estranhou a ação do outro, ainda mais quando o olhar dele repousou sobre a sua mão de um dígito a mais.

— Sim, há um jeito de usar meus poderes estando na minha forma humana.

— E isso seria...?

Bill parou por um instante, o seu olho violáceo rasgando a escuridão até o encontro dos olhos castanhos de seu guardião.

— Sixer... você já ouviu falar do termo Índigo?

— A cor?

Cipher teve que conter a vontade de revirar o olho. “Pelo visto tem uma coisa na qual ele parece não ter conhecimento sobre”, refletiu. “Vou ter que explicar a longa história para ele.”

— A dimensão na qual eu venho, o mindscape, o nosso povo vem tentando sair dela para fazer parte integral da sua há milênios.

— Espera! Seu “povo”? — espantou-se Ford, subitamente ficando superinteressado no assunto. — Quer dizer que tem mais de vocês por lá?

O loiro assentiu.

— Exatamente. Muitos. Há muito tempo, durante o início das civilizações, a nossa raça superdesenvolvida ficou encarregada de reger o mundo humano e toda a entropia da Terra. Como você já deve ter suspeitado, éramos nós quem estava por trás da construção das pirâmides e da sabedoria inigualável de muitas sociedades iniciais, como os Gregos. Infelizmente, mas não inesperado, o inevitável aconteceu.

— O que foi?

— Muitos de nós sabíamos que seria um risco enorme compartilhar tão abertamente com os humanos os requintes de nosso conhecimento inestimável provido do mundo em que vivíamos, houve muitas segregações no nosso povo e no mindscape. Alguns achavam que a sabedoria deveria ser apenas entregue aos indivíduos humanos específicos, estes seriam os reis, governantes e líderes de nações e eras. Enquanto a outra parte acreditava que todos deveriam ter igualmente o direito da concupiscência universal. A nossa dimensão entrou em muitas guerras e conflitos desde então, até que...

— Já estou vendo onde isso está indo... — lamentou Stanford. — O famoso caso do “a criação se rebela contra o seu criador”.

— Precisamente. — suspirou como se apenas a tarefa de reviver aquela história fosse cansativa. — Quando demos por nós, a inteligência já havia se alastrado no mundo dos humanos como uma praga. Logo não tínhamos mais alternativas do que nos escondermos. As pessoas começaram a aprender modos que nos repelir, vários seres do mindscape foram “domados”, trancafiados em sarcófagos, transformados em lendas, religiões, mitos, fábulas... até que o grande comandante do mindscape deu “o decreto”.

— Espera! Desculpe te interromper novamente, é que eu não posso evitar achar tudo isso fascinante. — explicou Ford naquela postura infantilmente empolgada que fazia Bill ter uma sensação estranha no fundo do peito: seu coração se aquecia, e suas pulsações pareciam palpitar mais rapidamente. — Mas vocês, criaturas do outro lado, não são apenas uma sociedade como também são regidos por um sistema governamental?

— Sim. É bem parecido com o sistema de castas que algumas culturas de vocês, humanos, são adeptos. — disse ele, lembrando-se da vez que relembrara daquilo ao ler em um dos livros de sociologia que encontrara no escritório de Ford. Bill não deixava de achar estranho quando havia aberto a obra e viu que estava marcada pelo cientista numa página escrita: “relacionamentos interpessoais”. — Nós temos um comandante geral, uma autoridade máxima, de maior poder e controle de todo o universo no qual vivemos... mas eu não quero falar sobre ele agora. — saiu pela tangente, retornando ao assunto principal. — Enfim, o decreto foi uma lei que está em regência até hoje. Ela proíbe qualquer criatura dimensional da minha raça de cruzar os portais para o mundo dos humanos por vontade própria. E, caso isso aconteça, essa criatura passará para o planeta Terra assumindo uma forma física de sua preferência; na maioria sendo parecida com o resto dos humanos, para que nós possamos nos misturar com a maioria sem sermos notados. Mas isso tem um porém...

O menino respirou fundo, preparando-se para dizer aquilo.

— Acabamos indo para o mundo normal sem nenhuma gota dos nossos poderes, para que o caos ocorrido no início das civilizações não pudesse se repetir novamente.

— E o que isso tem a ver com o termo “Índigo”?

  — Bem, mesmo com o decreto, nós do mindscape continuávamos a ser uma raça bem poderosa dentro do nosso mundo, tendo muitos poderes ao nosso favor. Isso permitiu que muitas das criaturas encontrassem brechas na lei imposta por nosso comandante. Eles vieram com um plano de criar as crianças Índigo.

 — Crianças?

— Isso. Nós descobrimos que éramos capazes de influenciar no mundo humano indiretamente, manipulando o nascimento de pessoas com o viés da nossa magia. Nomeamos esses humanos criados por nós de Índigo.

— E qual a função deles?

— Quebrar a lei que não nos permitia ter poderes nessa realidade. Os Índigos, por provir do nosso Poder, guardam dentro de si uma pequena parcela do que a minha raça é feita. Então, se nós, por acaso, nos depararmos fisicamente com uma dessas pessoas que criamos enquanto estávamos presos na outra dimensão, ganharíamos o nosso poder de volta, e poder usufruí-lo livremente no mundo humano.

— Está me dizendo que você conseguiu fazer nascer pessoas no meu mundo? E essas pessoas especiais podem lhe devolver os poderes assim que encontrarem com vocês?

— Quando encontrarem fisicamente a nós. — corrigiu. — Não é qualquer tipo de contato.

— Exemplo...?

Bill deu um sorriso enigmático que Ford quase jurou ter um quê de perversão,

— Digamos que quanto mais “perto” e “intenso” for, melhor. Entende?

 — Quer dizer “beijos”, “abraços”, essas coisas assim?

— Sim, infelizmente beijos e abraços são formas de contato muito fracas, que podem garantir que os nossos poderes aflorem por um período temporário, não sendo o suficiente. Tem que ser um contato humano no qual se é pouco utilizado, por ser, justamente, muito valorizado e seletivo a quem se dá... algo que alguns de vocês ousam julgar ser movido pelo sentimento mais arrebatador que vocês possuem... amor.

Stanford abafou um grito, incrédulo.

— Você quer dizer... s-sexo?!

O sorriso do mono-olho se alargou mais ainda e ele não conseguiu segurar uma risadinha. “Tão jovem e inteligente, todavia tão retraído...”, elogiou em seus pensamentos. “Eu fiz a criação perfeita”, orgulhou-se.

— Então... — o cientista prosseguiu, ajeitando o tom da voz, “que besteira é essa, Stanford?!”, ralhou consigo mesmo. “Quantos anos você tem para reagir desse jeito diante a uma simples palavra como essa? Pior ainda, você é um cientista, porra!” — Tem uma pessoa que você criou aqui, no mundo humano, e você precisa achá-la para garantir sua magia de volta?

— Sim, eu fiz uma pessoa. — admitiu.

— E quem é ela? Você sabe quem é?

— Não — mentiu. —, não sei.

— Então, como vocês, criaturas, esperam ganhar seus poderes de volta nesse mundo se não sabem quem essas pessoas são?! — Ford não pôde deixar de, genuinamente, se ofender com uma gafe daquela provida de seres inteligentíssimos.

— Nós somos os seres mais astutos do planeta, Sixer. É claro que nós pensamos em algumas coisas. Fizemos os Índigos nascerem com características... singulares. Marcas no corpo e na mente que os diferenciam dos humanos normais, para, assim que batermos o olho neles, sabermos identificá-los com mais facilidade e num curto espaço de tempo.

— E quais são essas “singularidades”?

Bill Cipher abominou a urgência de relancear a mão de seis dedos de Ford novamente. Ele não poderia entregar o jogo tão fácil assim, teria que fazer uma das suas artimanhas com ele. Não podia correr o risco de Stanford se sentir usado, ao pensar ser apenas um objeto nos planos de Bill de recapturar a sua magia, e não acabar transando com ele. O homem precisava ser manipulado; por sorte, essa era uma arte que o demônio mais dominava — ­além do mais, ele conhecia cada milímetro cúbico da mente de Stanford, já que o próprio Bill foi quem havia a criado, afinal das contas. E Stanford já havia o deixado entrar no seu corpo diversas vezes.

— Ah, nem vale à pena tentar te explicar. — tergiversou o de olho roxo, torcendo para que o gênio aceitasse aquilo como resposta.

— Mas... por que vocês desejam tanto vir para cá, no mundo humano? O que há de tão especial por aqui para se ver nos dias de hoje?

A fala de Bill, acompanhada de seu olhar repentinamente cabisbaixo, acentuava a sua postura irrefutavelmente melancólica. — Você não faz a menor ideia de como é viver naquela sociedade, Ford. — a voz dele carregava uma sonoridade diferente, gutural, como se falasse para dentro de si próprio, como se fizesse um mantra ou um solilóquio de catarse. — Eu observo o seu mundo discretamente há muito tempo, cada detalhe dele, em torno de todo o globo, e posso dizer, com toda convicção, que, de todos os problemas que vocês enfrentam, nada se compara às injustiças que ocorrem no mindscape. São aberrações de outro mundo... literalmente. E, da minha camada hierárquica, somos, por trilhões de anos, mais inferiores a cada dia, mais restringidos, controlados, caçados... o mundo de vocês tem algo de que todos nós inveja. Liberdade. — “E é por isso que eu e muitos outros queremos estar aqui, queremos destruir essa dimensão nojenta e mal agradecida que reclama todos os dias. Essas pessoas repugnantes que só existem porque nós a deixamos existir alguma hora, e, mesmo assim, elas continuam com a sorte grande. Vamos aniquilar esse planeta que nem sequer deveria ter existido!”, a vontade que Cipher tinha de proclamar essa última parte em voz alta era insofismável, mas, tendo vivido desde o início de tudo, ele sabia como ninguém segurar suas emoções.

O homem estagnou por um instante. Ele nunca imaginaria aquilo vindo de um dos seres que aparentemente era o mais poderoso já conhecido até então. Existiam outros seres capazes de serem mais poderosos e dotados do que o próprio Bill Cipher? O olho da providência, que tudo vê, onipresente? Isso era ao menos possível?!

— Então nós temos que colocar as mãos à obra! — regozijou Ford, fazendo a maré deprimente do seu mais novo colega/amigo/colega de trabalho/...algo a mais (talvez...?) esmorecer apenas com o seu sorriso torto. A criatura-humana já tinha se erguido, ficando sentado de pernas cruzadas na cama. — Vamos fazer de tudo para achar a pessoa sortuda na qual você escolheu para ser a portadora de algo tão importante quanto a sua liberdade. Farei de tudo para te ajudar, prometo.

A íris violeta de demônio cintilou, e Ford, pela primeira vez, foi capaz de notar algo tão evidente transcorrer por detrás de um artifício anatômico de alguém.

Esperança.

— E eu prometo fazer de tudo para, depois de ter meus poderes de novo, abrir o portal pra você e te fazer o cientista mais rico e renomado que essa dimensão já viu — fez uma cortesia brincalhona na penumbra da alcova. —, meu amigo.

 

***

 

O outono, perpassando na janela empoeirada da lanchonete da Susan, sugava toda a vida da natureza, faminto pelo seu verde. O tilintar da porcelana de xícaras, copos e pratos sendo ensaboados um sobre os outros distantemente na pia do estabelecimento era a trilha sonora daquela sorumbática manhã de domingo. O cheiro de café fresco ambientava em cada aresta da construção rústica. Bill estava se ajustando às novas sensações humanas. É claro, sendo um ser imponente de riqueza intelectual como ele, o loiro sabia e reconhecia sobre todos os sentidos humanos, no entanto, o seu conhecimento era o mesmo que se aprende num livro: erudito, didático; ele nunca havia antes, de fato, experimentado na pele aquilo tudo. Ele era apenas como uma grande enciclopédia na qual tinha a função de abrigar — e apenas abrigar — todos os mínimos detalhes do mundo, sem ter o direito de intervir ou se aplicar no próprio ensinamento transmitido.

O assento no qual ele se acomoda é macio e achegado, a mesa diante dele, na qual suas mãos estão confortadas paralelamente a um caneco de café latte espumante, é áspera por razão da madeira bruta da qual foi fornecida. As suas pálpebras estão cansadas e pesadas, e persistem em cair contra a vontade de seu portador — o efeito da sonolência era, de longe, o que Bill havia mais detestado sentir até então; ela o fazia se sentir vulnerável, inválido, finito, o que lhe incomodava profanamente.

Levou os dedos indicador e anelar às têmporas, pressionando-as, tentando se desvencilhar daquele estorvo mundano.

— Como está sendo a aventura tridimensional? — ousou Ford, sentado à frente do outro, a aporrinhá-lo. Levou a sua xícara as lábios, enquanto fingia não estar interessado no livro que segurava aberto próximo ao vitrô

— Vocês aguentam isso todos os dias? Que projeto evolucional fraco esse o de vocês... — retorquiu azedo.

— A maioria dos humanos tem a vida inteira para se acostumarem com suas fraquezas, nem todo mundo virou humano de uma hora pra outra como você, sabe? Mas, devo admitir mesmo, acordar cedo é um mal universal que poucos de nós têm a proeza de se curar.

Cipher grunhiu. Ford sentiu-se preocupado por uma fração de segundo.

— Beba do seu café. — aconselhou ele. —, juro que vai se sentir melhor com isso.

O ser urgiu por seu recipiente. Assim que o agarrou, soltou-o de uma só vez, por pouco o caneco não caía, espatifando-se em milhares de lascas pelo linóleo da cafeteria. — Quente, quente, quente! — quase praguejou.

— Com cuidado, já passou por isso antes. — deixando sua faceta intelectual de lado por um minuto, Stanford fechou a capa do seu fascículo, rumando em direção do copo de Bill, o erguendo pela alça com cautela enquanto o outro ainda gesticulava as mãos, impaciente para que a sensação de queimação se dissipasse logo. Esteou o recipiente com o líquido borbulhoso e soprou a fumaça para longe, abrandando trivialmente o calor da bebida, uma nuvem térmica invisível voejou até o rosto de Cipher, aquecendo-o brevemente da atmosfera fria da manhã. Em seguida, o maior esticou a beirada do caneco na direção dos lábios dele. — Aqui. — ofereceu, encorajando-o com os olhos.

Bill titubeou por pouco tempo antes do moço à sua frente insistir: — Beba. — e se aproximou da ajuda que ele oferecia. Bebendo o café suavemente das mãos de Ford. — Melhor agora, acredito.

— Sim, obrigado, Sixer.— tomou o copo de volta à sua posse, bebendo o resto.

Passaram alguns minutos em um silêncio agradável. Bill já sentia a cafeína afetar o seu sistema imunológico, liberando enzimas de epinefrina que o deixavam mais disposto. O assunto só retornou quando o pedido de Ford chegou — um prato de ovos mexidos.

— Tem certeza de que não vai pedir nada? — questionou ele, já dando as primeiras garfadas, ao perceber o amigo distante.

— Eu já me alimentei ontem.

— Humanos precisam se alimentar, no mínimo, de três refeições completas diariamente. — advertiu. — E o café da manhã costuma ser a mais importante delas.

— Bem, eu não preciso. — e era verdade, Bill comia muito pouco. Quando questionado sobre isso por Ford, ele explicou que, de alguma maneira, por ser originado de um organismo multidimensional, Cipher não necessitava se alimentar tanto quanto os outros. Era necessário por ser humano, mas não tanto quanto. “Uma refeição e um pouco de líquido são o suficientes para manter meu corpo em funcionamento por um mês inteiro”, era o que ele já havia dito. Aliás, ele não tinha agradado tanto da experiência de comer, achava um hábito estranho e não tão prazeroso quanto os humanos achavam, então só o fazia pela obrigação. Embora o funcionamento metabólico misterioso do triângulo humano fosse um fato, não excluía a constatação do estado do seu corpo: ele era assustadoramente magro, as costelas ressaltadas sob a pele, a cintura tão fina que parecia ser capaz de entrelaçar um par de mãos em torno dela... mas, por mais incrível que parecesse, a saúde dele se mostrava em perfeito estado, conquanto a anatomia não deixasse de ser preocupante.

— Você está tão magricela quanto a essas árvores durante o outono. — comentou Ford ao divagar, olhando para fora da janela.

— Eu gosto, acho... interessante...

— As árvores mortas? A magreza absurda delas?

— Falo da estação em si. Outono. — suspirou.

Ford não pôde deixar de sorrir.

— Concordo. Sabe... essa é a minha época favorita do ano. As pessoas por aqui sempre parecem glorificar demais as estações como a primavera e o verão por simbolizarem a alegria e o nascimento, mas mal percebem o quanto de charme singular está presente no Outono. — bebericou um pouco mais do seu café. — Eu amo o jeito que a estação mostra que tudo na vida é efêmero, e que tudo e todos nós fazemos parte de um ciclo infinito no qual sempre acabará num mesmo destino inegável: a morte; mas não de uma forma fúnebre ou macabra, ela mostra isso de um modo tão apaziguador e excepcional que chega a ser mais reconfortante e bem vista a aceitação do nosso fado. Eu sinto que isso chega a até refletir no próprio clima do evento: não é frio nem calor, mas um equilíbrio perfeito entre os dois. Desconforto e o confortável em um só. Agridoce. É como a vida; o outono nos mostra que ela não é perfeita, que tem suas belezas em alguns momentos, mas, noutros, ela é mortífera, que a vida não é só feita de prazeres e do que a maioria julga ser bom, as infelicidades também fazem parte dela e não há nada de errado nisso. O que era para ser considerado “feio” apenas se torna uma maior parte do “belo”.

— Humanos... eles sempre se dividem nessas duas categorias, huh?

— Que categorias?

— No mundo de vocês, ou você reflete sobre a sua finitude, ou você a ignora.

— Fato.

Mais silêncio, o sol tímido a escorrer entre as fissuras dos tapumes para dentro do restaurante aos poucos, pincelando o rosto dos dois, fazendo-os refulgir numa nuance dourada. O cabelo de Cipher a se camuflar naquele farol espectral.

— Você já pensou em como morreria, Seis-dedos?

— Quê?

— Isso mesmo. Se você pudesse escolher como morreria, como seria?

O Pines se colocou a pensar com os seus botões primeiro.

— Eu sempre pensei que seria bastante interessante morrer como nos filmes ou livros. — replicou.

— E como isso seria?

— Morrer de forma “heroica”. Sabe, em nome de alguém, ou para salvar/proteger alguém... mas...

— ...? — o único olho do menino o impelia a adiantar-se.

“Mas eu não acho que eu tenha alguém no qual valha à pena dar a minha vida”, era o que ele estava prestes a dizer quando se perdeu admirando Bill contemplado defronte dele, os cotovelos magros apoiados sobre a mesa, com as mãos apoiando os dois lados da sua cabeça. A cena delicada, juntamente com um dejà vú da noite em que ele havia sido chamado de “amigo”, desperta um pensamento inusitadamente querido nele: “Talvez eu tenha.”

— Que foi...? — Bill o resgatou do seu enleio desvairado.

— Nada... — murmurou o cientista, enrubescendo afetuosamente ao esconder o seu sorriso bobo por detrás da xícara. — Deixa pra lá.

Para não se deixar ser controlado pelos sentimentos cada vez mais intrometidos, Ford focalizou o olhar no outro lado da campina por meio de outra janela.

Olhando de volta para ele, lá, bem no início da mata, residia um solitário pinheiro miraculosamente verde.


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Notas finais do capítulo

Ei, antes de me xingarem nos coments. Só passando pra lembrar de que eu tenho um twitter, viu?
@coelho_diaz
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Bjs, amo vocês! ^^/



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