Mentiras Sinceras escrita por Human Being


Capítulo 6
"Migalhas dormidas do teu pão"


Notas iniciais do capítulo

Aviso Legal: Saint Seiya não me pertence, e sim à Toei, Shueisha, Bandai e todo esse povo que não sabe direito o que fazer com eles. Nhé.

Disclaimer: Essa fic é continuação direta do Epílogo de Faro Fino, portanto também ambientada no universo Sui Generis/Sideways (e não vai conter yaoi/shounen-ai). Nela existem vários spoilers de Faro Fino e dos capítulo de Sideways - por isso, antes de começar aqui e se você não tiver lido Faro Fino ou esses capítulos de Sideways... Cola lá e dá uma lidinha, nunca te pedi nada, vai.

E o título do capítulo também vem de Maior Abandonado (Cazuza/Frejat - 1984)



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Uh...

Shina não abriu os olhos, mas sentia as pulsações doloridas de todas as artérias dentro da sua cabeça. Sua língua se grudava no palato como se água fosse uma memória distante, mas ainda conseguia sentir um gosto acre profundamente incômodo em toda sua boca.

E o calor, o colchão estava mais quente que o habitual.

Os lençóis cheiravam… a champanhe?

Tentou se mexer para ensaiar sua saída da cama, a cabeça latejou como se fosse explodir. Seu braço esbarrou em Milo - que praticamente estava encostado nela.

Hã?

Remexeu-se na cama.

Onde estavam suas roupas?

Ela estava completamente nua embaixo das cobertas.

Forçou seu corpo a se virar de bruços para tentar elevar a cabeça sem tanta dor, seus cabelos caíam pela sua cara. O quarto estava escuro - Graças aos Deuses pelas pequenas bênçãos - mas ela conseguia enxergar seu precioso vestido de gala jogado na poltrona, um de seus sapatos (nem sinal do outro), um roupão jogado perto da parede, a garrafa vazia de champanhe no chão.

Milo de bruços, morto para o mundo - e pelo que ela pôde averiguar por debaixo das cobertas, tão nu quanto ela.

"Não", ela balbuciou enquanto tentava puxar pela memória o que diabos tinha acontecido.

Ela lembrava de ter bebido, em uma noite só, o que nunca bebeu na sua vida toda. Lembrava de ter dado uma lição no filho do Sheikh. Depois achado Milo, empenhadíssimo em fazer valer o seu 'não vou passar por isso sóbrio'. Ele bebendo, ela bebendo, o show do Eurythmics; e ela - absolutamente fora de si - ouvindo Miracle of Love abraçada nele como se ele fosse o amor de sua vida. E faltava muito pouco para ela se virar para lhe tascar outro beijo, mas ele se escapuliu dizendo que ia pegar um uísque. E ela foi atrás, louca do jeito que estava ela foi atrás dele e… Jack. Jack a achou. Lembrava da garrafa de champanhe, da volta para a cabine - ela e Milo bebendo o maldito champanhe no gargalo, alguma coisa sobre ele derramar champanhe no seu vestido e depois...

Nada.

Mas não era preciso muita expertise investigativa para adivinhar.

Seu coração pulava no peito, o que só fazia sua cabeça doer mais.

— Milo - Empurrou o nome dele para fora de sua garganta seca, sua voz rouca e baixa. - Milo.

Ele se remexeu um pouco.

— Milo, acorda… - Tentou de novo. Nada.

— Milo! - Sua voz saiu mais alta ao preço de um estalar de dor que parecia partir seu crânio ao meio.

— ...Não grita… - Ele gemeu, a voz abafada pelo travesseiro. - ...Pelos deuses, minha cabeça... de novo, não…

— Acorda. - Falou mais baixo, tentando esconder o tremor em sua voz.

— O que foi…?

— Me diga você. - Sibilou. - O que foi que você fez?

Ele finalmente levantou a cabeça, a franja desarrumada lhe caindo sobre os olhos - ao que parece ele estava com uma ressaca tão absurda quanto a dela. Franziu o rosto para falar alguma coisa, por certo alguma gracinha para seu benzinho.

Se ele fizesse isso, ela o mataria nem que para isso morresse junto.

— ...Cadê sua roupa? - Ele olhava para as mãos dela, enrolando o edredom ao redor do busto.

— Me responda você. Cadê a sua?

Ele fechou os olhos e baixou o rosto no travesseiro.

— Espero que você esteja feliz. - Sentia um bolo se formando em sua garganta, mas não mostraria fraqueza diante dele. Não mais. - Você finalmente deu o troco que você tanto queria.

— Você tá insinuando que - Ele tentou levantar a voz, parou em uma careta de dor. - ...Você está insinuando… - Continuou em um tom mais baixo. - ...que eu fiz isso de caso pensado pra me vingar?

— Eu não estava em condições de fazer isso, e você-

— Não. Não. Não. - Ele soltou um risinho amargo, apoiado sobre os cotovelos enquanto segurava a testa com a palma das mãos. - Isso não tá acontecendo. Isso não. tá. acontecendo.

— Vai me dizer que você vai dizer que não se lembra de nada? Vai ter a pachorra de bancar o pobre donzelo abusado?

— Quem, eu? Claro que não, benzinho! - Ele ironizou num sussurro. - Pois se você está dizendo que eu te seduzi, te embebedei e trouxe a pobre donzela indefesa até minha cama para uma tórrida noite de amor? Tudo isso por vingança porque você me roubou um beijo quando eu tava dopado demais pra me defender, pra me ensinar quem brinca com quem?

— Como é? - Suas narinas batiam pela raiva fria que nem sua cabeça dolorida conseguia refrear. - Escuta aqui-

— Mulher, te preserva! A maior probabilidade é de que tenha acontecido justamente o contrário. Você é quem estava ontem em cima de mim, toda cheia de amor pra dar. Posso não me lembrar do resto, mas disso, benzinho, eu me lembro muito bem. - Milo rilhou os dentes, mal contendo sua raiva.

— Não lembra?... Coitadinho dele. Não tinha interesse nenhum em me levar pra cama, nunca nem pensou nisso, o pobre bichinho.

— Você realmente acha que eu fiz uma merda dessa em sã consciência? Eu, logo eu, estaria ansioso em ir pra cama com você? Depois do que você me fez?

— Mas não é você que vai se mostrar para um bando de adolescentes porque quer que eu as veja te secando?

— ...Ah, quer saber? Chega. Olha pra lá, que eu vou me levantar. - Ele afastou as cobertas lentamente, respirando fundo antes de levantar-se até o armário atrás de uma camiseta e uma calça de moletom.

— Não vai ter nada aí que eu já não tenha visto.

— Beleza, aproveita a chance pra olhar, então. Última oportunidade que você vai ter. Porque pra mim deu. Eu quero o divórcio, benzinho.

— Faz o que você quiser.

— Ótimo. E, antes que eu me esqueça, vá pro inferno.

Ele saiu batendo a porta.

OOO

Do lado de fora da cabine, Milo apoiou-se na parede, finalmente vencido pela tontura e pelos joelhos trêmulos. Ele tinha que se sentar. Deuses, ele tinha era que se deitar, tomar um analgésico forte e torcer para dormir; mas ali onde estava um banco teria que servir.

A ressaca física era horrorosa. Sua cabeça doía e rodava, o estômago um nó que parecia querer expulsar o que quer que estivesse ali dentro - embora ele soubesse que não tinha nada para vomitar.

Mas ela era infinitamente melhor do que estar no mesmo quarto que ela.

Ele não lembrava de nada depois da parte onde foram escoltados até a cabine. Não se lembrava sequer de ter aberto a porta para entrar. Nada. Um buraco em sua memória escondia de si a coisa mais abominavelmente irônica que já tinha lhe acontecido - e olhe que ele tinha um currículo invejável de situações que se encaixavam nessa descrição.

Não que ele precisasse lembrar, ele conseguia imaginar à perfeição como se deu a desgraça: Eles terminaram por beber aquela maldita garrafa inteira; e ele não ia resistir se ela tentasse na cabine o que tentou naquele baile. Ele sabia que não ia.

E ele era tão desgraçado que nem sequer dessa noite ele teria alguma lembrança.

Mas talvez fosse melhor assim, não? Não lembrar.

Seu polegar mexia na aliança dourada em seu dedo. A manifestação física da farsa que ele vinha levando desde que embarcou. Fingir que ela era sua esposa em uma missão. Desfilarem juntos para encenar uma mentira, ela talvez achando muito bom circular por aí com um homem "rico, fino e bonito".

Quanto de farsa havia nisso, de sua parte?

Não que ele já tivesse imaginado se casar alguma vez na vida, mas… um relacionamento? Estar com alguém de quem se gosta?

"Eu só queria que você olhasse pra mim como olha pra ele."

Não importa o quanto ele fosse mais bonito, mais poderoso, cavaleiro de ouro, não importa. Nunca importou. Ele sabia que ela não olharia. Não podia falar que não sabia - ela lhe deixou muito claro para que ele serviria.

Uma noite. Bêbada. Fechando os olhos e fingindo que ele era Seiya, talvez até gemendo o nome daquele desgraçado enquanto ele estava dentro dela.

"Você não é o japonês de pau pequeno, isso que você quer dizer..."

Trincou os dentes, tentando engolir o bolo em sua garganta que ele sabia que não era da ressaca.

Camus tinha lhe avisado. Não era para ele estar ali. Não era, porque ele sabia. Não entrou nessa enganado. A merda é que ele - mais uma puta vez - avaliou uma situação subestimando os danos que causaria a si mesmo.

As coisas saíram do controle. Eles saíram do controle. Ela… Vá lá, ela não tem muito o que perder, pouca coisa mudaria na sua eterna lamúria pelo Seiya que nunca vai amá-la. Mas ele?

Não queria ter feito isso. Por todos os Deuses, preferia a morte a ter feito isso. Porém, uma parte de si dizia 'mentira' - porque pensava, desejava, fantasiava-a embaixo dele, ou em cima, do jeito que ela quisesse...

Só que não assim.

Não pra ser o puto estepe de um Seiya de Pégaso que jamais a corresponderia. Não para ela esquecer outro cara enquanto ele quem estava lá, presente, querendo que ela olhasse pra ele, prestasse atenção nele.

Ele jamais se prestaria a um papel desse.

'Mentira.'

Seus olhos marejavam, a garganta doía quase ao ponto de ele não respirar. Ele sabia o porquê.

A maldita voz em sua cabeça, a mesma que o instava vez ou outra a entrar em situações temerárias demais para seu próprio bem, insistia como nunca desde que foi confrontada com o teatro de um relacionamento perfeito com a mulher que o personificava em seus sonhos, suas fantasias. Grande parte de sua batalha nesses últimos dias era o esforço em fazê-la calar.

Agora, porém, ela estava insuportável.

'Você aceitaria qualquer coisa que ela lhe desse. Qualquer coisa.

Nem que se despedaçasse por isso depois...'

Não. Ele tinha que parar.

Levantou a duras penas, andou até a cabine dos agentes. Sabia que eles não estariam lá, usou uma fagulha de seu cosmo para abrir a porta sem arrombá-la.

Pegou o telefone satélite, discou um número que sabia de cor.

OOO

Merde…

Isso não eram horas de um telefone tocar em um domingo de folga.

Sua cama estava macia, o quarto escuro e convidativo para que ele dormisse seu soninho reparador até perto de meio-dia. Mas o telefone tocou, tocou e tocou de novo.

Pensou em atender para desligar e tirar o telefone do gancho, mas um aperto (estranho) em seu peito o impediu.

Grunhiu e esticou a mão para atender o telefone por baixo da coberta, com a voz abafada pelo sono.

Do outro lado da linha, nada.

Sentou-se na cama, um tanto alarmado. Ele sabia quem era. E não esperava que ele ligasse.

Se ele estava ligando…

— Milo?

— ...Desculpe, eu te acordei. - A voz dele, baixa e monocórdica, só aumentou sua apreensão. - Eu ligo depois.

— O que aconteceu?

— ...Nada. Só uma ressaca dos infernos e… Ah, deixa quieto. Vou acabar me encrencando se os agentes souberem que eu peguei o telefone deles…

— Espera! Ei, espera. Onde você tá?

— Deixa pra lá, Camus. Deixa pra lá. Depois a gente se fala.

Milo desligou, o sono de Camus tinha ido pelo ralo.

Usualmente, ao acontecer alguma coisa, Milo não demorava a ligar ou aparecer na sua casa (mesmo que na Sibéria) com todo um monólogo (por vezes tedioso) sobre seus problemas. Camus ouvia pacientemente, claro, primeiro porque poucas pessoas o entendiam como Milo. Talvez Shura recentemente entrasse nessa categoria quando o assunto envolvia culpa, mas entendê-lo sem muitos julgamentos, como Milo entendia? Não. Segundo, porque quando ele tinha um problema, Milo era a pessoa mais certeira para se contar - mesmo que isso envolvesse contestar ordens superiores para proteger seu pupilo por debaixo dos panos, como nas batalhas das Doze Casas.

E ele conhecia Milo. Poderia dizer, sem medo de errar, que o conhecia até melhor do que a ele mesmo.

E o Milo que ele conhecia não ligaria para ele estando em missão, na manhã de um domingo, com uma voz de enterro para depois desconversar dizendo que liga depois, que nada aconteceu.

O cacete que nada aconteceu.

Essa palhaçada já estava indo longe demais.

Levantou num pulo, enfiou a primeira roupa que lhe apareceu na frente e saiu porta afora em direção às casas abaixo da sua.

OOO

Raiva. Ela queria ter raiva, sentir raiva.

Raiva de Seiya, por não correspondê-la. Raiva daquela tonta da namorada dele, também. Raiva de Saori, raiva de Shion, os dois a colocaram nessa roubada - Fingir que Milo de Escorpião, dentre todas as pessoas, era seu grande amor da vida.

Milo não era Seiya. Não era ele quem ela amava.

Porque ela amava Seiya. Amava. Claro que amava.

É por isso ela também tinha que sentir raiva dele. Ele viu seu rosto, sim. Isso por si só era uma desonra imensa. Por tanto tempo tentou sentir raiva, ódio até.

Quem ela queria enganar? Ela falhou miseravelmente. Então entendeu que o amava - aquilo tinha que ser amor. E Seiya merecia seu amor! Um homem justo, bom, de coração puro, ele era…

"...Um cara que tem uma namorada há mais de ano, vivendo a vida dele enquanto você alimenta essa palhaçada toda sozinha na sua cabeça", a memória da frase de Geist ressoou em sua consciência. Depois ela lhe dizia que, pelo amor de todos os Deuses, ela tinha que parar de alimentar essa ilusão ridícula que ela chamava de Amor.

Mas não era ilusão! Seiya era um homem forte, bravo guerreiro protetor da deusa, e a tratou com cortesia e respeito quando…

"Isso é o mínimo, sua trouxa." A voz de Geist repetiu de novo em sua mente. "Você está fantasiando um Príncipe num Cavalo Alado por conta de um cara que cumpre com o mínimo dos pré-requisitos para que um relacionamento comece."

Não, Geist estava errada. Seiya era especial, ela sabia que ele era! Mas…

— Ele não me quer - Repetiu suavemente para si, a voz quase se quebrando num soluço. - Nunca vai me querer, eu sei disso…

Era aí que Geist rolava os olhos e dizia, "então larga mão disso e parte pra outra."

Em teoria ela sabia que era o que tinha que fazer, mas na prática? Falar era tão fácil! Por isso ela também sentia raiva, a sentiu por muito tempo.

Raiva do mundo, raiva da vida, raiva da Deusa que resolveu encarnar-se justo na neta mimadinha de um magnata japonês que também amava Seiya.

E raiva de Milo.

Desse Escorpião ranheta e metido, sim, ela tinha motivo de sobra para ter raiva. Como que não tinha?

Depois de tudo o que ele fez nessa missão? Todas as provocações, as indiretas, a contenda verbal? A noite de ontem de que ele dizia não lembrar e ainda tinha a pachorra de dizer que ela é quem devia tê-lo atacado? Pois então. Ela devia estar tiritando de raiva.

Veio a si a memória dela o encarando, os olhos azuis refletindo a luz colorida do palco, tristes como nunca enquanto ele lhe dizia o quão claro ela tinha deixado seu ponto quando esteve no seu quarto, quando lhe deu aquele beijo. Então a memória do beijo, clara, crua e dolorida. Ela estava cega para o que fazia pela raiva que sentia, misturada a uma satisfação estranha de vê-lo à sua mercê.

Desejo.

Também sentiu raiva - uma raiva quase doentia - da mulher que o devorava com os olhos, jocosamente perguntando se ele tinha 'achado sua esposa'. Como sentia raiva - raiva, sim - das molecas que o encaravam como se ele fosse um maldito ídolo de banda de rock. Raiva, e um sentimento de posse que, ao colocar aquele Sheikh-júnior playboyzinho de merda no seu devido lugar, lhe aquecia o peito quando ela disse, com todas as letras, que gostava do seu Milo de graça.

Mais uma vez a raiva lhe veio quando ele desvencilhou-se dela quase fugido para pegar um uísque, porque ela queria os braços dele em volta dela. Queria o cheiro dele perto dela. E queria a boca dele na dela, de novo. Queria mais do que isso, até; por isso sabia que quando ele dizia que ela é quem estava 'cheia de amor pra dar', ele não estava tão errado assim. Mas ela estava bêbada. Bêbada demais para o seu próprio bem, e cansada.

Cansada de ver a felicidade alheia enquanto não se sentia merecedora da sua própria, cansada de implorar por migalhas de atenção e afeto, cansada de amar, amar, amar e…

A raiva que sentia de Milo era estranha.

Uma raiva misturada de posse, culpa, desejo, medo.

Medo de quê?

Não era assim que queria sentir raiva. Queria a raiva fria, a que sempre acreditou que a fazia mais forte.

Essa raiva era uma coisa com a qual ela sabia lidar.

Não esse sentimento de desamparo.

"Nada nunca me deu certo, mesmo."

OOO

Manhã de domingo, e Mu estava - onde mais? - na forja da casa de Áries.

Porque claro que o serviço estava atrasado.

Vida triste essa de único ferreiro da Ordem, Shion bem que podia ajudar-lhe um pouquinho que fosse e…

A peça em que trabalhava - a ombreira da armadura de Leão Menor - misteriosamente desapareceu de suas mãos, puxada não sem rudeza por…

Camus de Aquário?

— Mu, você vem comigo.

— Errrr… Bom dia, Camus! Está tudo bem? Como vai o Hyoga? E do Isaac, tem notícias?

— ...Do que você tá falando?

— Daquela parte de um colóquio onde as pessoas cumprimentam umas às outras; principalmente quando entram em uma casa sem serem anunciadas?

— Eu não tenho tempo pra isso. - Camus revirou os olhos. - Preciso que você me teleporte até onde o Milo está.

— Pra quê?

— Pra trazer ele de volta, óbvio.

— Ah… Não?

— Como assim, não?

— O Milo tá em uma missão com a CIA, você não pode simplesmente aparecer lá e levar ele embora.

— Mu… - Camus fechou os olhos e respirou fundo. - Você é amigo do Milo, não é?

— Sou, exatamente por isso que eu estou dizendo que não dá pra fazer isso que você quer. É do Milo que nós tamos falando.

— O Milo de que nós tamos falando se meteu em uma missão onde ele passa cinquenta dias fingindo que é o apaixonado maridinho da Shina de Cobra. Eu não sei pra você, mas pra mim isso se soletra como rou-ba-da.

— Ué, por quê?

Ah, mon dieu.— Camus franziu a testa, meio que como incrédulo. - É por essas que o Aiolia se enfia na minha casa…

— ...Que bom pra ele. Mas voltando ao meu ponto: Não acho que o Milo precise ser 'resgatado' de uma missão que, até onde sei, está transcorrendo sem intercorrências.

— E você teria razão, se o Bicho não fosse um artrópode teimoso demais pro seu próprio bem. Esqueceu de quem praticamente se matou em Asgard porque achou que ia resolver a parada sozinho?

— Vem cá - Mu franziu os pontinhos lilases acima de seus olhos. - Você sabe que esse assunto é um dos que eu ainda não resolvi contigo, mas um dia eu vou resolver, não sabe?

Camus respirou fundo, apertando os lábios.

— Ok, Mu, eu não queria fazer isso. Eu juro que eu não queria, mas você me obrigou.

Elevou o cosmo, e Mu arregalou os olhos quando entendeu a mensagem empática que o francês enviava.

"Aiolia!"

OOO

— Garoto, o que é que você está fazendo aqui?

Milo não tinha saído da cabine dos agentes - significativamente menor que o deles, afinal era um quarto para os "seguranças".

Sabia que uma hora ele teria que voltar para sua cabine. Sabia que estava precisando desesperadamente de umas horas de sono para curar sua ressaca. Mas não ia ser capaz de se deitar naquela cama que eles dividiam.

— ...Eu preciso de um canto pra eu ficar. - Respondeu em voz baixa. - Pode ser um colchão aqui. Qualquer coisa. Eu não posso mais ficar lá.

— Fora de cogitação, moleque. - O Agente Stan bufou. - Isso pode comprometer o disfarce. Você não tá entendendo que…

— Você que não está entendendo, Stan. - Levantou a cabeça para encarar o outro. - É isso, ou eu desembarco em Jidá.

O Agente Jack deu uma olhada assassina para o outro, que baixou a cabeça fazendo um muxoxo.

— ...Não seria o primeiro casal do mundo a ter uma briga feia em uma lua de mel. - Jack chasqueou a língua. - A gente vai ver o que pode fazer.

Meia hora depois, Jack o informou que - depois de muita insistência e pedidos de discrição em relação à 'intimidade do casal' - conseguiu uma cabine ao lado da deles. E também uns comprimidos para a ressaca.

Trancou-se lá dentro disposto a não sair pelo resto do dia.

Tomou o dobro da dose dos analgésicos, tirou a roupa e se enfiou embaixo do chuveiro quente. Precisava de um banho e a roupa que tinha colocado para sair daquela maldita cabine estava limpa, poderia usá-la de novo, era só não dormir com ela. Depois…

Não queria vê-la de novo nem para pegar mais roupas.

Saiu do chuveiro, penteou os cabelos como dava, teve que usar o pouco de condicionador que tinha nas amostrinhas do hotel. Tomou também um antiemético - sempre infalível na hora de lhe dar sono. Fechou os blecautes da janela pequena até que o quarto ficasse totalmente escuro, ligou o ar condicionado e puxou as cobertas.

A cama cheirava a sabão em pó. Impessoal, seguro...

Ele queria o cheiro dela. Nem que fosse só pra sentir, saber que ela estava lá, e...

Ele precisava parar.

Seus dedos foram até a aliança, ele sentia os olhos arderem enquanto as lágrimas que ele segurou até agora começavam a sair. Tirou-a sentindo o peito doer, deixando-a no criado mudo logo ao seu lado.

Pela primeira vez em muito tempo, deixou que seus soluços o colocassem para dormir.

OOO

— Aiolia, me solta! - Mu gritava. - Sério, se você não me soltar eu te acerto com uma Revolução Estelar!

Aiolia, por sua vez, estava resoluto em levar o ariano até uma área de onde pudessem se teleportar, nem que fosse pelos cabelos.

— Me larga, seu IDIOTA! - Mu deu-lhe um safanão. - Mas quantas vezes eu vou precisar repetir que eu não vou teleportar ninguém pra lugar nenhum?

— Deixa de bestice que você vai. - Aiolia rosnou, Camus deu um risinho de lado.

— Mas o que é que faz vocês dois pensarem que o Milo vai querer sair no meio da missão? E outra, a imbecilidade dos dois aí ainda é capaz de causar um incidente internacional!

— Ai, nossa, incidinti intirnicinil— Aiolia, com uma careta, macaqueava o dizia o outro em falsete. - Agora deixa de conversa mole porque a gente tem que tirar aquele bicho burro de lá.

— E desde quando você se importa desse tanto com o Milo? Não são vocês dois que vivem brigando a torto e a direito?

— Não é que eu me descabele de amores pelo o bicho. Só que eu, ao contrário de certas pessoas— Deu uma olhada furibunda para Camus - não sou um mau colega que deixa aquele artrópode descerebrado se enfiar numa cama de casal com aquela cobra doida.

— Opa, pera lá. - Camus torceu a boca. - Você sabe muito bem que eu não sabia que ele ia fazer uma merde desse tamanho, se eu soubesse eu teria sido o primeiro a trancar o infeliz num armário pra que ele não fosse!

— Ah, jura? - Mu ironizou. - E por que foi mesmo que ele não te contou nada, hein, ô amigão? Será porque você largou ele pra ser preso junto com ela e levar uns dardos de tranquilizantes, ou será que foi por conta da vez que você quase matou ele junto com teu amiguinho de jardim-de-infância?

— Ora vá pra p-

— Mas eu posso saber o que é essa algazarra nas portas de Áries? - A voz autoritária os cortou de pronto, e os três se viram diante de ninguém menos do que o Grande Mestre Shion.

Para a alegria indisfarçável de Mu de Áries, que prontamente se distanciou um pouco dos dois para exclamar:

— Foram eles quem começaram!

— Uau, que adulto da sua parte - Camus torceu a boca num muxoxo. - Agora vai correr pra debaixo da barra da manta do mestre.

— Pense como quiser, mas não deixa de ser verdade. - Mu estreitou os olhos. - Afinal, não sou eu quem quer se teleportar até o local da missão de Milo para tirar o bicho de lá.

— Como? - Shion arregalou os olhos. - De maneira alguma! Pelos deuses, o que vocês tem na cabeça?

— Como assim o que nós temos na cabeça? - Aiolia franziu as sobrancelhas. - Ora, nós estamos arrumando a cagada que você fez!

— ...Perdão? - Shion estreitou os olhos, resquícios de seu cosmo já perceptíveis no ambiente.

— É, ó Grande Mestre, a cagada que você fez. - Camus assentiu, torcendo a boca num muxoxo irônico. - Essa ideia très merveilleux de colocar Shina de Cobra e Milo de Escorpião pra brincar de marido e mulher dentro dum cruzeiro nas arábias.

— Em primeiro lugar... Vocês me tenham respeito. Exijo. - Era visível o esforço que Shion fazia para se conter. - Em segundo… A ideia não foi minha, foi de Atena.

— HAH. - Camus ironizou. - Ideia de Saori Kido, você quer dizer?

— Ela é Atena, Aquário. Sei que respeito às hierarquias nunca foi seu forte, mas até mesmo você lhe deve deferência…

— ...Eu NÃO acredito que você acatou essa loucura! - Aiolia gesticulava. - Você devia ter se oposto, Shion!

— E por quê? - Shion cruzou os braços.

— Como assim, por quê?! - Aiolia quase levou as mãos à cabeça. - Shion, pelo amor dos deuses, você NÃO PODIA ter colocado justamente o Milo numa missão dessas com a Shina!

— E eu ia colocar quem, Leão? O senhorito com sua digníssima, que agora não quer ver sua face pela frente? Ou eu mandava o Milo com a Marin, o que você acharia disso?

— Olha aqui, seu ex-carneiro senil, você deixe a Marin fora disso! - O indicador de Aiolia quase voou nas narinas de Shion. - Pois colocasse qualquer um com a Shina, MENOS o Milo!

— Nisso o gato tem razão. - Camus bufou. - Tá certo que opções femininas te faltavam, mas masculinas? Pelos deuses, o que mais tem aqui é marmanjo apto para substituir o Escorpião.

— Exato! - Aiolia assentiu vigorosamente. - Tipo o Shura-

— ...De jeito nenhum. - Camus fuzilou Leão com o olhar. - Shura de Capricórnio numa missão com uma mulher feito a Shina? Manda logo o Máscara da Morte, se é Guerra dos Mil Dias o que você quer.

— Ele não ia fazer nada, falando que não compensava!

— Você que pensa. - Camus rolou os olhos como se Leão fosse a criatura mais inocente do Reino Animal. - O 'não compensa' dele não ia durar dez dias.

— E quem você sugere, francês?

— Eu podia ir...

— Você? Hah. Hah. Hah. - Mu soltou uma risada irônica.

— Qual é a graça?

— A graça é que furar o olho do bicho é a única coisa que tá faltando no teu kit de amigo-da-onça, e eu duvido que você deixasse passar a oportunidade.

— Ei, esperem aí os três! - Shion interrompeu a charla antes que Camus soltasse um Pó de Diamante em cima do seu pupilo. - Mas do que vocês estão falando?

Os três olharam para o remoçado Grande Mestre, meio que incrédulos. Aiolia abriu a boca para falar, mas foi interrompido por Mu.

— Mestre… - Ele disse, franzindo a testa e apertando os lábios. - Perdoe-me se vou parecer insolente, mas nesta situação Aquário e Leão têm razão. Não que eu concorde com teleporta-los para lá, o que eu acho que apenas vai piorar uma situação que já deve estar ruim, mas… Colocar Escorpião e Ofiúco em uma missão conjunta onde eles fingem ser um casal? Francamente...

— Eu disse que não foi ideia minha, mas de Atena. A propósito… Por mais que não fosse minha escolha inicial, não acho que seja assim tão problemático que-

— Mestre… - Mu respirou fundo. - ...Novamente, perdoe-me o tom, mas… O senhor sabe que Escorpião não é conhecido por ser cortês com a amazona de Cobra, não é?

— Sim, Mu, eu não sou totalmente ignorante dos mexericos da Ordem.

— E… o senhor teria uma ideia do porquê?

— Porque Escorpião é uma pessoa implicante. É amigo de vocês, um dos mais valorosos soldados da Ordem e o melhor Corregedor de que já tive notícia, não discuto, mas ele é implicante.

— ...Certo. Mas ele é mais implicante do que a média com ela, o Senhor há de ter notado isso…

— ...Está querendo dizer que Escorpião nutre sentimentos pela Amazona de Cobra? - Shion franziu o cenho.

Aiolia revirou os olhos como que exclamando um 'finalmente'.

— ...E ela, por sua vez, nutre uma obsessão digna de Atração Fatal por Seiya de Pégaso. E como o cavalo alado tem todo um sex-appeal, ele também é interesse de quem? Saori Kido, a Deusa Atena. - Camus ladeou um sorriso sardônico, como se tivesse explicando o mais óbvio dos fenômenos naturais a um menino de cinco anos. - Que candidamente sugeriu o nome de Milo de Escorpião para acompanhar a amazona de Cobra nesta missão.

Os olhos de Shion passeavam pelos três, que o encaravam num momento de silêncio. Então o lemuriano remoçado fechou seus olhos.

Súbito, Kanon de Gêmeos/Dragão Marinho aparece descendo as escadarias.

— Chamou chamou, Mestre Shion?

— Chamei. Aquário e Leão querem ir resgatar Escorpião de sua missão com Cobra. - Assentiu o Grande Mestre. - Ajuda o Mu a levar esses dois paspalhos para a parte selada das Masmorras do meu Salão.

OOO

O Agente Jack estivera em sua porta, com uns comprimidos para ressaca e uma garrafa térmica de café. Aceitou de bom grado, pois não estava com o menor intuito de sair da cabine para absolutamente nada. Tomou um banho, tomou os comprimidos e graças a isso conseguiu dormir um pouco. Acordou sem fome nenhuma, o relógio do criado-mudo mostrando que a hora do almoço tinha passado faz tempo.

Nem sinal de Milo.

"Jack e Stan devem saber onde ele está", pensou para si mesma. "Uma hora ele vai ter que aparecer..."

Não. Ela não queria nem saber, que se fodesse. Aliás, se ele aparecesse, era capaz dela mesma o colocar para fora.

Ligou a televisão em um canal de filmes. Legendas em árabe, mas conseguia entender bem o inglês falado. E já tinha visto o filme - Um Tira da Pesada - e o odiava com todas as forças. Começou a zapear com o controle remoto, atrás de algo que se aproveitasse para ela matar o tempo, e…

Ela franziu o rosto quando viu o rosto de David Bowie na tela.

O filme era Labirinto.

— Só pode ser sacanagem com a minha cara(1) - Ela disse, desligando a televisão e jogando o controle remoto no colchão.

Tudo que ela não precisava era de um filme que lhe remetesse a ele.

Onde ele estava?

"Não que eu esteja me importando", suspirou para si mesma. Mas não podia negar que a hipótese de que ele estivesse com uma ressaca dessas e fora da cabine, sabe Zeus aonde, não lhe era confortável.

Nem como tomar um banho ele tinha.

Também era provável que não tivesse onde se deitar. Afinal, a cabine de Stan e Jack era bem menor do que aquela. Um deles dois ficaria desacomodado, caso Milo se aboletasse por lá.

E ela duvidava que ele fizesse isso, sendo ele como era.

"Engraçado que ontem essa nobreza toda escorreu pelo ralo na primeira oportunidade", foi o que começou a pensar. Mas teve de se corrigir mentalmente. Era inegável que ontem ele estava tão bêbado quanto ela, se não estivesse mais.

Ela podia não se lembrar do que aconteceu na cabine, mas se lembrava - e bem - deles ouvindo Eurythmics, dele dançando desajeitadamente enquanto a segurava pela cintura. E do jeito como ele a olhava - aqueles malditos olhos desarmados de Escorpião, do jogo, de tudo.

Milo podia ser muita coisa, ela era a primeira a admitir. Ranheta, implicante, imaturo, insuportável. Mas também lhe era muito atraente. Ora diabos, ele seria atraente até para um poste, a outra vagabunda lá era uma prova disso. Nada mais natural que ela se sentisse atraída por ele estando bêbada como estava.

Nesse ponto, não sabia se sua amnésia alcoólica era boa ou ruim. Porque se por um lado não lembrar diminuía sua ressaca moral, por outro… Ela não conseguia parar de imaginá-lo dentro dela, o suor daquele corpo escorregadio em suas mãos, o hálito quente dele em sua boca, os olhos azuis semicerrados enquanto ele ofegava de prazer.

— Pára de pensar nisso - suspirou enquanto se levantava para atender a porta.

Serviço de quarto, trouxeram as roupas que foram pra lavar. Separou as suas para colocar na gaveta, deixou as de Milo em cima da cama.

Mas onde diabos se meteu esse idiota?

— Chega.

Levantou para colocar uma roupa e sair da cabine, precisava dar uma volta.

OOO


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Notas finais do capítulo

(1) - Sideways, capítulo 6.



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