Mentiras Sinceras escrita por Human Being


Capítulo 7
"Assim feito um leão caçando o medo"


Notas iniciais do capítulo

Aviso Legal: Saint Seiya não me pertence, e sim à Toei, Shueisha, Bandai e todo esse povo que não sabe direito o que fazer com eles. Nhé.

Disclaimer: Essa fic é continuação direta do Epílogo de Faro Fino, portanto também ambientada no universo Sui Generis/Sideways (e não vai conter yaoi/shounen-ai). Nela existem vários spoilers de Faro Fino e dos capítulo de Sideways - por isso, antes de começar aqui e se você não tiver lido Faro Fino ou esses capítulos de Sideways... Cola lá e dá uma lidinha, nunca te pedi nada, vai.

E o título do capítulo também vem de Amor, amor (Cazuza/Frejat/George Israel - 1984)



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— Isso é um absurdo, isso é um despautério, isso é uma violência! Esse é o Santuário de Atena, pelos Deuses, é um DISPARATE um abuso de autoridade desse tamanho!

— Aiolia, menos, viu? Bem menos. - Mu bufou. - Você estava querendo interferir no andamento de uma missão, isso é sim passível de detenção pelas leis do Santuário.

— Missão importantíssima, aliás, né? Acompanhar dois agentes da CIA? Ah, pelo amor de Zeus! - Aiolia ironizou. - Diz logo que tá com preguiça de tirar o Bicho da merda, fica mais bonito do que essa palhaçada.

— Mas pera aí - Kanon, sentado na escrivaninha em frente às celas com as pernas cruzadas por cima da mesa, resolveu intervir. - Quem te falou que o Bicho tá na merda? De repente aquele puto tá agora fazendo o que eu devia estar fazendo agora: Tomando umas biritinhas, pegando uma praia, transando pra cacete…

— Ele tá numa missão fingindo que é marido da Shina, Kanon! - Aiolia se impacientou. - Posso te garantir que ele não nem pegando praia, nem transando. E se tá tomando umas biritas isso é problema, não solução!

— Peraí, agora vocês resolveram o quê, virar as duas mães do Bicho? Deixa o homem se virar!

— Seguinte, gente - Camus rolou os olhos, finalmente levantando da bancada de pedra. - Todo prisioneiro tem direito a um telefonema, não tem? Pois bem, eu quero dar meu telefonema.

— Como assim telefonema? Camus, pára de conversa. Ninguém vai dar telefonema nenhum.

— Vou sim, Mu. Tenho direito, quero fazer valer. Pega lá o telefone sem fio.

— Não.

— Eu vou dar o meu telefonema, já disse. Então pare de colocar empecilho.

— Camus - Mu franziu a testa. - Qual a parte de 'você não vai usar o telefone que' você não entend-

— Ah, quer saber? Chega aqui, Camus. - Kanon se levantou em um pulo e foi até a porta da cela com o telefone sem fio na mão. - Dá aí a bosta do teu telefonema.

— Kanon, você ficou maluco? - Mu ficou alarmado. - De jeito nenhum, vai que ele liga pro Milo e-

— Mu, vamos ser realistas. Esse palhaço - Kanon apontou para Aiolia - vai ficar no nosso pé porque tem síndrome do Herói Destemido acha que precisa resgatar o Bicho, que tá 'correndo perigo'. Esse outro aqui - Apontou para Camus. - vai ficar torrando o saco atrás dum puto telefonema pro amiguinho dele porque, vai ver, tá morto de medo de perder o posto pra uma chave de perna da Cobra. Já eu só estou aqui porque o Grande Mestre chamou e eu não sabia pra que era, então eu quero que os dois fiquem o máximo de tempo possível sem falar na minha orelha. Então, se o Camus quiser ligar pro Milo pra falar que deseja que ele não caia em tentação se mantenha puro e casto pra não tomar um toco da Shina depois, por mim tudo bem. Então fala logo com o teu querido.

— Obrigado - Camus fez um meneio rebuscado em agradecimento, para então pegar o telefone e discar um número de cabeça. - Ah, Kanon… Você fala francês, certo?

— Falo, por quê?

— Ótimo, então... Va te faire enculer par une moufette constipée, fils de pute(1).— Camus sorriu candidamente enquanto o telefone chamava e Kanon lhe fechava a cara. -Ah… Alô?

— Ah, não. Mas será possível? - A voz do Agente Stan se fez ouvir do outro lado da linha. - Cê não tem coisa melhor para fazer não?

— Não tenho, Stan. - Camus respondeu. - Cadê o Milo?

— Deve estar dormindo com uma ressaca do cão, porque ontem ele e a benzinho tomaram todas.

— Benzinho? - Camus franziu as sobrancelhas.

— Opa, opa, opa - Kanon apertou o botão do viva voz. - Good afternoon!

— O que você está fazendo, seu idiota? - Camus silvou, estupefato. - Desliga o viva-voz!

— Kanon? - Stan, do outro lado da linha, franziu a testa em desgosto. - Ah, puta que pariu. Primeiro o Ruivinho Comunista, agora você? Eu não fiz nada pra merecer isso.

— Questão de opinião, meu bravo agente ianque. Porque se eu estou aqui, me submetendo a esse suplício de ter que bancar a babá de dois conspiradores que querem interferir em uma missão em solo estrangeiro, é pra ajudar a CIA para que tudo transcorra na mais perfeita paz. - Kanon sorriu, esticando as pernas no birô. - Agora me fala: Benzinho, é? Os dois pombinhos já tão nesses graus de intimidade?

— Intimidade? Hah, quem nos dera. A Benzinho e o Mon amour são os nomes de guerra deles, e guerra é o pé em que eles vivem. Porque ô duas criaturinhas difíceis, vou te contar. - Stan suspirou. - Em vez de aproveitarem a deixa e se divertirem, ficam o tempo todo se bicando.

— Ah, então está tudo na mais perfeita paz. - Mu riu. - Vocês dois estavam se preocupando por nada.

— Ei, a Shina tá chamando o Milo de mon amour? - Kanon abafou um risinho. - Bem que a cobra tem senso de humor, gostei.

— Stan - Camus interrompeu o outro. - Chama o Milo, vai.

— Eu estou tentando. No momento tô na porta dele, batendo pra ver se ele abre e nada. Mas também, depois dos dois secarem uma garrafa de Don Pérignon na cabine…

Don Pérignon? - Camus arregalou os olhos.

— Mas ué, pensei que na Pátria Mãe só tinha aquelas vodcas sebosas, não sabia que também dava pra encontrar esses mimos capitalistas-

— Espera aí. - Kanon se segurava para não rir enquanto interrompia o Agente. - Quer dizer que o nosso intrépido artrópode deu conta de levar o benzinho para o quarto com uma garrafa de Don Pérignon? Ih, francês, já era.

Camus e Aiolia trocaram olhares apreensivos.

— Ah, quer saber? Não tenho que explicar é nada. Deixem o menino em paz, que a vida dele tá muito é boa por aqui. Agora… Kanon?

— Diga, agente.

— O que vocês estão fazendo com os… conspiradores?

— Ah - Kanon olhou para Camus e Aiolia, que lhe devolveram um olhar duro e desafiador. - No momento, eles estão detidos no Salão do Grande Mestre.

— E vocês não vão poder nos manter aqui até o fim da missão - Aiolia disse, sardônico.

— Pois muito bem. - O Agente Stan disse do outro lado da linha. - Camus?

— Diga.

— Se eu ver a sua cara aqui, ou a de qualquer outro cavaleiro… Eu digo para a KGB onde você está.

Aiolia olhou de esguelha para Aquário, que agora tinha no rosto a expressão mais apreensiva que já vira nele.

OOO

As batidas na sua porta o acordaram, mas Milo se recusou a levantar da cama para atender o Agente Stan - reconheceu-o pela voz do lado de fora, ele falava com alguém no telefone.

Não estava com saco para que ele o arrastasse de volta para seu papel naquele teatro de merda, não estava com saco para mais nada.

Sentou-se na cama, olhando para a roupa que colocaria de volta. Sua cabeça pesada, seu estômago embrulhado, sua falta de saco… Nada mudaria a realidade de que ele tinha que voltar para aquela cabine - nem que fosse para pegar suas roupas e trazê-las para cá.

— Então é melhor fazer isso logo - Murmurou enquanto se vestia.

Andou até sua cabine sem a menor pressa de chegar, ensaiando em sua cabeça o que diria a ela assim que entrasse lá. Pensava em dizer que ela se danasse, que a queria longe, pensava em dar-lhe uma indireta daquelas bem diretas, soltar uma ofensa até, mas… Pensava, acima de tudo, em não dizer nada. Porque se ele abrisse a boca para falar, ele sabia o que poderia acabar saindo.

Você não tinha o direito de fazer isso comigo.

Mas ela estava bêbada, tão bêbada que não se lembrava, não foi por querer que ela fez isso, nem ele. Aconteceu. Simplesmente aconteceu. O beijo, porém… Ali, não. Foi deliberado.

"Mas ela tentou pedir desculpas", ouviu sua consciência lhe dizer. Umas desculpas de merda, mas tentou.

E ele fez questão de não desculpá-la. Não porque achou que ela não estava sendo sincera, ou só estivesse fazendo isso por terem calhado de cair juntos numa missão como essa. Ele sabia que não a desculpou simplesmente porque isso não o faria sentir-se melhor.

Abriu a porta da cabine, e pelo menos uma vez na vida a sorte lhe sorriu - ela não estava lá.

Foi até seu armário, separou algumas roupas. Ao fechar o armário, viu as roupas que tinha mandado para a lavanderia separadas em cima da cama.

Ela tinha separado as roupas para ele?

Suspirou, colocando-as dentro de sua mochila. Agora podia sair dali, e… Merda. Tinha esquecido de pegar suas coisas do banheiro.

Entrou no banheiro para pegar seu xampu, condicionador, sabonete. Olhou de relance para a pia, sua escova de dentes em cima da bancada, sua boca com o gosto amargo da ressaca - não tinha escova de dente na cabine onde ele ficava.

Ligou a torneira para escovar os dentes, não gastaria mais do que cinco minutos nisso.

Quando saiu de lá, ela estava em pé no quarto, olhando para ele.

— Eu vim pegar algumas coisas - Disse com uma voz apagada enquanto andava até a porta, evitando-lhe o olhar. - Eu já estou saindo.

— Milo.

O seu nome na voz dela fez com que ele parasse, os dedos na maçaneta da porta.

— ...É uma tragédia assim tão grande para você, ter dormido comigo?

— É. - Engoliu em seco, sentindo o peito apertar. Sua mão não saiu da maçaneta.

— Engraçado você falar como se eu tivesse feito isso sozinha.

— Engraçado é você achar que eu estou me comportando feito um moleque birrento. - Não teve coragem de levantar os olhos para ver o rosto dela no silêncio que se seguiu. - Não é isso que você está achando?

— Você não está facilitando as coisas, está?

— Facilitando as coisas... - Repetiu, sua voz deveria ter saído irônica mas só conseguiu um tom amargurado. - Tipo, entender que essa foi só uma noite da qual nenhum de nós dois se lembra, aconteceu, culpa do álcool e tal. Dar de ombros, bola pra frente, seguir com a missão, sermos profissionais, certo?

Ela não respondeu, o que para ele era péssimo. Porque a mágoa agora lhe saía aos borbotões, prensando sua garganta e se fazendo em palavras que ele não conseguiria mais segurar.

— ...Faz o seguinte: Imagina que você deu pro teu querido Seiya, bêbada demais pra pensar melhor no que tá fazendo. Aí ele vem e te faz uma pergunta cretina que nem essa. - Sua voz, baixa e quebrada, mal lhe era reconhecível. - Coloca isso como se não fosse nada demais, como um acidente, uma brincadeira.

— Eu não disse isso! Ontem, eu-

— Ontem você tava bêbada, carente, com um cara que não é o teu amado Pégaso mas ia dar pro gasto.

— Não é bem assim.

— Você sabe que é, não precisa florear a verdade pra não me magoar.

— Você realmente acha que eu sou esse tipo de pessoa?

— Como não? Você já fez coisa pior. - Engoliu o aperto em sua garganta. - Quando se empenhou tanto em me ensinar quem é que brinca com quem. E sabe do que mais? Você tá certa. Eu devia ter aprendido.

— Espera! - Girou a maçaneta, a mão dela agarrou seu braço. - Espera, Milo-

— Me solta. - Ele murmurou, os olhos ardendo mas ele não ia chorar. Não de novo. - Me deixa sair.

— Eu não estava brincando ontem. - A mão dela diminuiu a pressão em seu braço. - Nem naquele dia, eu estava brincando.

— Não foi isso que você me disse antes, e naquele dia sim você estava sóbria.

— Eu tava com raiva! - Ela o virou de costas para a porta num tranco. - Você estava usando um bando de meninas pra fazer ciúmes pra mim! Você mesmo disse! Isso não é jogar comigo? Isso não é brincar comigo?

— Como assim, eu brincar com você?

— Não se faça de doido. Esse é o jogo de sedução mais barato que existe, bancar o fodão pra ganhar a moça que não te quer!

— Ah, é? Nesse caso, qual é o grande problema? O que diabos eu tanto te fiz de errado se eu realmente fui lá pra você ver que tem quem me queira? Vai dizer o quê, que tá com ciúmes?

— Não é esse o objetivo do teu joguinho?

— Por quê? Funcionou? Era por isso que você tava toda amorosa comigo ontem? Pra você não perder 'território' enquanto se arrasta atrás do Seiya?

— Eu não tô falando do Seiya! - Ela retrucou. - Eu estou falando de você!

— Falando o quê de mim? - Devolveu o olhar dela. - Não fui eu quem te agarrou pra te dar um beijo porque ouviu da minha boca o que você conseguiu arrancar.

— Eu nunca usei ninguém pra te fazer ciuminho e tentar te seduzir!

— Ah, não? E o que você tava tentando fazer ontem? Não era me manter na sua cola? Teu 'plano de contingência' na tua eterna luta pelo coração do teu precioso franguinho de bronze? Ou era só uma trepadinha básica enquanto você fantasiava com o Seiya?

— Seu nojento - O dedo dela voou na sua cara. - Eu NUNCA pensei nisso com o Seiya!

— Ah, não? A pura donzela virginal aí nunca pensou em dar pro amor da vida dela? Faz-me rir! - Ironizou. - Shina, pelo amor dos deuses, você agora vai querer pagar de recatadinha? Pois fique sabendo que, pra uma moça tão inocente, você beija muito é bem!

— Não, eu não vou pagar de inocente porque nunca tive essa pretensão na minha vida. Eu só não sou uma pessoa baixa que nem você, seu bicho imundo!

— Você tem pelo menos a consciência de que você não tem a mínima moral pra me chamar de baixo, de imundo?

— Do que você tá falando?

— Como assim do que eu tô falando? O bicho é imundo, o bicho é baixo, mas na hora de dar uma ele serve? Ele não é o japonês de pau pequeno, mas nessas horas é só fechar os olhinhos e pensar no cara que tá tudo certo, o pau ser maior até ajuda? Você tem noção do quanto é humilhante isso ter acontecido justo com você? Você SABE o que você é pra mim, você sabe porque você me forçou a falar quando eu não podia me defender, e ainda teve a coragem de usar isso contra mim! Não contente, ainda foi pra cama comigo pensando naquele puto!

— Eu jamais transaria com você pensando em outro cara, muito menos pensando nele!

— E você realmente espera que eu acredite? Você me acha idiota a esse ponto de comprar essa ideia estúpida de que você é capaz de ter tesão em mim, mas não no teu tão precioso Seiya?

— FODA-SE O SEIYA! - O berro dela o cortou. - Você acha que pra mim tá fácil estar aqui justo com você, dormindo e acordando do teu lado, sentindo o teu cheiro o dia inteiro? Você acha que eu consigo pensar em outra pessoa? Não tem espelho na porra da tua casa? Você SABE que aquelas bichetes te encarando me irritam, tanto você sabia que FOI LÁ SE MOSTRAR PRA EU VER! Porque você SABE o quanto você mexe comigo e EU NÃO TENHO CULPA DO QUE VOCÊ TÁ FAZENDO COM A MINHA CABEÇA!

Milo já estava com os berros preparados em sua garganta, mas teve que engoli-los porque as batidas na porta e a voz do agente Jack, falando inglês, interrompeu o que gritavam em grego.

O que deu a ele o tempo de tentar pensar antes de agir - e os deuses sabiam o quanto ele nunca foi bom nisso.

"Você se ferra porque não sabe a hora de parar."

Enquanto Shina o encarava calada, o rosto pálido e apreensivo, ele se virou para girar a maldita maçaneta e sair daquele quarto de uma vez.

OOO

A gritaria de agora há pouco a fez tomar outro analgésico, mas não a impedia de pensar no que tinha falado para ele.

Dizer para Milo que ele mexia com ela a ponto dela perder a cabeça daquele jeito? Como diabos ela conseguia ser tão estúpida?

Mas ele a tinha provocado. Claro que tinha. Insinuar que ela teria ido pra cama com ele pensando em Seiya? Que baixeza. Que vileza. Porque claro que ela não seria capaz de fazer isso, pensar desse jeito no Seiya e…

"A pura donzela virginal nunca pensou em dar pro amor da sua vida?"

Não, ela não pensou. Claro que não! Isso era…

Sujo? Errado? Repugnante?

Não.

Ela realmente não pensava em Seiya assim. Não se imaginava sequer o beijando, que dirá...

Não que ela fosse virgem. Ela até que falou muito sério quando disse ao Milo que nunca tivera a pretensão de ser tão pura e virgem quando a Deusa que deveriam servir - muito pelo contrário! Ela achava isso ridículo. Ridículo, retrógrado, hipócrita até. Aliás, verdade seja dita, era capaz de apostar que a própria deusa, em sua encarnação atual, dificilmente se privava dos prazeres da carne na companhia daquele pedaço de mau caminho que era o Julian Solo, e que se danasse o seu tão amado Seiya de Pégaso…

...Ou então ela era outra que se iludia atrás de uma ilusão de príncipe encantado enquanto se bicava com um cara que, para qualquer mortal, seria a perfeita encarnação de um.

"Você não se ilude pelo Seiya em si, você se ilude pelo Seiya que você criou na sua cabeça", Geist vivia lhe dizendo e ela a chamava de doida, dizia que não tinha tempo para suas psicologias de boteco. Mas se ela estava assim tão errada...

Por que ela nunca tentara seduzi-lo? Sua resposta para isso, 'ela não pensava nele assim', lhe parecia agora ridiculamente… pueril. Ela não era mais criança para 'não pensar em caras assim'. Deuses, já pensara em tantos assim!

Ela pensava em Milo assim. Vinha pensando nele exatamente assim há um bom tempo, já. Desse jeito, e de outros mais desde o dia em lhe roubou um beijo em seu quarto, desde antes até. Desde o primeiro dia em que viu o que havia por trás do Escorpião Celeste, o Soldado-Modelo, o perfeito e irritante corregedor das tropas, ela viu… Ela gostou do que ela viu, ela queria aquilo para si, e ela - bem lá no fundo - de certa forma sabia que aquilo lhe era possível.

Mas aí ela tinha… medo. Um medo quase irracional.

E voltava a pensar em Seiya, seu 'fantástico-Pégaso-de-mentira'. Um príncipe encantando de contos-de-fada para crianças, e ela não era mais criança.

Então por que querer coisas de criança? Por que se esconder atrás de uma ilusão que ela sabia, bem lá no fundo, o quanto era infantil?

"Porque ela é segura", pensou a destemida líder das amazonas do Santuário, ex-chefe de Guarda, ex-líder dos Cavaleiros de Prata.

Presa na segurança de uma ilusão de amor impossível que a protegia de ser rejeitada na realidade. A mesma segurança onde ela nunca teria os braços de Milo em volta dela, nunca veria aqueles olhos azuis e desarmados porque olhavam só para ela, onde 'meu benzinho' seria sempre uma interjeição a machucá-la, nunca uma demonstração genuína de… afeto.

Seiya amava Miho. Saori tinha Julian. E ela também queria amar de verdade, queria ser amada.

Ela não queria que sua vida sentimental se resumisse a se esconder de todos atrás de uma ilusão, algo que jamais poderia ser. Mas ela tinha medo de ser machucada, já estava tão machucada por si só, de tanto…

"...Criar uma ilusão na sua cabeça para ir se machucando aos pouquinhos, por medo de tentar pra valer e se machucar de verdade."

Não foi a voz de Geist na sua cabeça, foi a sua própria quem lhe disse isso em pensamento.

Milo sequer podia continuar se escondendo dela como ela se escondia do mundo, ela mesma o arrancou de sua toca, o forçou a falar.

"Você sabe o que você é para mim".

Ela fizera isso para humilhá-lo, para confrontá-lo.

"Um dia", essa voz lhe dizia, "um dia a 'meu benzinho' será uma mulher de verdade. Uma outra que terá a coragem que você não teve, que assumirá o risco do qual você tanto se pela de medo…"

— Eu estraguei essa chance - Ela murmurou para si mesma. - Ele mesmo disse o quanto é humilhante para ele que…

Sentiu a garganta travar, apertada e ardida.

Quando ela tentou se desculpar, ele não aceitou - claro que não aceitaria, ela mesma não aceitaria no lugar dele.

Sua máscara nunca lhe fez tanta falta.

Mas se tinha alguém que merecia vê-la sem ela, despida de seu orgulho, com todas as feridas que ela mesma se infligiu… era ele. Não para ganhá-lo ou algo parecido, mas porque ela sabia que ela era o Seiya dele. Ela podia libertá-lo de sua ilusão, mostrar a ele quem ela realmente era.

Seiya fez isso por ela há tempos atrás; ela é quem foi insistente e se recusou a aceitar.

Saiu porta afora e foi até a cabine dos agentes. Ela tinha ouvido por alto que Jack tinha conseguido alugar a cabine ao lado, depois tinha visto o agente Stan batendo na porta da última cabine do corredor deles. Ele devia estar lá. E se não, lhe seria fácil achá-lo.

Conseguia sentir que ele estava ali. Ele também conseguia, portanto.

Abriu a porta e deu de cara com ele sentado na cama, encarando-a como se não acreditasse que ela tivesse tido a coragem de vir até ali.

— Desculpa ter vindo até aqui, eu…

— Se eu me dei ao trabalho de arrumar esse lugar pra ficar, é porque eu não quero falar com você. - Ele disse, com a voz mais calma e pausada que conseguiu. - Eu acho que a gente já falou um pro outro tudo que tinha pra se falar.

— Você não precisa falar nada… - Sua voz estava mais hesitante do que antes. - Eu só te peço que me escute. Cinco minutos, eu não estou pedindo muito. Depois eu prometo que eu vou embora.

Ele não disse nada e ela não teve coragem de encará-lo, a dureza de seus olhos azuis provavelmente a empurrariam porta afora.

— ...Eu sei que eu não tenho o direito de te pedir que me escute. Muito menos que me perdoe, mas… - Respirou fundo para tentar diminuir o tremor em sua voz. - ...Eu só queria que você me ouvisse dizer que eu me arrependo. Eu me arrependo muito de... ter usado seus sentimentos contra você.

— Essa merda deu errado já da primeira vez que você tentou, agora você vem até aqui pra tentar de novo? - Ele a cortou. - Pelos deuses, tenha paciência. Se é isso que você veio aqui pra me dizer, pode ir pegando o caminho da-

— Não, não é a mesma coisa. Eu… - Engoliu em seco. - Eu não tava mentindo quando eu disse que eu tava com raiva. Nem quando eu disse que você mexe comigo. E também não tava mentindo quando eu disse que te ver com outras meninas, outras mulheres, me incomoda. Muito. E eu sei que não tenho o menor direito de me sentir com raiva, nem incomodada, por isso… Eu não podia ter feito o que eu te fiz.

Shina mordeu os lábios, se virando devagar para encará-lo. Seu rosto impassível, os olhos azuis duros como nunca.

Ela sabia que enfrentaria a fúria de Milo. Não do Escorpião Celeste, o Guerreiro Dourado que era uns dos orgulhos do Santuário; mas do Milo que havia por trás do cavaleiro de ouro.

Esse era ainda mais perigoso. Agora ela sabia.

— Você pode não se lembrar do que aconteceu ontem. Eu também não. Mas você se lembra do que aconteceu no dia da delegacia. - Shina disse, tentando firmar a voz. - Eu também me lembro. O que não me é nenhuma fonte de satisfação, se é o que você pensa que eu estou pensando. Eu sei o que eu te fiz. Eu, de todas as pessoas, não tinha o direito de fazer isso porque eu entendo, eu entendo…

As coisas que ela entendia agora. O seu medo a fazendo se esconder atrás de uma ilusão de homem perfeito que ela insistia em chamar de Seiya - dura, dolorida; mas muito mais confortável do que tirar sua máscara e se arriscar numa chance real para ser novamente rejeitada. Entendia como ela, segura na dor que já conhecia, se fechou para o que estava diante do seu nariz. Foi uma sequência de eventos regidas pelo Destino, ou seja lá o que isso seja, que praticamente lhe jogou na cara a chance real que ela simplesmente não queria ver.

— ...A Geist sempre me disse que eu amava uma criatura que só existia na minha cabeça, que o próprio Seiya jamais seria o Seiya que eu amava, por isso que ele me era uma decepção atrás da outra. Aí tinha você, e… Eu pensava em você. Muito. Não porque eu sabia que você estava interessado em mim, mas porque o que eu sentia por você era diferente. Era mais real. Porque eu vi você. Eu vi através do Milo que você mostra pros outros. - Ela murmurou, com a voz pesada e vacilante. - Mesmo antes de eu te fazer falar eu sabia o que eu tinha visto, e sabia que você sabia. Não que eu achasse que você fosse se interessar por mim, mas eu sabia que isso não era uma coisa que você tivesse mostrado a outras pessoas. De certa forma, eu acho que era isso que irritava quando aquelas meninas ficavam te encarando, era como se elas não pudessem ver o que eu via, como se aquilo fosse… meu. E eu tive… Medo. É. Medo. O que uma cobra assustada faz quando é tirada de sua toca? Ataca. Foi o que eu fiz. Foi um dos meus erros, mas o que eu mais me arrependo. Mais até do que ter dormido com você ontem, mais até do que não lembrar de ter passado uma noite contigo...

Virou-se porque previa que a qualquer momento as lágrimas pulariam de seu rosto.

— Não que isso tudo que eu falei vá mudar alguma coisa. Eu sei que, no fundo, não muda nada. Aliás, você não tem nada com isso. E eu também tava errada quando eu disse que eu não tenho culpa do que você faz com a minha cabeça, eu… Eu sei que a responsabilidade de foder assim com minha cabeça é toda minha, não sua. Mas eu só queria que você soubesse que… - Ela inspirava e expirava para manter os soluços longe da sua voz. - ...Se eu pudesse voltar no tempo, eu faria diferente… Eu faria tudo diferente.

Sua garganta agora doía pelo esforço de ter que segurar o choro. As coisas que ela entendia; as coisas que agora - só agora - ela via. Agora tudo que ela gostaria era ter a capacidade de fazê-lo entender, palavras mágicas que o fizessem perdoar, esquecer, dizer que ela que esperasse, ficasse ali, mas não. Agora era a hora que ele a enxotaria dali, e ela não podia dizer que não contava com isso. Só não imaginou que fosse doer tanto…

— Faria tudo diferente, Shina?...

Ele repetiu o que ela disse, a voz baixa e pausada. Olhou-o de soslaio, ele ainda sentado na cama, cabeça baixa, sem olhá-la nos olhos.

— ...Então faz.

OOO

( ͡° ͜ʖ ͡°)


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Notas finais do capítulo

(1) - Minha nossa senhora, como a boca do Camus tá suja. Esse é um dos mais cabeludos xingamentos da língua francesa, absolutamente impublicável. HAHAHAHAHA.



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