Mentiras Sinceras escrita por Human Being


Capítulo 5
"Faz parte do meu show"


Notas iniciais do capítulo

Aviso Legal: Saint Seiya não me pertence, e sim à Toei, Shueisha, Bandai e todo esse povo que não sabe direito o que fazer com eles. Nhé.

Disclaimer: Essa fic é continuação direta do Epílogo de Faro Fino, portanto também ambientada no universo Sui Generis/Sideways (e não vai conter yaoi/shounen-ai). Nela existem vários spoilers de Faro Fino e dos capítulo de Sideways - por isso, antes de começar aqui e se você não tiver lido Faro Fino ou esses capítulos de Sideways... Cola lá e dá uma lidinha, nunca te pedi nada, vai.

E o título desse capítulo vem de, obviamente, Faz parte do meu show (Cazuza, 1988)



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— Ei, garoto!

A voz irritante de Stan o interrompeu em sua corrida. O agente tinha uma das mãos na cintura, a outra segurando um trambolho que devia ser o telefone satélite da CIA disfarçado de um Motorola Dyna TAC(1).

Franziu as sobrancelhas, e foi até o agente para então acompanhá-lo até uma área com menos gente em volta.

— Olha, na boa.. - O agente meneou a cabeça. - Eu até que quis insistir com o Jack que você não era um caso assim tão perdido, mas me ajuda a te ajudar, cara.

— Do que é que você está falando?

— Desse outro caso perdido, aqui. - Em resposta ao seu bufido, Stan lhe entregou o comunicador nas mãos. - O puto achou esse número sei lá eu como, agora tá perturbando o meu juízo porque quer falar contigo à fina força. Então dispensa logo esse infeliz.

Milo deu de ombros enquanto Stan se afastava, depois devolveria o diabo do telefone.

Dites-leur que je vais geler ce fils de pute.(2)

— Camus? - Arregalou os olhos. - Como você conseguiu…

— ...Achar esse número? Deu o que fazer, isso foi verdade. Mas nada que um pouco de insistência -e de chantagem- não resolvam.

— E o que te aconteceu, pra você se atacar desse jeito pra ligar pra mim?

— Isso, eu esperava que você me falasse, já que pelo jeito você casou e nem me chamou pra padrinho. - Camus bufou. - Falando sério, agora. O que te deu pra você se enfiar aí numa missão pra bancar o maridinho da Shina? Ficou doido de vez?

— Eu não acredito. - Milo rolou os olhos. - Sério que você teve todo o trabalho de achar a frequência da CIA pra me perguntar isso? Desse jeito eu vou acabar achando que você tá é com ciúmes.

— É, nossa, tô morrendo. - Mesmo com a interferência do rádio, a ironia na voz de Aquário era patente. - Agora vamos falar sério?

— Eu estou falando sério.

— Então me responde, que ideia fantástica foi essa que você teve? Não, porque bem que eu sei que você é chegado em umas ideias que podem ser facilmente consideradas suicidas, mas nesse nível?

— Vai me falar que você acha que a Shina pode me colocar em perigo?

— Não se faz de besta, que você sabe do que eu tô falando.

— Não, não sei. - Milo endureceu as costas. - Olha, Camus, isso aqui é uma missão. Nada mais, nada menos. Então realmente não sei o porquê dessa sua preocupação repentina.

— Milo - Camus suspirou. - Olha, eu não sei o que tá acontecendo. Sério, não sei, você mal tem falado comigo desde o incidente da delegacia. Mas eu sei que aconteceu alguma coisa. Então, se você não quer falar pra mim, beleza. Respeito. Só que daí a você se enfiar dentro de um quarto de casal junto com a Shina pra fingir que é marido dela?

— E o que tem isso? - O cavaleiro de Escorpião rilhou os dentes. - É uma missão, Camus, como qualquer outra.

— ...Como qualquer outra? - Camus parecia perplexo. - Você só pode estar brincando.

— Aliás, por que tanta consideração comigo agora? Na hora de eu ser preso junto com a mulher que pelo visto é perigosa demais pra estar comigo numa missão, não me lembro de te ver tão preocupado.

Mon dieu de la France, donne moi la patience(2)…— Ouviu um suspiro resignado do outro lado, sabia que tinha pesado a mão. Mas também não era como se Camus não merecesse.

— Não precisa ter paciência, Camus. Pode ficar tranquilo, tudo está sob o mais perfeito controle.

— ...Sob o mais perfeito controle. - O cavaleiro da décima primeira casa repetiu vagarosamente.

— Sim, isso mesmo. Sob o mais. perfeito. controle. Inclusive, ó, tenho que te falar: Nunca vim pra uma missão tão bacana. Festa com uísque vinte e quatro anos, vinho de duzentos dólares a garrafa… Inclusive hoje à noite vai ter um baile de gala em que vão tocar Simple Minds e Eurythmics. Tá bom pra vocês aí?

— ...Eurythmics? - Camus deixou escapar um risinho incrédulo. - Ma Athenée merci, o Afrodite vai ter uma crise nervosa se souber que você ocupou o mesmo espaço físico que a Annie Lennox!... Ouviu essa, aí?

— Ué, quem que tá aí com você? - Milo ouvia a voz de alguém ao fundo.

— O Aiolia. Acredite se quiser, mas agora ele deu de achar que eu sou a opção que ele tem pra ser o amigo de fé dele enquanto ele passa essa 'crise' com a Marin. O que te mostra com precisão quão triste anda minha sorte.

— ...Ah é? - Milo retorquiu, irritadíssimo. - Pois avisa essa bichana que se eu tô nesse enrosco aqui, é por culpa dele!

— ...Mas ué, aí não tava tão bom?

— Ah, quer saber? Tchau, Camus. Nem sei porque eu tô aqui ainda perdendo meu precioso tempo. Te diverte aí com teu novo amigão do peito; só avisa ele pra não ser preso nem te encontrar com algum dos teus amiguinhos de infância de Asgard. Porque aí essa amizade tão bonita vai acabar é cedo.

— Ei, espera, vá, é sério. - Camus o interrompeu antes que ele lhe batesse o telefone na cara. - Pensa direito no que tá fazendo, você não precisa passar por isso. Não era pra você estar aí, porque você sabe que ela… Enfim, você sabe.

— Sei. Sei bem até demais.

— Como assim?

— ...Tchau, Camus.

Desta vez sim, desligou o telefone na cara do amigo.

Da boca dele, Camus não ouviu nada do acontecido na Delegacia e muito menos do que aconteceu no seu quarto. Aliás, disso ninguém sabia. Não queria a pena e a comiseração de ninguém. Muito menos do Camus, que na hora do 'vamos ver' tomou um chá de sumiço.

"Mas ele não tinha como saber que da delegacia a coisa ia degringolar daquele jeito", sua consciência argumentou para si próprio.

Que se dane.

Estava de saco cheio de ser justo e bom com todo mundo e só tomar na cabeça em troca.

OOO

Camus suspirou enquanto colocava o telefone de volta no gancho.

— Deixa eu adivinhar - Disse um Aiolia aboletado em seu sofá. - O bicho te mandou catar coquinho porque, segundo ele, tá tudo "sob o mais perfeito controle".

Voltou os olhos para o cavaleiro da Quinta Casa, desgostoso de ver que Aiolia estava fazendo exatamente o que Milo fazia quando se sentava nesse sofá - se enrolar até os cabelinhos da franja na manta que o cobria para prevenir sujeiras porque 'aquilo era um freezer, não era uma casa'.

— Muito perceptivo. - Bufou, colocando o comunicador na mesa. - ...Isso vai acabar mal, tô te falando.

— Ele também não disse nada sobre o dia da delegacia, certo?

— Disso eu já sabia que ele não ia falar.

— Mas que aconteceu alguma coisa, aconteceu. Eu te disse isso. Ela tava estranhíssima quando saiu de lá, ele tava pior ainda quando acordou. - Aiolia retorquiu. - Eu achei que ele ia me botar pra fora, mas nem isso ele fez...

— A propósito, ele mandou te dizer que tá nessa por tua causa.

— Nossa, realmente, está tudo correndo dentro dos meus planos. - Aiolia retorquiu. - Estou felicíssimo.

— Nem vem, que foi vacilo seu mesmo. Tudo bem que a gente sabe que não chegou a acontecer nada, mas pelo menos você podia ter dado um telefonema pra Marin, non?

— E eu ia ligar pra dizer o quê? "Amor, eu tô de volta mas não tô exatamente vivo, e tem uma crise com uma árvore mágica aqui pra desenrolar"? Tenha dó. Aliás, sobre o assunto "Asgard" você é um dos únicos que não pode abrir a boca pra falar a palavra 'vacilo'.

Camus rolou os olhos enquanto se servia de uma dose de vodca.

— ...Aí, cara, não sou tua mãe nem nada, mas já é a segunda...

Realmente esperava que seu olhar (gelado) fosse a deixa para que o Leão calasse a boca, mas resolveu reforçar a indireta ao virar a dose de um gole só e se servir da terceira.

— …O Milo, quando vem aqui, também bebe desse jeito?

— Você sabe que não. - Camus agora bebericava a dose vagarosamente. - Ele é um pé no saco que nem você.

OOO

— Pronto, darling, você está linda. Digna de seu sangue azul!

Shina estava sentada na cadeira do Salão de Beleza (sim, porque o cruzeiro tinha até um Salão de Beleza lá dentro!), vendo o cabeleireiro dar os últimos retoques no seu penteado.

Hoje era o grande dia do tal baile de Gala, e tanto ela como Milo passaram dias escutando dos dois agentes que tudo, tudo teria que estar perfeito. 'Today is the day', ambos repetiam incansavelmente enquanto diziam que ela só podia estar louca de dizer para eles que era perfeitamente capaz de se arrumar sozinha para um evento, e sem muita cerimônia a despacharam para o Salão dizendo que 'saísse de lá pronta para um maldito Red Carpet'.

Olhando no espelho do salão, tendo que reconhecer que o coiffeur — como ele tinha se apresentado - tinha feito um trabalho de artista. Mas não só ele: Ela podia dizer com cem por cento de certeza que jamais vestiria novamente um vestido desses - um longo de cetim de seda vinho bordado com pedrarias e decote de um ombro só que devia ter custado os olhos da cara mesmo para a CIA.

Não que não estivesse gostando, mas…

Ainda lhe era estranho se ver assim.

Agradeceu o cabeleireiro e desceu até o encontro de Milo e dos agentes. Eles os acompanhariam até o baile, de onde sairiam em seguida para interceptar a operação que, eles sabiam, estava prestes a acontecer. Então era trabalho dela e de Milo desempenharem seus papéis à perfeição, atrair a atenção para si próprios e dar a eles o espaço necessário para trabalhar.

Vai ver, era por isso que ela estava se sentindo tão nervosa.

Não que ela acreditasse que Milo colocasse tudo a perder, como acreditou ser possível logo que chegaram. Mas desde que foram expressamente repreendidos pela pancadaria verbal entre eles, tanto ele como ela estavam se segurando e mantendo uma 'trégua' das provocações. A sensação que tinha é que ela estava melhor quando eles brigavam por debaixo dos panos feito gato e rato. Pelo menos aí ela teria motivo para ter raiva dele.

Como sempre, lá estava ela pensando no que não devia na hora em que devia se concentrar no que realmente deveria fazer.

E lá estavam os agentes e Milo, altivo como nunca num fraque formal, os cabelos ajeitados num rabo de cavalo baixo e a franja ajeitada de lado para formar um topete. E bonito - muito bonito.

O que as 'bichetes' não dariam para vê-lo vestido assim, como um príncipe encantado de um conto de fadas.

"Tudo mentira", pensou para si própria. Ela não podia esquecer.

— Vamos, meu benzinho? - Ele sorriu oferecendo-lhe o braço.

A máscara de 'marido perfeito' firme em seu rosto, os olhos azuis absolutamente impessoais.

— Vamos, mon amour.

Andaram galantemente até o Salão de Festas - decorado como um opulento sonho de branco e dourado - para então serem recepcionados por Mohammed Al-Rifai e esposa.

— Vossas Excelências, sejam bem-vindos. - A esposa do magnata, vestida à ocidental, fez um meneio em sua direção. - Pedirei que o mestre de cerimônias os conduzam até suas mesas. Mas antes, cá entre nós… - Ela se aproximou para lhe segredar algo enquanto seu marido recebia outros convidados. - Tenho que parabenizá-los, vossas excelências são com folga o casal mais bonito desta noite.

— Obrigada - Ela sorriu, também evitando que Milo percebesse do que falavam.

Ao chegar na mesa, Milo lhe puxou uma cadeira para então se sentar ao seu lado e observar o movimento no salão com um olhar distraído; os dedos da mão direita dele entrelaçados nos seus.

— A gente precisa… conversar.

— Sobre? - Ele voltou o rosto na sua direção.

— ...Só pra parecer que a gente tá conversando.

— Ah. - Ele meneou a cabeça. - E sobre o que meu benzinho gosta de conversar?

Respirou fundo.

— Você não vai deixar isso morrer, não é?

— Isso o quê?

— Não se faça de tonto. - Disse enquanto também mantinha os olhos nas pessoas transitando pelas mesas, sua expressão neutra mas suas mãos frias mesmo em contato com as dele. - Isso, mon amour. Essa brincadeirinha estúpida que você começou.

— Que eu comecei?

Os dedos dele se crisparam de leve, ele soltou um discretíssimo riso anasalado enquanto meneava a cabeça. Pouco depois ele acenou discretamente para o garçom.

— Um uísque, por favor.

— O senhor quer que eu também deixe uma garrafa e um balde de gelo? - O garçom perguntou, polidamente solícito.

— Oh, sim, obrigado.

— O que é que você está fazendo? Você tá pensando em beber?! - Ela sussurrou entre os dentes. - Pelos deuses, Milo-

Os dedos dele se fecharam repentinamente contra a palma de sua mão, ele se aproximou lentamente para falar em seu ouvido.

— Eu não posso me levantar daqui e ir embora. Eu tenho que ficar aqui, sorrindo para todo mundo enquanto você tem a pachorra de me recriminar pela brincadeirinha que. eu. comecei. - A voz dele era um sussurro, mas pingava ácido. - Então, benzinho, que pelo menos eu não precise passar por isso sóbrio.

— Pois muito bem, mon amour… - Ela sibilou. - ...Por mim você pode beber até cair, desde que você se mantenha no papel. Mas não conte comigo para curar seu porre.

— Claro que não - Ele relaxou os dedos. - Não quero mais brincadeirinhas entre a gente. Benzinho.

Manteve os dentes trincados quase até eles se quebrarem.

— ...Eu vou dar uma volta. - Ela disse, levantando-se da cadeira em direção ao banheiro.

Porque se ela ficasse ali, ela não ia conseguir se segurar por muito mais tempo.

Longe da mesa, diminuiu o passo ao ver um garçom se aproximando.

— A senhora aceita champanhe?

Estava realmente pensando em recusar, mas… Se ele não queria passar por isso sóbrio, ela também não.

OOO

Milo mordia os lábios enquanto levantava a mão para pegar uma taça de espumante. Que, a propósito, era realmente muito bom. Não que já tivesse tomado muitos espumantes em sua vida, mas já conseguia pelo menos perceber a diferença entre um champanhe e um espumante genérico. Deu uma olhada de esguelha para o rótulo…

Don Pérignon Brut - Vintage 1980.

"Uau" - pensou para si mesmo, acabando a taça em quase que um gole só. - "Pior que desce bem redondinho..."

Fechou os olhos, respirando devagar porque já estava ficando meio tonto. Ao abrir os olhos, deu uma olhada na garrafa de uísque que já ia quase pela metade.

"Tá ótimo, misturando uísque com champanhe, vai dar certo demais isso", era o que tentava lhe dizer seu resquício de consciência; mas sinceramente não estava mais a fim de ouvi-la. Afinal, o que de tão ruim poderia acontecer? A missão, com Stan e Jack já em campo agindo enquanto eles estavam ali naquele maldito baile, estava praticamente garantida. Não eram eles quem tanto diziam que 'oooh não precisavam deles, tudo foi uma ideia da S.H.I.E.L.D.'? Então…

Não. Pelo menos até ter a certeza de que as coisas estavam encaminhadas para Stan e Jack, ele tinha que manter a compostura. Depois… Depois era outra história.

E quanto à Shina…

Tudo de ruim que podia acontecer entre ela e ele entorpecido demais para responder por si próprio já tinha acontecido, não?

Falando nisso, onde se meteu aquela criatura? A primeira banda já estava pra começar a tocar - depois ia ficar complicado de achá-la no meio da pista.

Suspirou, entendendo que teria que se levantar para ir buscar a bonitinha aonde quer que ela tivesse se enfiado.

Virou um copo de água que tinha pego para colocar na mesa e saiu andando na direção em que ela foi.

OOO

— Obrigada, moço….

Shina agradecia ao garçom enquanto apanhava o que devia já ser sua quarta taça de champanhe.

Tinha que dar a mão à palmatória: Essa história que Geist sempre repetia - "Nunca entre de cabeça na bebida quando sua vida estiver uma merda"— era uma puta de uma mentira e Milo tinha toda a razão.

Tudo parecia mais leve com o espumante suave lhe descendo goela abaixo.

Andou pelo salão, se sentindo estranhamente satisfeita. Não, satisfeita não era bem a palavra - ela sabia que não tinha motivo nenhum para estar satisfeita, pelo contrário. Mas agora era como se tudo aquilo não importasse tanto. Missão, teatrinho, Milo, Seiya, tudo o que fazia da sua vida a sucessão miserável de desventuras.

"Tocar o foda-se", era o que se dizia por aí. Palavrão? Com certeza. Mas ela era uma amazona - não uma dama da sociedade.

Uma das bandas estava começando a tocar; era o Simple Minds - conhecia por conta de Clube dos Cinco(3). Gostava da música que a apresentou à banda, gostou do resto também quando escutou o disco que Geist pegou emprestado de um dos caras com quem estava saindo. E quando os primeiros acordes da música de Clube dos Cinco começou a tocar, ela foi andando até a pista de dança.

Depois ela voltaria para a mesa. Não que estivesse com pressa de encontrar Milo, também. Pegou outra taça, devolvendo a sua vazia. A banda era muito melhor ao vivo do que no disco.

"Will you stand above me, look my way, never love me, rain keeps falling, rain keeps falling down, down, down…"

Ela cantava baixinho junto com o vocalista entre um golinho e outro no champanhe. Fechou os olhos, deixando a música entrar pelos ouvidos e sair pelos seus lábios, mesmo que sem som.

"Will you recognize me, call my name or walk on by; rain keeps falling, rain keeps falling down, down, down…"

Não só ela cantava o refrão, todos ali cantavam e se espremiam em frente ao palco. Umas trezentas pessoas, talvez? Um pouco mais… Ainda assim quase um show particular.

Mais um golinho no champanhe.

Em outros tempos, com a cabeça sóbria, talvez… Ela estaria relacionando essa música à sua situação com Seiya. Mas hoje, não. Agora, não. Agora ela estava bebendo champanhe e cantando junto com a banda uma das músicas que mais tinha gostado de escutar ultimamente.

Como uma garota normal.

Acabou a primeira música, começaram outra. Sua vontade era ir para a frente do palco, pular e cantar junto.

— Duquesa? - Ouviu uma voz familiar lhe chamando, ao se virar deu de cara com o filho-herdeiro do Sheikh Abdullah lhe sorrindo de canto.

Oh-oh. Agora sim, teria que voltar pra mesa e torcer para seu maridinho estar por lá.

— Está por aqui sozinha, Madame? - Ele lhe fez um meneio.

— Ahhh, oi… - Sorriu de volta. - Eu… estava procurando pelo Milo, me perdi dele…

— Não se preocupe - Ele disse, o sorriso de dentes brancos contrastando com a pele cor de oliva. - Eu a ajudarei a encontrá-lo...

Oh-oh.

Sim, o cara era mais do que um pedaço de mau caminho: era uma estrada pavimentada para o inferno. Mas…

A missão. É, a missão.

— Obrigada, Sheikh… - Tentava ser o mais polida possível. - mas não creio que seja de bom-tom-

— Dodi - Ele sorriu. - Você está na Arábia, Duquesa. Aqui, o que não é de bom-tom é que moças circulem sem um tutor...

Mil vezes oh-oh.

Ele estava certo.

Ele lhe ofereceu o braço, e sem Milo por perto ela não tinha muito como recusar.

OOO

Bem que ele disse: Achar Shina no meio de quase quatrocentas pessoas se espremendo na pista não ia ser tarefa fácil.

Não que pudesse culpá-las, não podia de jeito nenhum. A banda já ia pela terceira ou quarta música em um show fantástico: Não que fosse preciso muito de Simple Minds para impressioná-lo, mas ainda assim ver uma banda como aquela tocar num ambiente tão exclusivo era uma experiência única.

Só que em vez dele ir para a frente do palco e esperar a banda escocesa cantar sua preferida, Alive and Kicking— eles começaram o show com outra que ele gostava, Don't you forget about me— lá estava ele rodando atrás de seu benzinho no meio de toda aquela gente se divertindo como ele gostaria de estar.

Aliás, se ela inventasse de fazer isso no show do Eurythmics, ela era uma mulher morta. Porque ele ia ver Annie Lennox toda linda cantando Sweet Dreams, ah se ia - isso ele tinha que esfregar na cara de Afrodite.

Um garçom que passava na lateral do palco se aproximou para lhe oferecer uísque, e já fazia o quê? Vinte minutos que ele estava procurando por ela? Aceitou uma dose, afinal não era como se ela estivesse fazendo questão de ser encontrada.

"Mas e a missão", sua consciência lhe inquiria aqui e ali enquanto ele se demorava no mesmo lugar para ouvir Waterfront. Calou a voz com um gole no uísque - afinal de contas, não era isso que Fucker & Sucker queriam? Que os dois viessem ao baile e se divertissem enquanto entretinham as pessoas para dar a eles a chance de levarem a missão a cabo? Pois tá aí. Ele estava incorporadíssimo ao seu personagem e se divertindo à beça - e foda-se seu benzinho, aquela nojenta desgraçada que sequer aguenta quando umas verdades lhe são jogadas na cara.

Os primeiros acordes de Alive and Kicking começaram. Parou, fechou os olhos.

Que se danasse aquela merda toda, ele ia escutar essa música. Porque, pelos deuses, quando é que ele ia fazer isso de novo? Nunca.

("What you gonna do when things go wrong?
What you gonna do when it all cracks up?

What you gonna do when the love burns down?")

"Então", pensou enquanto tomava o resto do uísque já aguado de gelo. "O que você vai fazer quando se ferrar de novo, de novo e de novo enquanto continua dando murro em ponta de faca, Shina?"

Não. Não ia pensar nisso. Já vinha pensando nisso há tanto tempo, e lhe servia de quê? Para ele também dar murro em ponta de faca, querer o que não ia ter nunca.

Ela lhe deixou isso muito claro.

Ela "não era doida por ele como aquelas molecas".

Só que ele nunca teve a intenção de que elas fossem 'doidas por ele'. Nunca. Mesmo que ele fosse lá para ver o treino delas - o que todo mundo fazia, por que diabos ela se doía tanto por isso - ele nunca deu cabimento à nenhuma delas.

Nunca fez isso, brincar com os sentimentos de alguém que esperasse dele o que ele sabia que não poderia dar. E esperava - de verdade - nunca fazer.

Ele sabia o quanto era ruim.

Ele não mentiu pra ela quando lhe disse que nunca fez isso.

Ele não mentiu sobre nada do que ele disse naquele dia, nem teria como. E ela...

Maldita.

— Oi - Sentiu uma mulher se aproximando enquanto a música acabava. - Duque de Apulia, certo?

Bonita, bem bonita. Loira platinada, provavelmente tingida, mas isso não lhe era problema nenhum. Olhos claros, rosto bonito, corpo bem bacana - apesar de ser aparentemente mais velha. Quase trinta? Trinta e poucos? Talvez. E o encarava com olhos travessos e um meio sorriso no rosto.

Oh-oh.

— Sim… - Meneou a cabeça, agradecendo por ter um copo nas mãos para disfarçar seu incômodo.

Mas… Vai que a moça só esteja tentando ser educada.

— Sharon, prazer em conhecê-lo. - Os olhos dela passearam pelo seu corpo de maneira sugestiva.

Oh-oh.

— Eu… Estou tentando encontrar minha esposa, acabei me perdendo dela quando a banda começou a tocar…

— É mesmo? - A tal Sharon aproximou-se, lânguida. - Sua esposa não deveria deixá-lo sozinho… Duque.

"Minha "esposa" não deveria fazer um monte de coisas", ele pensou, e a mulher tocou na lapela de seu fraque.

Bem que seu benzinho merecia demais um belíssimo par de chifres - desses que levam as incautas que se engraçam por Saga, Kanon ou Máscara da Morte. Mas…

A missão. É, a missão.

Delicadamente afastou-lhe a mão, sussurrando um 'licença' com um sorriso.

As coisas que ele tinha que fazer por aquela missão, sinceramente. Porque a mulher tinha toda a pinta de quem sabia bem o que fazer entre quatro paredes - não era todo dia que lhe caía no colo uma oportunidade assim.

Certo, sua vida afetiva era uma bela bosta. Ponto pacífico, aí. Mas os deuses eram testemunhas de que ele bem gostaria que sua vida sexual, pelo menos, fosse assim tão agitada quanto as pessoas acreditavam que ela era - devido à lenda astrológica de que escorpianos são muito sexuais e tal.

Deu a volta na pista para tentar encontrar seu benzinho e sentá-la na mesa de uma vez por todas; o Simple Minds já estava anunciando os membros da banda - o que significava que a apresentação estava para acabar. E eles passaram o show inteiro separados um do outro.

Sua busca terminou, porém, assim que ele virou o rosto para seu lado esquerdo.

Lá estava Shina - com aquele malparido Sheik-júnior a tiracolo.

— Sharon, queridinha... Mudei de ideia. - Sibilou para si mesmo quando os olhos dela se encontraram com os seus. - O prazer de te conhecer vai ser todo meu.

OOO

— Milo! - Sussurrou para si mesma quando o viu na pista.

Ele olhou para ela, os olhos faiscando enquanto o rosto mantinha a expressão neutra. Então e olhou para o filho do Sheikh, olhou para ela de novo e…

...Deu as costas e foi embora.

— Droga! - Rilhou os dentes, sentindo um buraco em seu estômago enquanto já se afastava para ir atrás de Milo. - Sheikh, eu preciso…

— Espere.

Ele a segurou pelo braço.

Ela parou em seco, suprimindo seu cosmo de reagir àquela invasão de seu espaço pessoal. A sensação de urgência que tinha em ir atrás de Milo se transmutou em raiva fria.

— Sheikh Abdullah - Ela disse, o rosto neutro mas os olhos duros nos dele. - Eu vou até meu marido. Com licença…

— Ainda não terminamos de conversar, duquesa…

A raiva a fez bater as asas do nariz, todo seu autocontrole empregado na agora hercúlea tarefa de não arrancar-lhe os olhos com suas unhas. O que, porém, não a evitou de livrar o braço em um gesto fluido, mas que denotava a ele - um lutador experimentado - que ela não era nenhuma leiga em combate corpo-a-corpo.

— Ah. Então aí está ela. - Ele parecia satisfeito. - A lutadora de quem o Duque tanto falava.

Estreitou os olhos, o idiota que não tinha ideia do risco que corria.

— Como eu disse antes - Respirou fundo, controlando-se a duras penas porque o álcool em seu organismo agora a deixava meio tonta e mais irritada. - Eu vou até o meu marido. Com licença.

— Antes, me responda… - Ele sorriu de canto. - O que uma mulher como você viu em um homem como ele?

— Perdão? - Fungou uma risada anasalada, incrédula.

— ...Perdoe-me você a curiosidade. - Ele continuou, como se aquela maldita pergunta fosse a coisa mais natural do mundo. - Mas eu não consigo entender como uma mulher com seus predicados se encanta por um Duquinho de uma casa decadente, vindo de um internato para rapazes…

O tom jocoso com que ele disse 'internato para rapazes' fez com que ela fechasse as mãos em punhos.

— Até mesmo para o senhor, Sheikh Abdullah, creio que seja impossível ignorar os... predicados de meu marido. Eu mesma os elenquei para seu pai na ocasião em que fomos apresentados.

— Sim, sim. Loiro, alto, bonito; isso não nego. Também bom filho, religioso, dedicado, delicado; são esses os predicados que ele te oferece? O que eu não entendo é como você contenta com isso a ponto de prender-se a ele, quando claramente poderia ter coisa melhor.

— Coisa melhor. - Repetiu, irônica.

Esse idiota estava pedindo, literalmente implorando pra morrer.

— ...Coisa melhor. Bem melhor. - Ele sorriu novamente, olhando-a de alto a baixo.

Não, não. Ela ia fazer pior.

— ...Eu não preciso que me ofereçam nada, Sheik. Oh, perdão. Dodi. - Ela aproximou-se dele, e dessa vez não impediu que seus olhos traíssem a ele o quão perigosa ela podia ser. - …Do meu Milo, eu gosto de graça.

Deixou um sorriso malévolo brincar em seu rosto enquanto via o olhar dele perder o tom de desejo para ganhar o de ultraje.

Não importava. Ele que se fodesse com suas muitas esposas e seu puto dinheiro.

Ela tinha que encontrar Milo.

Mas não sem pegar outra taça de champanhe pelo caminho.

OOO

Eurythmics já estava começando a tocar sua tão aguardada Sweet Dreams.

Só que naquele momento Milo estava - com (mais) uma taça de champanhe na mão - empenhado na busca da tal Sharon, a loira boazuda com quem ele agora esperava passar uma noite de sexo selvagem.

Foda-se a missão. Foda-se os agentes da CIA. Foda-se o casamento de mentirinha. Foda-se a Shina. Aliás, ela que ficasse a noite toda do lado de fora do quarto - porque ele ia usar a cama a noite inteira.

Mas até parecia uma pirraça cósmica com a sua pessoa: A gostosona tinha evaporado no ar.

"Achemos outra, então", pensou enquanto devolvia a taça vazia para um garçom por ali.

Sim, porque não havia o menor perigo dele passar essa noite na mesma cama que aquela vagabunda-

Uma fisgada na base da sua nuca. Um cosmo elevando-se em fúria, suprimido logo depois...

Shina.

Mas pra quê ela elevaria o cosmo assim, se ela estava toda contentinha circulando com aquele puto do Sheikh e…

O Sheikh.

Sabia que usar cosmo era má ideia e não estava exatamente no seu juízo perfeito, a tontura do álcool era um sinal claro disso. Mas nem sua embriaguez o impediria de fechar seus olhos e deixar que seus sentidos o guiassem até onde a sentiu.

Não que Shina fosse uma mulher indefesa ou merecesse que ele fosse em seu socorro, mas ele era um cavaleiro.

E que os deuses protegessem aquele playboyzinho filho da puta se ele chegasse lá e visse que ele tinha levantado um dedo para fazer alguma coisa fora do consentimento de Shina. Nem todo o jiu-jitsu do mundo o salvaria de ficar a sete palmos do chão.

Passando pela pista agora novamente lotada, porém, sentiu alguém puxá-lo pelo braço.

— Achei você. - Shina agora o puxava sem muita cerimônia pelo caminho de onde veio. - Vamos pra lá.

— Ei - Ela estava de costas, mas era evidente o quão irritada ela estava. - Espera! O que foi que aconteceu?

— Não aconteceu nada. - Ela respirou fundo, fechando os olhos. - Só que… É melhor a gente ficar junto, daqui pra frente.

— O Sheikh-júnior aprontou alguma virilidade contigo, foi? - Ironizou, estreitando os olhos. - O que foi que ele fez?

— Não interessa, eu já resolvi. Vamos ver o show, não quero perder tempo falando desse babaca.

— Mas só você não tava sacando que ele era um babaca. - Soltou uma risada anasalada. - Benzinho.

Shina parou e virou-se para encará-lo, o rosto bonito franzido de raiva. Mas em vez dela retrucar, ela se aproximou e o segurou pela cintura.

Mon amour— Ela agora o encarava, falando com a voz levemente arrastada e piscando devagar demais para seu habitual.- É o Eurythmics que tá tocando. Eu gosto dessa banda. Todo mundo gosta dessa banda. Eu quero ver eles tocarem. Então a gente vai fazer assim: você vai ficar aqui comigo bem caladinho, até esse show acabar.

— Ei - Ela esticou as duas mãos para pegar uma taça de champanhe em cada uma. - Você tá bêbada?

— Cala a boca, foi você quem começou. - Ela tomou um gole grande da taça em sua mão direita e lhe estendeu a de sua mão esquerda. - Pode ficar com essa daqui.

— Você tá bêbada!

— Nossa, falou o senhor sóbrio! Aliás, devia era aproveitar que eu não tô te regulando pra beber e ficar quietinho.

Milo rolou os olhos, tomando metade da taça num gole só.

— Mas calma, também, não vai tomar tudo de uma vez!

— Decide aí o que você quer que eu faça, benzinho!

A banda seguia tocando - e se ele achava que o primeiro show tinha sido bom… Pelos deuses. Afrodite tinha muita razão de ser tão fã de Annie Lennox.

Ela era muito mais bonita e magnética ao vivo do que nas fotos: Um rosto perfeito emoldurado por um cabelo platinado, cortado curto batido na nuca. Corte masculino, sim, acentuado pela camisa social de manga longa, calça reta e blazer masculino que ela usava.

E sua voz grave, melodiosa, poderosa, cantando Here comes the rain again.

"Você e sua eterna queda por mulher-macho", pensou consigo mesmo ao lembrar de uma das mais épicas tiradas de sarro de Camus pra cima dele. Mas era verdade. Pior que era verdade. Meninas boazinhas, femininas e delicadas nunca o atraíram tanto quanto o oposto.

Vai ver era por isso que ele se ferrava tanto.

"Você se ferra porque não sabe a hora de parar", ouviu na sua cabeça a voz de Camus - em uma das muitas vezes em que ele lhe jogou umas verdades na cara. Era o cúmulo da ironia ouvir isso de Camus de Aquário, mas isso era outra história.

"Até porque não é ele quem tá numa 'missão' fingindo ser marido da Shina", continuou sua consciência. "Dormindo na mesma cama e tudo o mais, que é pra você ficar sentindo o cheiro dela vinte e quatro horas por dia."

Ele precisava era de outra bebida, isso sim.

— Onde você vai? - Viu Shina se afastar alguns passos, em direção às mesas.

Ela virou o rosto e gesticulou em direção a um garçom.

— Ei! - Gesticulou de volta, elevando a voz. - Pega um uísque pra mim!

Pelo barulho da música ela não o escutou, claro. Mas o garçom tinha ido até ela, e ela apontou para uma taça de champanhe como se perguntasse se era isso que ele queria. Gesticulou de volta, dizendo que não, era uísque; tanto ela como o garçom entenderam.

Ao voltar o rosto em direção ao palco, porém, seus olhos passaram pela Sharon que ele tanto procurava antes. Ela o encarava de volta e abriu-lhe o mesmo sorriso safado de antes, andando em sua direção.

Oh-oh.

— Ainda não achou sua esposa, Duque?

— Seu uísque, mon amour. - Shina se postou do seu lado, taça de champanhe na mão direita e o seu copo de uísque na mão esquerda. - Não me apresenta sua amiga?

— Sharon - A mulher sorriu, bem menos desenvolta. - Ele estava procurando por você.

— Ele me achou. - O braço esquerdo de Shina envolveu sua cintura e ela recostou sua cabeça em seu ombro, rindo cinicamente para a outra. - Obrigada pela sua preocupação.

— Meu benzinho foi meio rude com a moça... - Esperou a loira se afastar e virou um gole do copo cheio quase até a boca, o garçom tinha caprichado na dose.

— Seu benzinho não tem vocação pra corna. Nem de mentirinha. - Shina se mantinha enlaçada à sua cintura, bebericando o champanhe. - Mon amour.

— Mas benz-

Ela encostou a taça dela na sua boca, cortando sua frase no meio.

— Shh, mon amour. Shhh. Cinco minutos quietinho, vai. A música… Eu adoro essa música. - Os olhos dela tinham as pálpebras pesadas, a luz colorida do palco descaracterizando seu tom de verde. - Cala essa boquinha, cala.

Reconheceu a balada na mesma hora, ele também conhecia essa música.

Ninguém no mundo diria que Milo de Escorpião seria um cara de curtir baladas românticas - e ele não era. Mas para essa música ele sempre abriu uma exceção.

"How many sorrows do you try to hide
In a world of illusion that's covering your mind?
I'll show you something good, oh I'll show you something good.
When you open your mind you'll discover the sign
That there's something you're longing to find"

Isso mesmo: Enquanto ele, cheio de birita na cabeça, bancava o maridinho de uma Shina de Cobra devidamente enlaçada em sua cintura, a Annie Lennox resolve cantar Miracle of Love.

Alguém lá no Olimpo deve ter ódio da cara dele. Ele chutaria que era Afrodite - a deusa, não o cavaleiro.

(Se bem que esse não ia com a sua cara, também.)

E enquanto tocava a música - essa música com essa letra, mas puta que pariu que tinha que ser essa música com essa letra— a cabeça dela ainda estava apoiada em seu ombro enquanto ela encarava o palco com a expressão mais plácida que ele já a vira ter. Sem sombra da dureza que ostentava como Líder das amazonas, sem a melancolia que ele sempre via nos olhos dela desde que se encantou por aquele franguinho de bronze.

("When you open your mind you'll discover the sign
That there's something you're longing to find")

Não. Ali, naquele momento, com ele, ela estava contente. De bêbada, talvez; mas estava.

"The miracle of love (must take a miracle)
Will take away your pain (must take a miracle)
When the miracle of love (must take a miracle)
Comes your way again (must take a miracle)"

Deixou seu braço escorregar pela sua cintura, enlaçando-a pelas costas. Ela se reacomodou apoiando suas costas nele, a cabeça levemente jogada para trás, recostada em seu ombro. Não era a primeira vez que faziam isso, abraços e carinhos eram parte do teatrinho que tinham que fazer, mas...

"O que diabos você tá fazendo, Milo?"

Ela balançou o corpo, como se quisesse dançar a música que tocava. Ele acompanhou seu movimento.

"O que diabos você está fazendo?"

Mon amour…

— Fala.

— ...Você dança mal pra caralho.

Mal registrou a si mesmo tentando sufocar o riso no meio de um gole no uísque.

— Benzinho, que boca suja que você tem.

— Não é você que diz que eu sou a Mulher Cavaleiro? Eu tenho que ter a boca tão suja quanto a de um.

Não conseguiu evitar a lembrança de Aiolia atestando para Mu o quanto ela era bonita(4), o quanto aquela boca (suja, suja, suja) era uma tentação.

"Pelo amor dos Deuses, não pensa nessa boca falando sacanagem com você no meio das pernas dela."

— Vou pegar outro uísque - Separou-se dela antes que sua cabeça terminasse de lhe arruinar.

— Ei, não, espera acabar essa música… - Ela franziu o rosto enquanto o segurava pelo braço. - Depois a gente vai.

— Não, eu tenho que ir, eu…

Um puxão o trouxe de volta, os braços dela envolveram sua cintura enquanto ela o encarava de frente.

— ...Isso não vai dar certo - Ele disse, evitando os olhos dela. - Me deixa eu ir pegar meu uísque...

— ...Não vai dar certo… - Ela soltou uma risada anasalada. - Grandes merdas, mon amour, eu já tô acostumada. Nada nunca me deu certo, mesmo...

— Naquele dia você deixou seu ponto bem claro em relação a isso. - Suas mãos se colocaram nos antebraços dela.

— ...Você não é o japonês de pau pequeno, isso que você quer dizer...

Milo sentiu sua garganta se fechando e os olhos ardendo enquanto suas mãos desvencilharam-na de sua cintura. Ela podia estar visivelmente embriagada, mas isso ele não podia deixar ela fazer. Não. Não de novo.

"Não faz isso comigo."

Andou o mais rápido que podia no meio daquelas pessoas, achou em uma mesa fora da pista uma garrafa de uísque fechada. Abriu-a e encheu seu copo - sem gelo nem nada porque isso era uma coisa que a essas alturas ele não ia encontrar. Tomou um gole grande, sentindo a garganta queimar pelo álcool tão pouco diluído. E ia dar outro gole quando sentiu uma mão em seu ombro. Virou-se para dizer a ela que pelo sangue sagrado de Atena, me deixa em paz senão

— Caramba, garoto! Como é que um Santo de Atena pretende salvar o mundo desse jeito?

Agente Stan.

A interceptação da transação entre os terroristas.

E ele estava bêbado demais para sequer chegar perto de sua armadura. Shina também.

Tentou firmar o olhar para não parecer tão bêbado quanto estava, mas sabia que falharia miseravelmente.

— Ainda bem que não precisamos de vocês, não?

Baixou os olhos, envergonhado como há muito tempo não se lembrava de ficar.

— Ah, relaxa. - Pegou o copo da sua mão e sorveu um gole. - Mas rapaz, esse uísque tá sensacional.

— Sinto muito... - Murmurou. - Não foi profissional da nossa parte...

— Pelo contrário. Na minha opinião sincera, hoje foi o dia que vocês foram mais profissionais em toda essa operação. Finalmente vocês conseguiram convencer que são um casal. Melhor ainda, um desses casais que alimentam tabloides ingleses por semanas.

— Eu vou buscar a Shina, eu saí para pegar uísque e…

— Não precisa. O Jack já achou o benzinho. Que, aliás, tá mais chumbada que você.

Na sua visão periférica, viu o Agente Jack, segurando uma garrafa fechada de Don Pérignon, se aproximar com Shina.

— Ei, Jack - Stan acenou para o colega com sua garrafa de uísque na mão. - Solta o champanhe que eu arranjei coisa melhor.

— Meu Deus, Stan, o que é isso? - Jack olhava para o copo na mão do colega. - Vai beber uísque de balde agora, é?

— Nada - Stan deu um sorrisinho. - Quem ia beber isso tudo era o nosso Cavaleiro aqui.

Jack olhou para ele como se ele estivesse para fazer uma loucura. Mal sabiam eles que ele já estivera pior do que isso.

— Bom, crianças… O show acabou. Não o disfarce de vocês, lógico, o show da banda mesmo. Agora os dois titios aqui vão levar vocês pra cabine e vocês vão ter uma boa noite de sono...

— Nada disso, Jack. - Stan deu uma risada gostosa. - Eles ainda tão na flor da idade, podem comemorar mais um pouquinho…

Stan pegou a garrafa de champanhe e a deu para Shina, junto com duas taças.

— Pra não dizer que eu nunca te dei nada, benzinho. Divide a garrafa com o mon amour lá na cabine. A gente acompanha vocês até lá, como os bons guarda-costas que nós somos.

Nem teve ânimo para torcer a boca no muxoxo habitual naquelas ocasiões. Em vez disso, fixou os olhos no champanhe que Shina batalhava para abrir. Pegou a garrafa das mãos dela, tirou a proteção de arame da tampa e forçou a rolha para fora, num estampido seco. Então deu tomou um gole de champanhe direto da garrafa.

Não era uísque, mas ia dar pro gasto.

Ele tinha avisado desde o começo que não ia passar por isso sóbrio.

OOO

— Ei, Stan…

— Diga, Jack.

— ...Não sei se foi uma boa ideia deixar esses dois na cabine com uma garrafa de champanhe na mão…

— Ah, qué isso. O máximo que vai acontecer é eles acordarem amanhã com uma ressaca fenomenal. E eu acredito que dois Santos de Atena sejam capazes de suportar uma ressaca, mesmo que seja de champanhe.

— ...É. Mas…

— Ah, cara, pára de drama. A outra opção seria o quê? Eles começarem uma batalha campal que vai terminar numa tórrida noite de sexo onde os dois vão curar suas tensões? Sinceramente.

— ...É. Tem razão.

OOO


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Notas finais do capítulo

(1) Telefones móveis eram os antigos e mastodônticos celulares dos idos anos 80.

(2) Dites-leur que je vais geler ce fils de pute: Avise ele que vou congelar esse filho da puta. Mon dieu de la France, donne moi la patience: Expressão francesa equivalente a 'Dai-me paciência senhor'

(3) Clube dos Cinco (The Breakfast Club) é um filme norte-americano produzido em 1985. Foi escrito e dirigido por John Hughes e estrelado por Emilio Estevez, Anthony Michael Hall, Judd Nelson, Molly Ringwald e Ally Sheedy.

(4) Sui Generis, capítulo 2.