Mentiras Sinceras escrita por Human Being


Capítulo 4
"Pequenas porções de ilusão"


Notas iniciais do capítulo

Aviso Legal: Saint Seiya não me pertence, e sim à Toei, Shueisha, Bandai e todo esse povo que não sabe direito o que fazer com eles. Nhé.

Disclaimer: Essa fic é continuação direta do Epílogo de Faro Fino, portanto também ambientada no universo Sui Generis/Sideways (e não vai conter yaoi/shounen-ai). Nela existem vários spoilers de Faro Fino e dos capítulo de Sideways - por isso, antes de começar aqui e se você não tiver lido Faro Fino ou esses capítulos de Sideways... Cola lá e dá uma lidinha, nunca te pedi nada, vai.

O título deste capítulo também foi desavergonhadamente roubado do Cazuza (Maior Abandonado - Cazuza/Frejat, 1984)



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— Aqui, vocês dois, a gente precisa conversar.

O dia começou cedo para ela e para Milo. Nem sete horas da manhã, e os dois agentes da CIA já batiam na porta feito doidos porque queriam 'discutir detalhes da missão'.

Não que a tivessem acordado - ela vinha dormindo muito mal desde que chegou, por vários motivos.

— Seguinte, crianças - O Agente Stan, que foi o que convocou a reunião batendo na porta deles, continuou de onde tinha parado. - Nós não queremos saber o que tá acontecendo. Se vocês se detestam, o quanto se detestam, se tem alguma história prévia entre vocês e aí tá rolando um estresse - Ele levantou a mão, indicando que Milo continuasse calado. - Não queremos saber, sério. Vocês são adultos e vacinados.

— O que a gente quer - O Agente Jack complementou. - É que vocês parem com essa picuinha em que vocês dois ficam se bicando por debaixo dos panos o dia inteiro.

'Foi ele quem começou', era o que Shina tinha vontade de dizer; mas sabia o quão infantil ela soaria soltando uma dessas.

— Mas não tem picuinha nenhuma. Nós estamos fazendo exatamente o que vocês querem. - Foi Milo quem acabou retrucando, mais irritado do que o costume dele ao lidar com os agentes. - Estamos botando as melhores roupas daquela mala e 'circulando' juntos por aí. A gente anda pelo navio, vai nas recepções, desce nas cidades onde ele aporta, faz turismo, tira foto e tudo o mais. Um casal conforme manda o figurino.

— Um casal onde o mon amour, o moço muito amigo do seu companheiro de internato para rapazes, é atacado pela benzinho, a mocinha que agarra rapazes para beijá-los à força? Vem cá, menino - Milo fechou ainda mais a cara enquanto o Agente Stan falava. - Você acha, sinceramente, que nós nascemos ontem? Vocês dois é que tem idade para serem meus filhos. Do Jack também, mas ele é desses que "não assume a idade".

— Em condições normais eu mandaria o Stan aqui catar coquinho, mas ele tem razão. - Jack chasqueou a língua. - Que vocês não se suportem, vá lá, mas vocês precisam maneirar. E é pra já. Faz quase um mês que vocês tão nessa merda.

— E tem mais - O Agente Jack continuou. - Hoje à noite a gente vai para um evento aí de Jiu-Jitsu, em Abu Dhabi. Há algumas células da organização terrorista aqui, temos que investigar em terra firme. Assim sendo, vocês vão pro evento, interagem com a realeza local e de lá dão uma 'escapadinha' romântica pra eu e o Stan podermos agir. Entenderam?

— Como assim? Vocês vão ficar sozinhos? - Milo enrugou a testa. - Mas aí vocês ficam desprotegidos e…

— Guri, desde o começo a gente não precisou de proteção de ninguém. Vocês aqui é ideia da S.H.I.E.L.D. Pra gente, a única utilidade prática de vocês é funcionar no disfarce e agir dentro dele para nos ajudar. - Stan não estava deixando espaço para argumentações. - Então vocês vão sair do jeitinho que a gente está falando, e bem comportadinhos. Botem uma roupinha de festa, cobre os cabelinhos do benzinho e vão lá ver os caras lutando pra realeza ver.

Shina bufou, Milo rolou os olhos.

— Outra coisa, antes que nós esqueçamos - O Agente Jack disse. - Em alguns dias vamos chegar em Jidá(1), então vai ter o baile de gala. Que vai ser a oportunidade para os representantes da célula terrorista embarcarem e a transação acontecer. Nem precisamos dizer que vocês vão estar lá, vestidos a caráter e mais apaixonados do que nunca. Então até lá, pombinhos, não inventem mais nenhuma gracinha e façam tudo que é esperado de vocês.

OOO

— Benzinho, não esqueça que por aqui você tem que cobrir a cabecinha...

"...Talvez aí você finalmente se pareça com uma mulher respeitável", Milo pensou, mas não disse nada enquanto Shina ajeitava os cabelos embaixo do xale.

Era ele abrir a boca pra dizer isso e sabia que os agentes pulariam no seu pescoço. Não que tivesse medo deles, mas sinceramente hoje não estava a fim de aguentar encheção de saco dos dois.

O evento para qual iam de limusine dirigida pelos seus "seguranças" Stan e Jack era nada menos que o Mundial da categoria profissional sediado em Abu Dhabi - e Fucker and Sucker disseram que era 'só um evento de jiu-jítsu'.

Estacionaram, Milo saiu primeiro para então dar a mão ao seu benzinho para que ela saísse do carro. Caminharam juntos até a entrada do evento sem dar as mãos - Abu Dhabi era conservadora com esse tipo de coisa - e foram guiados para seus lugares no camarote de convidados especiais, junto com seus "guarda-costas". Reconheceu o Sheikh Abdullah vindo em sua direção, fez um sinal para que Shina o cumprimentasse também.

— Sem gracinhas dessa vez - Ele sussurrou no ouvido dela. - Benzinho.

— Desde que você também se comporte - Ela sussurrou de volta. - Mon amour.

— Duque! - O Sheikh o saudou, efusivo como sempre. - Seja bem vindo ao nosso evento esportivo!

— Muito obrigado, Sheikh Abdullah. - Milo meneou a cabeça, sorrindo. - É um prazer imenso comparecer a um evento de tamanho porte.

E ele não mentia. Como cavaleiro que era, sabia bastante sobre lutas e artes marciais e com certeza acompanhou vários mundiais de Jiu-Jitsu pela televisão ou pelos jornais. Mas, mesmo com seu conhecimento, nunca seria capaz de dizer que Dubai houvesse tanta deferência e admiração pela "arte suave": Jiu-jitsu era ensinado nas escolas como parte do conteúdo regular, e também nas academias de formação de policiais e cadetes.

Portanto, nada mais natural que um evento de projeção desse esporte fosse levado para lá - sucesso de público garantido.

Tanto melhor, pensou para si mesmo. Pelo menos ele ia ter uma chance de ver algo realmente interessante naquela palhaçada toda.

— Madame! Linda como sempre, prazer imenso em revê-la. - O Sheikh agora cumprimentava Shina, como sempre demorando os olhos em cima dela. - Sei que a Arte Suave não é muito atrativa à natureza feminina, mas espero que aprecie esse torneio…

Hah-hah, pensou Milo enquanto se segurava para não rir. Porque se dependesse desse exemplar da natureza feminina, ele podia garantir uma coisa: Nenhum dos competidores presentes seria páreo para a Mulher Cavaleiro num reles dia de treinamento sem cosmo.

Mas Shina sorriu de volta, toda mocinha.

— ...Inclusive, Madame, sabes que hoje disputam alguns membros da Família Real?

— Ah, sim? - Shina respondeu, sorrindo delicadamente.

— ...Meu filho e herdeiro é um dos competidores que disputará a final. Um rapaz de ouro! Um filho dedicado, habilidoso nos negócios, temente às leis de Alá...

...Ele estava ficando doido, ou o Sheikh estava tentando vender o peixe do filho dele pra Shina bem debaixo do seu nariz?

— ...Um rapaz muito viril, um excelente lutador!

Ele estava tentando vender o peixe do filho dele pra Shina bem debaixo do seu nariz.

Rilhou os dentes, engolindo a cólera que lhe subia pela garganta e uma pontinha de cosmo que teimou em se manifestar por conta dela. Shina mantinha o rosto congelado num sorriso, mas o cosmo dela lhe mandava um recado que, mesmo empático, era claro como água.

Controle-se.

Imbecil.

Imagina se ele ia perder o seu controle por conta dessa desclassificada. Mas deixe estar - deixe estar. Ela ia ter o dela, não perdia por esperar.

Seguiu-se o torneio, Milo tentou se distrair assistindo e analisando as lutas.

Claro que os participantes lutavam bem. São treinados para isso, vivem disso. Mas não podia deixar de pensar: Que espécie de Mundial é esse onde se deixa um filho de Sheikh participar assim, do nada? Aí então querem convencer que o torneio é imparcial?

Estava na cara que deixariam o rapaz ganhar.

"Mas isso não é problema seu", pensou enquanto pegava um copo de água.

— Excelência - Um dos garçons se aproximou. - O senhor aceita uma bebida?

— Aceite - Ouviu o Agente Jack, que estava bem atrás dele e de Shina, dizer entre os dentes antes que a negativa saísse de sua boca.

Respirou fundo.

— Um uísque, por favor.

Assim que o garçom saiu para lhe providenciar o pedido, meneou o rosto para falar com o agente.

— Posso saber porque diabos eu tenho que tomar uma bebida? Eu não bebo em serviço.

— Amiguinho, hoje você vai beber. E também vai dar um jeitinho de demonstrar mais interesse no seu benzinho. Porque não sei se você percebeu, mas o Sheikh saliente está tentando cevar sua esposa para o harém do filho viril dele.

— Harém? - Ele disse olhando para Shina, que virou o rosto com os olhos arregalados. Disfarçou o sorriso em seu rosto, mas não muito. - Quer dizer que ele quer meu benzinho para ser concubina dele?

— Não, palerma. Ele quer seu benzinho para ser mais uma de suas esposas.

Milo lutou para não deixar o sorriso sair de seu rosto quando Shina ergueu um dos sobrolhos com uma expressão irônica no rosto.

O garçom chegou com sua bebida, molhou os lábios na bebida para lhe acenar em agradecimento. Uísque de primeira; se Camus estivesse por ali certeza que ia se atracar com uma garrafa, ou duas. Mas ele não era o Camus e sabia muito bem que sua tolerância ao álcool não era nada admirável, pelo contrário.

E a última vez que bebeu um uísque assim… Bem(1). Por essas e outras estava determinado a fazer aquela sua dose durar indefinidamente.

Voltou sua atenção para o tatame. A agitação do pequeno grupo de lambe-sacos que acompanhava o Sheikh era um sinal de que, provavelmente, o filho do homem estaria entrando para lutar. O oponente, um nome razoavelmente conhecido do circuito, não parecia do tipo disposto a entrar numa eventual marmelada para garantir a vitória do 'sangue azul'.

"Pois bem", sorriu para si mesmo. Vamos ver se o tal 'rapaz de ouro' é alguma coisa digna de nota…

Moreno, alto, porte atlético.

Virou um gole grande do uísque.

A luta começou, e logo de cara o 'príncipe das arábias' encaixou um golpe. Dois. Três.

O cara era bom.

Terminou a dose em mais um gole.

Seu oponente tentou trazer a luta para o chão, na tentativa de imobilizá-lo com uma chave de braço. Da qual ele escapou facilmente para então dar um contragolpe numa tentativa de mata-leão - da qual o outro teve bastante dificuldade para sair.

— Outro - Ele disse sem pensar enquanto devolvia o copo vazio para o garçom.

O cara era muito bom.

Levou sua nova dose para os lábios pra outro gole grande, quando sentiu os dedos do Agente Jack nos seu ombro.

— Eu falei pra você tomar um aperitivozinho, não pra sair daqui às quedas.

— Vai se foder - Grunhiu entre os dentes, virando um gole menor dessa vez.

O 'rapaz de ouro' finalizou sua luta com uma vitória bem mais merecida do que Milo gostaria, mas para delírio da plateia. Recebeu os louros da vitória no pódio e logo apareceu - asseado e arrumado, apesar dos vergões e roxos no rosto (também mais bonito do que Milo gostaria) - no camarote deles para ir prestigiar o pai.

Que logo se apressou em trazer o pimpolho para que ele pudesse conferir o material da sua 'pretendida'.

— Excelencia, Madame… - O Sheikh se apressou em chamá-los para felicitar o campeão. - Esse é meu filho, Hamdan bin Hashid Abdullah. Filho, esses é Milo, Duque de Apulia, e sua adorável esposa…

— Podem me chamar de Dodi. - O rapaz, aparentemente mais velho do que ele e com toda a pinta de playboy que nada em dinheiro, abriu um sorriso de dentes perfeitos quando pôs os olhos em Shina. - Encantado em conhecê-los. Espero que tenham gostado do torneio…

— Um torneio esportivo de muito alto nível. - Shina sorriu. - Do qual você tem grande mérito de sair vitorioso.

Tirou do pé o sorriso que usou para acompanhá-la na mesura; o herdeiro do Sheikh galantemente sorrindo para sua pretensa esposa. Stan e Jack mantinham os olhos fixos nele, porque era evidente para qualquer um que o herdeiro do Sheikh tinha gostado bastante da bela esposa do duquinho delicadinho.

Sentiu a língua coçando para deixar sair uma saraivada de agulhadas verbais, mas em vez de liberá-las virou o resto da dose de uísque, sentindo a garganta arder.

— Rapaz - Nem bem o herdeiro se virou para cumprimentar o resto do camarote, Jack pulou de novo no seu ombro feito um papagaio de pirata. - Segura a onda, pelo amor de Deus.

— Não tem onda nenhuma para segurar. - Milo disse entre os dentes.

— Não me vem com conversa mole. - Ele aproveitou que Shina havia se afastado um pouco e se tornou mais incisivo. - Eu não sei qual é a de vocês, não me interessa. Mas se você está incomodado assim com o sheikh-júnior aí, é melhor controlar o uísque e tratar melhor o seu benzinho.

— Imagine, Jack… - Milo sussurrou, irônico. - Não posso atrapalhar meu benzinho no que pode ser a chance da vida dela.

— Ah, quer saber? - Jack agora o segurou pelo braço. - Deixa de graça. Vai lá e resgata seu benzinho pra cá, vocês vão é sair daqui o quanto antes que eu e o Stan temos é que trabalhar, não ficar aqui pajeando vocês para que não façam nenhuma besteira.

OOO

Shina estendeu as mãos para pegar uma taça de água, percebendo os olhos do filho do Sheikh sobre si.

Não sabia dizer se estava furiosa ou lisonjeada. O que ela sabia é que sentia um frio no estômago por se sentir observada por um homem que a via com esses interesses.

Era verdade que o simples fato de ele considerar que ela pudesse aceitar ser uma de suas esposas lhe era um insulto. Plantado pelo contexto que Milo - aquele bicho imundo - criou ao afirmar que ela lhe roubou um beijo na frente de um Sheikh que devia ser acostumado com mulheres que só mostram o rosto a seus maridos…

"Mas não faz nem tanto tempo atrás, era esse seu caso"; pensou. Sim, verdade, mas havia uma diferença. Uma mulher árabe cobre o rosto por recato, e uma amazona cobre o rosto por…

Vergonha. De ser mulher. De ser vista como uma mulher. De amar, de querer, desejar...

Aí, de uma hora para outra, ela estava ali sendo devorada pelos olhos de um homem que podia ter a mulher que quisesse com um estalar de dedos. E isso lhe era lisonjeiro, sim. Uma sensação morna em seu peito de se saber desejada, de saber que o que ele vê o agrada.

Um poder primal que às amazonas sempre foi negado, hoje ela começava a entender o porquê.

Era um jogo — Shina nunca foi muito boa em jogos. Mesmo com rapazes com quem já esteve: Era ela quem chegava com um nome qualquer em um cara onde estivesse escrito na testa 'noite sem compromisso' - sem identidade, sem sedução, sem flerte, sem envolvimento. Coisa rápida, prática, segura, mecânica.

Porque seu amor - oh, seu amor— sempre seria de outro.

Engraçado que nunca sequer tentou jogar assim com Seiya, brincar desse revelar e esconder-se com o intuito de conquistar, fazê-lo seu. Não que ela achasse que joguinhos de sedução fossem coisas boas; mas…

Era como se Seiya fosse um ídolo e ela sua devota; algo que ela sempre veria olhando para cima, para o alto, para onde ela nunca pudesse alcançar.

Olhou para Milo de esguelha e deixou um sorriso discreto aflorar em seu rosto.

Com um copo de uísque na mão, ele estaria impávido para qualquer pessoa, mas não para ela. Discretamente, aqui e ali, ele a olhava como se quisesse arrastá-la dali para longe dos olhos daquele homem. Ela sabia, porque - por mais que lhe doesse admitir - ela já o olhara assim naquele campo de treinos, como se as pivetas não tivessem o direito de olhar para ele daquele jeito na sua frente.

Mas agora o feitiço virou contra o feiticeiro, ela pensou quando o filho do Sheikh, vendo-a sozinha, veio em sua direção com um daqueles sorrisos matadores de quem vai, como dizem por aí, chegar chegando. Não devia - e não iria - aceitar sua aproximação, mas…

Que mal haveria em conversar um pouquinho?

— Duquesa - Ele disse, o sorriso confiante de quem tem charme, sedução e bilhões de petrodólares na conta. - Realmente espero que não tenha ficado muito entediada em um torneio de jiu-jítsu…

— Oh, não. - Sorriu. - Pelo contrário. Sempre me interessei por artes marciais.

— É mesmo?

— Sim, quando eu era pequena cheguei a estudar algumas…

— Algumas? - O herdeiro sorriu, complacido. - Então temos uma feroz lutadora embaixo de tanta beleza?

"Você não tem ideia", Shina sorriu. Por melhor que ele fosse no tatame, ele não seria páreo para uma amazona. Mas naquele dia ela não era uma amazona, ela era uma Duquesa.

Sentiu um par de mãos envolvendo sua cintura em um abraço delicado, porém íntimo. Um tanto íntimo demais para uma cultura como a de Dubai, mas num ambiente fechado como aquele não era nada escandaloso.

— ...Meu benzinho é quase uma perita em artes marciais, desde os tempos da escola. Foi o que ela me disse… - O nariz de Milo roçou de leve em sua orelha, e ele a apertou um pouco contra seu corpo. - ...Agora você vê a encrenca onde eu me meti?

O herdeiro sorriu na direção de Milo, que sorria candidamente de volta.

— Ah, mon amour, não fala assim. - Shina aninhou-se a cabeça dela no vão do pescoço dele. - Sheikh Hashid vai achar que eu te trato mal. E eu sou tão boazinha para você…

Ele cheirava a perfume e um pouquinho de uísque.

— Uma mulher que sabe lutar e luta pelo que quer. - O herdeiro assentiu. - Poucos homens tem essa sorte, Excelência.

— Obrigado… Dodi. - Milo meneou a cabeça numa mesura, ainda sorrindo.

— E você... Milo — O herdeiro agora o encarava com um olhar tão malicioso quanto desafiador; não era um homem acostumado a não ter o que queria. - Também sabe lutar?

Shina sentiu seu pulso acelerar. O tal Dodi era um bom lutador, disso não restava dúvidas depois de sua performance hoje. Mas nem no melhor dos seus melhores dias ele seria adversário para Escorpião. Que, aliás, já mandou algumas pessoas dessa para a melhor por muito menos do o filho do Sheikh estava fazendo agora.

— Não como o meu benzinho. - Para sua surpresa, Milo deu uma risada gostosa e a virou de frente para encará-la com aqueles malditos olhos azuis cor de céu que ele tinha. - A gente ainda vai esticar a noite. - Ele entrelaçou os dedos atrás de suas costas. - Lembra?

— Claro! - Ela lhe devolveu o sorriso.

— ...Nos acompanha, Dodi?

— Hoje, não. Mas creio que teremos a oportunidade de nos vermos novamente… No Baile do Azamara?

— Você vai? - Milo perguntou, ainda sorrindo.

— Eles tem heliponto, não tem? - Ele acenou, já se afastando. - Foi um prazer, Excelências…

As mãos de Milo continuavam em sua cintura enquanto ele a guiava para o carro que os levaria para a 'escapadinha'.

Que não era a limusine dirigida pelos agentes da CIA disfarçados de seus seguranças. Era um táxi, comum e corrente, para quem Milo pediu que os levassem ao Emirates Palace assim que entraram os dois no banco de trás.

As ruas da cidade, tintas com um tom quase dourado pela luz morna dos postes de iluminação, ficavam cada vez mais amplas; as casas e prédios cada vez mais luxuosos. Tudo tão diferente do Santuário, ela pensava, e por um momento viu a si mesma no reflexo de sua janela.

As orelhas estavam enfeitadas por um par de solitários de brilhante; os cabelos presos, cobertos por um xale fino. Sua boca pintada de rosa, os olhos delineados com um lápis preto na parte de cima, os cílios compridos pelo rímel que Marin um dia lhe disse que ela devia usar - a japonesa não vivia sem esse negócio, agora ela entendia o porquê.

Ela estava bonita. Um "bonita" diferente do que ela sempre associou a si mesma no Santuário - uma beleza que ela sabia que tinha, mas que não lhe era bem vinda, muito menos cultivada. Do que adianta uma amazona ser bonita? Nada, não adianta de nada.

Mas ali ela via uma função para seu 'estar bonita': Estar bonita ali, agora, a deixava feliz. Porque a achavam bonita. Porque isso a fazia desejável.

Uma duquesa, uma princesa.

"Você está se enganando", Disse-lhe uma parte de si mesma - aquela que sempre dizia que ela não devia sonhar demais, querer demais, esperar demais das coisas. Ela não era uma duquesa, não era nobre, não devia se apegar em coisas de um mundo que não lhe pertencia, mas…

"Só um pouquinho", Sussurrou para si mesma quando viu à sua frente o inacreditavelmente belo Emirates Palace. "Só por hoje…"

— Vem - Ela disse, e Milo não resistiu enquanto ela o guiava pela mão até a passarela principal, ladeada de palmeiras e chafarizes cujas águas, iluminadas por luzes artificiais, pareciam ouro derretido.

O palácio - porque aquilo não era um hotel, aquilo era um palácio - era imenso, inteiro em arquitetura árabe com pés-direitos maiores do que muitos prédios que ela já vira, e todo iluminado para se parecer um sonho dourado de mil e uma noites, coroado pelo teto iluminado de azul profundo decorado por arabescos. E quando entraram no hotel, no lobby luxuoso como um palácio de sultões, quando foram conduzidos até o (exclusivíssimo) club L'Étoiles…

Não conseguia evitar um sorriso extasiado em seu rosto, nunca pensou que fosse ver alguma coisa assim em sua vida. Um sonho das arábias, seu ceticismo diria para si própria; mas que hoje, só hoje, ela se permitiria viver.

Já havia tanta coisa que ela não se permitia.

Seus dedos, entrelaçados nas mãos de Milo, sentiram a aliança no anelar dele; ela se virou para soltar-lhe a mão para segurar em seu braço. Não se lembrou de fazer algum comentário jocoso, nem de manter o jogo de benzinho-emon-amour em que vinham enroscados há tantos dias; mas parou sua frase em seco quando se virou e viu aquele rosto e aqueles olhos.

Os olhos azuis em que ela tanto pensava, a expressão desarmada que só ela conhecia.

Que ela viu endurecer até formar sua máscara habitual, na medida em que Milo se tornava consciente que deixara sua guarda baixar na frente dela.

OOO

— Mas seus dois danadinhos, isso são horas de voltarem para o cruzeiro?

O sol já dava sinais de apontar no horizonte, mas o Agente Stan, em vez de dormir, resolveu tirar o resto da madrugada para lhes importunar com brincadeirinhas estúpidas.

Milo rilhou os dentes para não soltar uma resposta grosseira.

— Credo, gente. Que caras são essas? - Os olhos do Agente Jack passeavam entre um e outro.

— Jack, na boa, eu já desisti desses dois. Não, sério, se alguém tivesse me pagando pra ir tomar bebidinha no L'Étoiles do Emirates Palace, eu juro que vocês não iam ver minha fuça por uns dois dias. Em vez disso vocês tão aqui, com essas caras de que vieram direto da terapia de casal.

'Terapia de casal é o meu ovo', teve vontade de responder. Não tinha casal nenhum ali, eles sabiam disso, mas em vez de entenderem a situação delicada em que estavam um cavaleiro e uma amazona que não são um puto dum casal, eles ficavam com brincadeirinha escrota porque, vá, decerto não tinham coisa melhor para fazer.

— Estamos cansados, Stan. - Disse, soando mais resignado do que raivoso. - E olha que ainda vai ter mais festa pela frente. Não é?

— Vai. Vai ter o baile daqui a alguns dias, meu deus, que suplício. - Stan rolou os olhos. - Então que, já que vocês estão assim exaustos de tanta badalação… Tirem o dia para dormir, descansar, aproveitar os momentos de privacidade…

— Vai se ferrar. - Milo levantou, pegando uma camiseta e uma calça de moletom e se fechando no banheiro.

Trocou de roupa de forma mecânica, sentindo o corpo protestar pelo cansaço mas sabendo que não conseguiria dormir de forma alguma - então nem adiantava tentar. Melhor seria terminar de exaurir-se e, quem sabe, capotar na cama por puro desfalecimento; para isso uma corrida pela pista do cruzeiro poderia ajudar.

Saindo do banheiro, viu Shina já despida da 'duquesa' e transmutada na amazona de roupas puídas para dormir.

Era pior.

Quando ela abriu a boca para falar alguma coisa, disse de cara que ele ia sair enquanto colocava os tênis de corrida. E correu sem contar tempo nem distância, parando apenas quando ficou impossível ignorar os protestos de suas pernas e de seu fôlego perdido.

Precisou de uns bons minutos até conseguir parar de ofegar, pingando de suor.

Da pista de corrida, andou até uma das sacadas da proa do navio - ainda vazia, a essa hora da manhã - E se apoiou com o cotovelos nas grades para ver o panorama da orla da Abu Dhabi que em breve ficaria para trás.

Cidade bonita, ele pensava. Muito diferente da sua Grécia pedregosa, feita de ruínas milenares e a beleza atemporal dos montes e declives permeando o Mar Egeu, coalhados de casinhas brancas de telhado azul. Abu Dhabi era o exato oposto: Uma cidade desértica na beira do mar cuja beleza foi construída pelo homem na forma de arranha-céus prateados, arquitetura ousada, moderna.

Por que diabos ele estava pensando nisso a essa hora, ele não sabia. Mas não estava achando de todo ruim: Era melhor pensar nisso.

Era melhor do que estar naquela cabine do lado dela.

Cavaleiros de Escorpião tem sentidos mais aguçados do que os das outras pessoas, foi uma das primeiras lições que seu treinamento lhe ensinou.

Bela porcaria isso lhe era agora.

Porque na atual situação, todos os seus aguçados sentidos trabalhavam incansavelmente contra ele.

Seu tato sentia a pele dela quando lhe dava o braço para que caminhassem juntos, quando a abraçava e a tocava para dar veracidade àquele teatro. Seu olfato sentia o cheiro daquela pele, dos cabelos dela quando ela apoiava a cabeça no seu pescoço. Cheiros que se transferiam para a mesma cama onde ele tinha que tentar dormir; o colchão e os travesseiros cheirando a xampu e a ela. Um cheiro que ele conhecia, assim como conheceu seu o gosto naquele maldito beijo em que ele fazia qualquer negócio para não pensar.

Ele tentava, conseguir era outra história.

Mas ele também se lembrava da própria voz, fraca e vacilante, implorando para que ela não o fizesse falar. Para que não usasse isso contra ele.

"Entendeu agora quem brinca com quem?"

Era uma cobra, em todos os sentidos da palavra. Rasteira, ferina, perigosa. Ele sabia no que estava se metendo quando aceitou vir para essa missão, ele sabia a briga que estava comprando no primeiro dia deles na cabine - até esperava por ela. Estava com raiva, estava puto, tinha motivo pra estar, motivo pra dar e vender; e tanto melhor se lhe caísse no colo uma maneira de fazê-la pagar. No começo pareceu que daria certo, a cada alfinetada, a cada ofensa velada, a cada peça a mais daquela encenação. Ele atacava, ela revidava; ela atacava, ele também, e nisso eles iam. Ele achou que odiá-la seria fácil, e ao odiá-la ele se esqueceria do resto.

Não estava esquecendo de porra nenhuma.

Aí acontecia o que aconteceu em terra firme: Uma hora ele a via olhando para algum ponto turístico das cidades onde desciam, ou para o salão de conto-de-fadas, ou para algum dos ricos-e-famosos circulando pelo cruzeiro; esbanjando aquele glamour todo que lhes era especialmente inalcançável, mas que agora eles tinham que mimetizar.

O olhar dela amolecia, se perdia no sonho de uma vida que ele sabia que nem ela, nem ele jamais iam levar.

Então tudo voltava.

E ele estava tão cansado.

De tentar odiá-la como tinha planejado.

OOO

Eis que Shina se viu em um relativamente raro momento sozinha no quarto: Depois que os agentes os deixaram, Milo saiu em seguida sem nem olhar para trás, dizendo alguma coisa sobre 'ir dar uma corrida'.

Não que ela se importasse, mas era visível o quanto ele estava cansado.

Como se estivesse dormindo tão mal quanto ela.

Não que ela não estivesse dormindo porque temia que Milo fizesse alguma coisa durante seu sono. Isso não. Muita coisa podia ser dita de Milo, especialmente durante aquela viagem. Mas que ela temia pela sua integridade física? De jeito nenhum.

Para todos lá fora, Milo se comportava feito um príncipe apaixonado: a abraçava, acariciava seu cabelo, andava de mãos e braços dados. Mas da porta da cabine para dentro ele sequer encostava nela. Era impressionante, aliás, o quanto ele não se mexia na cama para prevenir isso. Ele chegava a sacrificar suas noites de sono para que não a tocasse nem por acidente.

Já ela, não dormia porque ele simplesmente estava lá. Mesmo que eles não se encostassem, ela tinha que dormir e acordar numa cama cheirando a ele - um cheiro que ela conhecia desde aquele maldito dia da confusão na delegacia, que ela sabia que era bom.

Outras vezes pegava a si mesma perguntando-se se, um dia, alguma outra mulher veria o rosto dele perder a expressão dura, os olhos azuis ficarem mais suaves, ou mesmo o meio sorriso contente que ele lhe deu quando viu que ela estava naquele dia em seu quarto - e como ela tinha visto naquele hotel-palácio, enquanto ele olhava para todo a opulência que os cercava.

A simples ideia dessa possibilidade a fazia perder o sono, também.

Aí lá ficava ela de novo pensando nele daquele jeito que não deveria. E querendo. E desejando…

O quê?

Não. Aquilo só podia ser o cansaço - cansaço da falta de uma noite de sono decente, cansaço da batalha verbal diária entre eles, da agressividade velada alternada com o papel que tinham que representar, não importa. Lá estava esse cansaço fazendo aquelas coisas com a cabeça dela.

Ou a carência, Geist diria que aquilo era carência.

Talvez desde antes, quando a cabeça começou a pregar essas peças nela, fosse carência.

"Ficar choramingando pelo Seiya dá nisso", é o que Geist diria. Para em seguida mandar ela botar uma roupa e ir para uma festa em Atenas, arrumar um cara pra passar uma noite. Vá, isso era fácil, mas também não era o que era queria.

Ela queria o Seiya, é o que Geist diria. Mas, como aquele próprio bicho insuportável disse… Ele nunca seria dela.

"Dicas, palavras e fatos não estão te faltando."

O anel de brilhante em seu dedo esquerdo, que antes ela olhava para achar bonito, uma joia que provavelmente ela não veria igual em sua vida… Agora ele pesava uma tonelada.

Deitou na cama, olhando para o teto e pensando que pelo menos nessa manhã ela podia tentar dormir um pouco - pois cedo ou tarde (mais cedo do que tarde, na verdade) teria que continuar aquele teatro horroroso.

Horroroso, sim. Ter que fingir pra todo mundo que era feliz e amada pelo seu maridinho perfeito - justo o que não ia ter nunca ao lado do homem que ela amava. E a cereja do bolo era, ainda por cima, o seu companheiro de cena ser o Milo. Claro que ele seria um homem atraente para qualquer mulher, ela não era cega nem doida de falar que não. E fosse ele um cara qualquer ela já teria há muito tempo chegado nele para propor uma noite, ou duas, ou três…

Só que ele não era um cara qualquer. E ela também sabia que não era qualquer mulher para ele.

Ela sabia porque ele não queria que ela o tocasse fora do teatro do casal perfeito. Sabia, sim. Por mais que ele negasse tudo agora, infernizasse seu juízo com as indiretas e as provocações, por mais que ela quisesse que fosse verdade que ele só queria brincar com ela…

Aqueles olhos azuis, no quarto dele, não eram de um mentiroso.

"Idiota", suspirou para si mesma sem que pudesse ouvir.

Pensar nisso, pensar nele, pensar no que aconteceu… Não era só perda de tempo, era falta de juízo de sua parte. Se houve um tempo em que Milo lhe foi possível, como Geist lhe disse, esse tempo já passou. Ela mesma se encarregou de matar essa chance.

Por isso doía ter que representar, ao lado dele, uma hipotética situação onde tinham o relacionamento perfeito.

Mas por que diabo ela só dava de querer as coisas quando elas ficavam assim, impossíveis?

"Aí junta tudo: Carência, cansaço, secura… e você fica ainda mais na merda do que já está", pensou de si para si.

Fechou os olhos, tentando esvaziar a cabeça para que o sono chegasse.

Pra sua sorte, dessa vez ele veio.

OOO


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Notas finais do capítulo

(1) - Sideways, capítulo 1

(2) - Jidá: Cidade litorânea que abriga o importante porto da Arábia Saudita, e um dos cinquenta maiores portos do mundo. É também próxima de Meca.



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