Bohémienne escrita por Ananda Ayira


Capítulo 15
...à qui on aurait coupé les deux ailes


Notas iniciais do capítulo

[AVISO DE GATILHO: ESTE CAPÍTULO CONTÉM TORTURA!!]
Se você é sensível, eu vou deixar um asterisco onde vai começar a tortura e vocês podem pular pra onde virem o asterisco de novo, okay? Okay! ♥ Amo vocês!

Título (continuação do anterior): "...a quem cortaram as duas asas"
Linkzin da música pra quem quiser lembrar: https://www.youtube.com/watch?v=dGWI8RrVKiU

Esse eu fui mais rápida porque fiquei inspirada! ♥ Bjs até os reviews!! :*



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Diante do altar da Virgem Maria, paramentado com a toalha e o corporal de linho alvíssimo. O jovem padre rezava consigo mesmo.

— 1Confiteor Deo omnipotente; Beatae Marie, semper virgini; Beato Michaeli archangelo; Sanctis apostolis et omnibus sanctis... — Iniciou o rito. Sentindo-se o mais impuro pecador.— quia peccavi nimis.

Cogitatione...— Sussurrou quando ergueu os olhos do altar e da imagem da Virgem, distraído pelo som de tamborins e castanholas; era aquela menina cigana que vinha dançando sua dança infame e pecaminosa através da nave da catedral em direção ao altar.

—  Verbo... — Continuou. Ela vinha para ele com os movimentos voluptuosos. Erguia e girava a saia mostrando as pernas torneadas e os pequenos pés. Os cabelos de fogo se agitavam em seus movimentos e rodopios.

— Et opere... - René a sentia fazê-lo arder em uma febre corrupta de pensamentos, fantasias e desejos carnais que lhe expurgavam a santidade de sua alma. E deixou um suspiro lhe escapar quando estremeceu violentamente ao vê-lo curvar-se diante dele no altar, revelando as curvas femininas que escondiam sua blusa e corpete.

Mea culpa.— Exclamou quando ela ergueu os olhos abrasados de promessas profanas para ele.

Pondo a hóstia debaixo de seu pé delicado, ela agachou-se. Pondo-se com o rosto de frente para ele. Ela entreabriu os lábios, ainda o fitando com as chamas altas do inferno em seus olhos claros. Como podia tão pura cor, levar tão depravado sentimento?

Mea culpa.— Repetiu batendo no peito quando ela se pôs de pé em acima do altar.

Ela, então, tomou o cálice de vinho nas mãos e deu-lhe goles, porém não engoliu, retendo o líquido que quase lhe transbordava entre os lábios. E inclinou-se sobre o sacerdote. 

Mea maxima culpa.— Sussurrou a máxima do Confiteor, esticando-se para os lábios da cigana que abriu pondo os dela sobre os dele os abriu, derramando o vinho sobre sua boca.

Contorceu-se com o gosto de fel quente. E, quando abriu os olhos, fitou o teto de sua cela. O sonho ainda lhe repercutia na mente e sentia no seu corpo as chamas do inferno que o haveriam de consumir.

Como se atreviam tais visões lhe profanarem o sono? Como ousavam tais sensações apoderarem-se do corpo e espírito que consagrara a seu Deus eterno?

Foi ela! Maldita cigana! Cigana do inferno! Enviada para lhe destruir a virtude. Ia lhe destruir a vida!

Logo que amanheceu, bateram à porta. O padre, que não dormira a noite toda, atendeu prontamente:

— Bom dia, padre Sebastian. - Cumprimentou o jovem.

— Bom dia. – Respondeu ele.

O homem, calvo e de olhos como mar-verde, parecia ansioso e não fez cerimônia em revelar o motivo de estar ali tão cedo.

— René, sabes que foi designado à esta igreja pelos seus conhecimentos, não apenas sobre as leis de Deus, mas também das leis dos homens. – Começou ele.

— Sim, estudei não apenas o Direito Canônico. – Falou ele. – Mas aonde quer chegar com isso, padre. Está me deixando ansioso, assim como você...

— Vieram convocar um padre para o julgamento de uma bruxa-cigana que assassinou um homem. – Disse, com pesar. – Eu tenho que celebrar as missas e...

— Eu irei, padre. E tratarei de que sejam cumpridas as leis. Tanto as de Deus, todo-poderoso, quanto às dos homens, criaturas imperfeitas que são. – Respondeu René.

— Deus lhe abençoe, padre René d’Haine! – Exclamou o homem. – Deus lhe abençoe!

Palácio da Justiça, Île de La Cité – manhã do dia 03 de junho...

Na grande e sombria sala do Palácio da Justiça, a luz do sol penetrava muito mal pelas janelas ogivais. Algumas velas tiveram de ser acendidas, para iluminar a visão dos escrivães, conselheiros e juízes. Nas paredes, inúmeras flores-de-lis, símbolo de França. E um grande Cristo pendurado de sua cruz sobre suas cabeças.

Quando René chegou, teve de driblar a multidão de curiosos plebeus que cercava o tribunal em si. Juntou-se aos outros componentes do julgamento: os mestres das petições da Casa do Rei, o escrivão do foro do Parlamento, o advogado do Rei e outros cargos, desses inventados para parecerem gente importante.

— Monsenhores, - Clamou o primeiro homem que veio de pôr contra a acusada. – olhai que triste cena, venho lhes contar. E conto porque a mão divina do Deus-único escolheu poupar-me! – Neste momento as atenções eram todas na testemunha. – Saíamos eu e meu amigo, que me era muito querido, da taverna onde saciamos nossa fome após um grande dia de trabalho. Este meu amigo tinha família, sabe? Uma esposa que agora amarga uma viuvez tão precoce. Foi quando nós vimos. Ah! Quem me dera jamais ter visto tal coisa. Quão vil, quão monstruosa visão! Que até agora me causa calafrios...

O silêncio era total, para que o homem contasse a história.

— Saímos da taverna e vimos a rapariga. Aparentava desorientada, faminta, mal mantendo-se de pé. Sendo os dois muito cristãos e caridosos, voltamo-nos para ajudá-la. A caridade, vê? É uma virtude dos bons! Porém, mal sabíamos, esta escrava do Diabo queria que apiedássemos dela, para dar o bote.

Ele gritava. Para que até quem não estava dentro do Palácio da Justiça e quisesse ouvir.

— Quando a ajudávamos a se manter de pé, percebemos o cheiro do sabá. Ela clamou um demônio que andam com ela. Ele veio, apunhalou meu amigo com um punhal e ela se alimentou do sangue do meu amigo. De certo, pretendia alimentar-se do meu também!

Uma grande algazarra se seguiu do depoimento do homem.

— Silêncio! – Pediu o senhor presidente do julgamento. – Testemunha, havia mais alguém com a acusada?

— Havia um demônio, em forma de rapagão. Mas estou certo de que era um demônio porque apareceu quando ela chamou e desapareceu quando ela ordenou. – Falou o homem. – Por isso, alego: Esta mulher!...

Neste momento a testemunha apontou a acusada. Pálida; os cabelos outrora graciosos e brilhantes, estavam sujos de terra e sangue; os lábios rachados e os olhos fundos de tristeza;

René a reconheceu. Era a cigana da catedral, a cigana que lhe infestara de pesadelos, a cigana que atentava contra tudo que ele tinha de mais sagrado!

— Esta mulher, não há dúvidas, que é uma feiticeira!

— Não o sou! – Berrou a acusada, desvairada.

— Calada! – Exclamou um dos homens metidos em togas.

E um dos soldados que a segurava deu-lhe um tapa no rosto. Desgraçada, ela caiu sobre o banco, incapaz de dizer mais nada, de chorar mais uma lágrima sequer, branca como uma vela e apagada.

— Oficial, trazei a segunda testemunha.

Todos os olhos se voltaram para a porta lateral do tribunal. Por onde entrou outro homem. Este também, se colocou entre a acusada e os conselheiros que a julgavam.

— Monsenhores, caso não circulais pela cidade, em específico a Île de La Cité, não veem que esta rapariga que julgais é uma cigana. Conhecida por andar na companhia de um gato negro. Desses que são a encarnação dos demônios e amigos das bruxas, escolhidos pelo próprio Diabo para proteger suas meretrizes. E vejam, ela até tem o fogo do inferno em suas cores!

Ele foi até Hélène e puxou seus cabelos, com tanta força que alguns fios se quebraram e saíram na mão do homem.

— E a quem não se lembre: estes ciganos dançam e riem quando estão possuídos. E ela dançava como uma verdadeira serva daquele que reina sobre os maus nas chamas do Inferno!

Outra algazarra se fez. Ecoavam-se “Culpada!”, “Bruxa!”, “Ela é serva do Demônio, matai-a!”.

— Rapariga, - dirigiu-se a ela o presidente. – és da raça cigana, que é dada aos malefícios. Tende cumplicidade com os demônios, implicados no processo, na noite do primeiro dia deste mês de junho do ano de nosso Senhor 1499, apunhalado e assassinado, de concerto com os poderes das trevas, com ajuda de feitiços e demônios, um homem de bem, comerciante, Henri Marchal. Tu negas?

— Sim, eu nego! – Exclamou ela, com um tom de fúria. Estava de pé e os olhos cintilavam.

O presidente, porém, não se contentou.

— Então como explicais os fatos que vos são imputados?

Ela, todavia, respondeu com a voz entrecortada.

— Não sei. Foi outra pessoa que desferiu o golpe quando eu gritei por socorro!

— É isso! – Confirmou o juiz. – O demônio. Ela confirma que chamou a ajuda do demônio!

— Não! – Gritou ela. – Não foi isso! Eu gritei por ajuda porque...

— Porque és uma rapariga do Egito, dada às bruxarias. – Interrompeu um dos conselheiros.

Um segundo conselheiro tomou as palavras e disse com doçura ao juiz:

— Tendo em vista a teimosia da acusada em confessar, requeiro a aplicação da tortura.

— Deferido. – Disse o presidente do julgamento.

Hélène tremeu. Mas levantou-se à ordem dos soldados que a escoltaram para a outra porta à lateral do tribunal. Seguiram ela, um escrivão o mestre de petições. E, representando os padres do oficialato, o padre René d’Haine.

A porta fechou-se atrás deles. Suspendeu-se a audiência. Os conselheiros começaram a reclamar:

— Rapariga desavergonhada do inferno, – Disse um deles – fazer aplicar a tortura quando ainda não tomamos o desjejum ainda!

*


Depois de subir e descer alguns degraus, por corredores tão escuros que mesmo à luz do dia era necessário a luz de lâmpadas, Hélène, rodeada pelo lúgubre cortejo foi empurrada para uma sala espantosa.

Não haviam janelas, mas não faltava claridade. Ela emanava de um forno aberto num buraco na parede; onde ardia um grande fogo, apenas uma grade segurava as chamas ali. Nessa grade descansavam duas barras de ferro, com dentes grandes e espaçados. Haviam, pendurados nas paredes e postos sobre mesas, instrumentos horríveis. Que ela não quis perguntar-se o uso.

O mestre de petições, virou-se para ela, muito docemente:

— Minha querida, persistes em negar? – Indagou.

— Persisto. – Respondeu ela.

— Acredite, que será bem doloroso para nós, nesse caso interrogar-vos com esses meios.

Os soldados, então pegaram nela, pelas correntes das quais estavam atadas as mãos de Hélène. Penduraram-na em um gancho que pendia do teto. E rasgaram sua blusa, de modo que suas costas ficaram expostas, do pescoço até onde começava saia na linha dos quadris. Não haviam lhe feito nenhum mal – ainda- mas ela gelou com a ação.

René tremeu junto com a menina. Os cabelos sujos dela, foram jogados por cima do ombro para não atrapalhar o processo.

O mestre das petições pediu à René que desta vez o representante da Igreja interrogasse a acusada.

— Menina, - Falou ele, tremendo. Tentando não olhar a pele da cigana e não desejar estar beijando cada centímetro daquele dorso limpo, salvo algumas sardas sobre os ombros. – pela terceira vez, persistis em negar os fatos de que sois acusada?

— Persisto. – Respondeu ela, de cabeça erguida. – Sou inocente.

Monsieur Riviere, vamos começar? – Disse bruscamente o procurador do Rei.

Riviere era um homem de cabelos longos, faces duras e olhos que não viam a piedade há muito tempo. Como torturador, não tinha tempo para inocências. Ele apanhou uma chibata de couro entrelaçado.

— É uma pena. – Disse ele, antes de desferir o primeiro golpe.

Ela não gritou, apenas retesou os músculos. Mas o vergão marcou suas costas. Dois, três, quatro e cinco golpes. E ela não gritou, apenas gemidos baixos. Seis, sete, oito, nove golpes. No décimo ela deu um grito, mas não o suficiente para considerar como uma confissão.

E, novamente, René perguntou:

— Confessais os delitos do processo?

— Sou inocente. – A voz dela saiu fraca. Mas firme.

— E como explicais o que ocorreu?

— Eu não sei. – Disse ela.

— Negas as acusações? – Insistiu ele.

— Todas elas! – Exclamou, endireitando-se.

Os músculos em suas costas, moviam-se com ela ajeitando-se para apanhar mais. Depois de cinco golpes, alguns dos vergões se abriram e deles caia o sangue da cigana.

— Continuai. – Disse René, virando o rosto. Dividido; várias vezes desde que a viu, pela primeira vez, pensou nela despida, em como seriam seus sons quando alegre.

Agora via-a. Despida, gemendo, chorando. Mas ela não gritava, nem pedia por piedade.

Onze, doze, treze, quatorze e quinze. Ela cuspiu o próprio sangue que lhe encheu a boca. Dezesseis, dezessete, dezoito, dezenove. Vinte e ela gritou de novo.

— Pare! – Gritou o padre.

René aproximou-se dela, deu a volta na corrente e falou-a olhando nos olhos, semicerrados de dor da menina.

— Eu posso livrá-la disso, mas você precisa confessar. Diga que fez aquelas coisas, confesse seus pecados e posso absolve-la!

Ela tremeu. E dos seus lábios escorreu sangue, como no sonho de René escorrera o vinho.

— Nunca. – Sussurrou ela.

— Continue.

Do vigésimo ao trigésimo golpe, todos ela gritou. Gritos que não são descritos de tão horríveis. Daqueles que não tem ortografia na língua humana.

— Pare! – Exclamou o mestre à Riviere. – Confessais?

— Tudo o que quiserem! Eu confesso. – Ela soluçou. – Eu confesso! Eu confesso!

— Escrivão! Escreva a partir deste momento: – Solicitou o mestre. – Cigana, confessais a vossa participação nos ágapes, sabás e malefícios do inferno? Responda.

— Confesso. – Chorou ela.

— Confessais que és capaz de invocar o demônio, porque ele é seu senhor?

— Confesso.

— Confessais e ratificais ter, com a ajuda do demônio, na noite do primeiro dia deste mês de junho do ano de nosso Senhor 1499, apunhalado e assassinado, de concerto com os poderes das trevas, com ajuda de feitiços e demônios, um homem de bem, comerciante, Henri Marchal?

Ela pendeu a cabeça para trás, a boca ensanguentada, os olhos cheios d’água.

— Confesso.

Naquele momento Hélène tinha tudo quebrado dentro de si. Não eram as costas, as feridas abertas em sua pele. Era seu coração que sangrava mais que tudo.

— Desprendam-na e reconduzam-na para a audiência. – Disse o mestre.

— Vamos! – Disse René, apoiando-a, quando ela despencou da corrente. – Não há males irreversíveis. Gritaste a tempo! Ainda poderás dançar, mon ange.

*

A sala de audiência a recebeu com um murmúrio de prazer. Os que assistiam porque agora iniciava o último ato do espetáculo que estavam ali para ver. Da parte dos juízes porque logo iam desjejuar. As horas haviam avançado, mas o lugar continuava escuro.

Hélène entrou com os braços cruzados sobre os seios, para não deixar a blusa cair pela frente. Ensanguentada nas costas e a boca. Ocupou seu lugar diante dos homens.

— A acusada confessou. – Disse o mestre das petições, sem deixar transparecer como estava envaidecido pelo sucesso da tortura.

— Cigana, - perguntou o presidente. – confessastes todos os delitos de magia e de assassinato de monsieur Henri Marchal?

Abandonada, machucada, ainda sangrando, ela soluçou:

— Confesso o que vocês quiserem. – A voz saiu como um sussurro dentre as gotas de sangue. – Matem-me logo!

Hélène não via mais quem estava falando com ela. Estava em um estado letargia, causado pela dor que lhe infligiram.

— No dia que aprouver ao rei nosso senhor, a cigana será conduzida numa carroça, em camisa, pés descalços, com a corda no pescoço, diante da grande portada de Notre-Dame, onde pedireis perdão com uma tocha de cera e, daí, sereis levada para a Praça de Gréve, onde sereis enforcada na forca da cidade; em reparação aos crimes, por vós cometidos e por vós confessados, de feitiçaria, de magia e de assassínio contra a pessoa do senhor Henri Marchal. Deus tenha a vossa alma!


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Notas finais do capítulo

Nota 1: Esta oração é o Ato de Contrição, é um costume antigo rezá-la antes de confessar os pecados no sacramento da Confissão. Atualmente, não é muito utilizada, eu mesma nunca a rezei. Só chegava falando "Padre, perdoai-me porque pequei", bem mais fácil que lembrar disso tudo aí.
Mas uma tradução pra vocês: "Eu confesso à Deus todo-poderoso; à Santa Maria, sempre Virgem; à São Miguel arcanjo; aos Santos Apóstolos e todos os santos; que tenho pecado. Por pensamentos, palavras e ações. Por minha culpa, minha culpa, minha tão grande culpa..."

Me digam o que acharam nos reviews, eu tô com tanta saudade de vocês, aff!!! Bolem teorias pro final dessa história, quem sabe você não me dão ideias, hum?...
Um grane beijo, mes amours!! ♥♥♥♥♥♥♥♥♥♥♥



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