Who stalk the stalkers? escrita por HellFromHeaven


Capítulo 19
O Watcher




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A situação acabou se acalmando no salão de festas depois de inúmeras lágrimas e abraços. Nunca me ensinaram a me livrar de um corpo, então eu não seria de muita ajuda naquele lugar. Deixamos as duas a sós e seguimos com nossas vidinhas. Aquela noite marcou o fim de nossa grande operação, o que significava que meu tédio logo voltaria a governar os meus dias e me jogar na masmorra da desolação e me submergir em um mar de drama e exagero. Pensava nisso em transe no ônibus de volta para meu apartamento. Ana e Jason conversavam sobre algum assunto aleatório que acabei perdendo em meio à minha viagem astral pela dimensão bizarra e desagradável das minhas paranoias. Senti-me mal por não ter participado do assunto e mais uma vez me peguei praguejando contra minhas paranoias malditas, que insistiam em tirar minha atenção das interações sociais ao meu redor.

Naturalmente, foi uma viagem monótona seguida de uma noite cheia de belíssimos nadas, acompanhados com uma maratona de livros de fantasia. Sem computadores para hackear ou sistemas para invadir, só me restou afundar minha cara na leitura e esperar pelo próximo contato do meu amigo detetive. Os créditos referentes aos trabalhos realizados e às informações extraídas do Chacal foram devidamente depositados em minha conta e os números eram inéditos para mim. Poderia comprar várias coisas se estivesse a fim, porém notei que meu espírito consumista estava morto. Não pensava nisso há anos, já que meu salário quando trabalhava sozinho era apenas o suficiente para me manter vivo em péssimas condições alimentares. Sempre disse isso em meus monólogos internos, mas finalmente tive a prova concreta de que estava nessa vida de stalker única e exclusivamente pela satisfação pessoal que descobrir informações alheias dava à minha vida estranha.

Assim, duas semanas se passaram na mesma velocidade que cinco anos. Descobri mil e uma maneiras para falhar miseravelmente na árdua tarefa de vencer o grande e poderoso monstro do tédio. Os únicos dias decentes que passei foram os que saí com Hiperatividade para conversar ou comer pizza em sua casa. Também dei umas voltas com a Daisy para experimentar café pela cidade e até cheguei a sentir falta da Leather. Pois é, nunca imaginei que diria isso, mas até que ela era uma companhia interessante, porém essa mudança era para melhor. Aquelas duas estavam muito felizes juntas e nada mais importava para elas. Ou seja, vários homicídios foram evitados.

Sherlock decidiu tirar uma semana de folga bem merecida e viajou para sabe se lá onde. Eu sei que como um bom stalker meu dever era saber dessa informação… E eu realmente sabia, porém por questões de amizade prefiro me manter em silêncio a respeito disso. Lance saiu em uma reportagem local por vencer um concurso de dança estadual. Achei engraçado o fato de um membro do Eye aparecer na televisão por um motivo totalmente não relacionado a sua verdadeira profissão, sendo capaz de rir desses ignorantes que nunca saberão da verdade a respeito daquele homem extremamente carismático. Entretanto, não pude deixar de pensar que não deveria ser a primeira vez que um dos nossos stalkers era reconhecido pela mídia de sua cidade ou estado. Uma das vantagens de fazer parte do Eye era ter sua identidade em sigilo total mesmo realizando aparições públicas.

Não tive mais contato algum com o trio de stalkers do Campo dos Sussurros  e isso não é nem de longe uma queixa. Depois de ponderar por dias sobre o destino de meus ganhos, decidi aprimorar meu computador para deixá-lo mais seguro e tranquilizar minha paranóias. Elas temiam por uma invasão de Heretic em meus dados mais precisos. Eram completamente sem valor monetário, mas de imenso valor sentimental para minha pessoa. Diferente do que pode parecer, para mim, deixar um computador mais seguro significava realizar um backup de todos os arquivos depois de varrer todo o sistema em busca de possíveis ameaças, tendo certeza de que nenhum vírus ou programa malicioso seria preservado para futuras gerações, depois descartar a carcaça, destruí-la em milhões de pedacinho e comprar uma nova mais potente. Aproveitei e troquei minha cadeira por um modelo mais novo e confortável, troquei a lâmpada balançante do meu quarto por uma luminária decente, reformulei meu guarda-roupa e tranquei minha máscara de caveira em um cofre de fechadura por biometria dentro de um fundo falso embaixo da minha cama. Por quê? Simples, fazer parte do Eye significava que eu não precisaria mais lidar diretamente com os clientes e, por isso, não precisaria mais da minha boa e velha máscara.

O fim destes dias tranquilos em que me sentia mais um cidadão comum do que um stalker foi marcado por uma reunião na boa e velha lanchonete que passei a chamar de Doce Paranoia. Sherlock encerrou suas férias e disse que tinha três novos possíveis serviços para discutir conosco. Resolvi navegar pelo A.S.E. apenas por diversão na manhã do encontro e me deparei novamente com o que boa parte da comunidade stalker via como o “prêmio supremo”: a identidade e paradeiro do Watcher, o fundador de nossa amada organização. Esse desafio sempre me chamava a atenção, mas nunca tive real interesse em aceitá-lo. Tenho certeza de que o atrativo principal era sua dificuldade, o que também contribuía para meu desinteresse. No fim, abandonei as buscas, desliguei o computador e tirei meus pijamas, vestindo uma calça jeans escura e uma camiseta branca com manchas e formas geométricas pretas de mangas curtas. Passei a me alimentar melhor e respeitar os limites do meu corpo, aumentando as horas de sono e pensando em fazer exercícios. Exatamente, apenas pensando porque o certo é resolver um problema de cada vez e eu precisava planejar muito bem esse obstáculo antes de colocá-lo em prática. Enfim, pelo menos estava sem olheiras e me sentindo mais energético, mesmo sem café. Devorei três fatias de torrada com manteiga antes de sair de casa, trancando a porta com a cave e sua nova fechadura por biometria escondida ao lado da maçaneta. Pois é, ser paranoico custa caro.

O encontro estava marcado para o horário do almoço, então saí de casa por volta das nove da manhã e cheguei à lanchonete onze e meia. Petúnia, Dalila, Daisy e Hiperatividade já estavam ali, na última mesa próxima da janela. Deveriam reservar aquele lugar para nós, como clientes VIP do lugar. Claro que na verdade isso faria sentido nenhum, já que nos reuníamos a cada duas ou três semanas e às vezes isso acontecia no condomínio de nossa amiga sadomasoquista. Aceitei de vez que era impossível vencer o espírito da zueira que residia em nosso grupo e que nunca mais recuperaria meu posto de pontualidade, pois tenho certeza de que Ana viraria a noite apenas para me encarar com seu sorriso de satisfação. E lá estava ela, com essa expressão tão característica olhando em minha direção. Ela usava um vestido branco com alguns babados e sem estampas, com seus olhos negros sem lentes e um chapéu branco de abas longas sobre cabelos negros e lisos até metade de suas costas. Daisy usava uma camiseta rosa claro sem mangas e sem estampas e uma saia preta até um pouco acima dos joelhos, com seus cabelos presos em um rabo de cavalo. Dalila vestia uma camiseta listrada de mangas compridas e uma calça preta. Petúnia parecia até uma menina comportada com seu longo vestido florido e um colar de pérolas com seus loiros cabelos curtos devidamente penteados. Sentei-me ao lado de Ana e pedi um café para a garçonete.

— Agora que você não se incomoda mais com nossa pontualidade isso está perdendo a graça. - disse Hiperatividade.

— Pensei muito sobre o assunto e decidi aceitar que dói menos. - disse.

— É o melhor que você pode fazer, senhor S.G. - disse Daisy. - Essa maluca conseguiu até me arrastar para essa provocação.

— Eu levo a zueira muito a sério, menina. A vida é curta demais para não passar todos os dias sorrindo que nem uma idiota.

— Acordou filosofa a nossa diva. - debochou Petúnia.

— Minha querida, eu sou boa demais para ser verdade.

— Eu realmente invejo a sua auto estima, Dark Rose. - disse Daisy, em um tom de lamentação. - Sou completamente incapaz de deixar de pensar que todos estão sempre falando mal de mim nas minhas costas.

— Só não digo que você precisa de ajuda profissional, porque eu tenho certeza de que meu caso é o mais grave do grupo. - disse.

— Contra fatos não há argumentos. - disse Dalila.

Antes que eu pudesse revidar a provocação daquela pequena fantasminha, o sino da porta anunciou a chegada dos membros que se atrasaram para chegar cedo. Lance adentrou o local com óculos escuros espelhados, uma jaqueta jeans preta sobre uma camiseta branca folgada e calças jeans escuras e apertadas. Sherlock usava sua fiel boina voltada para a esquerda, uma camiseta azul clara com estampa de peixes e calças jeans. Os dois homens cruzaram o salão e sentaram-se à minha frente.

— Boa tarde, senhores e senhoritas. - disse Sherlock. - Como foram as semanas de folga?

— Ótimas, pude dar altos rolês com minhas pequenas. - disse Hiperatividade.

— Muito tediosas. - respondi. - Não gosto de pensar que estou me tornando viciado em trabalho, mas eu meio que não tenho o que fazer além de investigar as vidas alheias.

— Você é uma pessoa triste, Skull Guy. - disse Petúnia. - Eu e meu amorzinho aqui aproveitamos para fazer uma viagem romântica com tudo incluso.

— Aproveitando essa deixa, eu tenho um comunicado a fazer. - disse Dalila. - Juan de La Montana está oficialmente morto. Todos os bodes expiatórios sofreram “acidentes” infelizes, assim como todos os outros membros menores. Uma grande coincidência, não?

— Obra do destino isso aí, só pode. debochou Hiperatividade.

— Enfim, isso significa que me tornei stalker em tempo integral e gostaria de agradecer a todos por me recrutarem ao invés de venderem minha identidade no A.S.E. Caso o fizessem, estaria morta, sem vingança e sem minha cara metade. Obviamente não nessa ordem.

— Mérito seu, meu amorzinho. - disse Petúnia. - Se não fosse uma fantasminha tão boa, nunca pensaríamos em tê-la por perto.

— É exatamente como a Leather disse. - disse Sherlock. - Só buscamos pessoas que possam acrescentar algo ao Eye. Uma filosofia que herdamos do nosso fundador.

— Agora que tocou nesse assunto, Sherlock, gostaria de esclarecer umas coisinhas. - disse. - Assim como Leather Face, você foi um dos fundadores dessa organização e conheceu o Watcher antes que ele surtasse e desaparecesse da face da Terra, certo?

— Cedo ou tarde vocês sempre acabam perguntando isso. - dramatizou o jovem detetive. - Sim, eu conheci nosso grande líder… Mas não pessoalmente. Ele era jovem, um prodígio como eu gostava de pensar e tudo indicava que ele morava nesse estado, só não tenho certeza da cidade. Seu sumiço foi uma grande surpresa para mim. Sabia que ele estava com problemas internos e que suas paranoias o consumiam de maneira anormal até mesmo para um stalker, porém sempre acreditei que ele iria superar. No fim, acredito que o Eye tenha sido a causa de sua ruína.

— Nós criamos nossos próprios monstros. - disse Daisy.

— Algo nessa linha de raciocínio, Fire Head. Enfim, eu tentei procurá-lo com a ajuda de alguns stalkers, entretanto isso se mostrou uma tarefa que beirava o impossível. O cara era um gênio da computação e só precisou de umas aulinhas e uma mãozinha de um outro stalker para criar o A.S.E. Esse ajudante, por sua vez, já não está mais entre nós. Foi atropelado por um velocípede e caiu de costas no trilho do metrô, sendo esmagado como um tubo de pasta de dentes.

— Seria cômico se não fosse trágico. - disse Hiperatividade.

— Eu acho muito cômico. - disse Petúnia.

— Você é um caso especial. - disse o detetive. - Ele estava tentando encontrar algo dentro do programa. Acreditava que existia algum tipo de pista ou mensagem deixada pelo Watcher, mas… Hoje em dia acho que não passava de um boato. O fundador deve ter morrido de uma forma banal ou simplesmente cansou dessa vida e arranjou um emprego normal.

Estava ouvindo atentamente a história de nosso detetive e suas palavras ligaram um pequeno interruptor em minha mente. Entrei em uma espécie de transe e senti que algo em minhas memórias estava me chamando. Vasculhei as entranhas das minhas lembranças, mergulhando em um mar de paranoias e pensamentos negativos que contrastavam com algumas ilhas de acontecimentos felizes. Em meio a esse cenário abstrato e imaginário, me deparei com os arquivos de texto que encontrei enquanto analisava a estrutura dos códigos do A.S.E. por puro tédio e que armazenei em meu celular por precaução.

— Gente, eu estava perdido em uns devaneios aqui e queria voltar um pouco o assunto. - disse.

— Manda a ver, caveirudo. - disse Hiperatividade.

— Em duas ocasiões diferentes eu me peguei navegando pelos códigos estruturais do A.S.E. quando estava imerso no mais profundo tédio. Em meio a essas expedições encontrei dois arquivos de texto contendo 18 números em cada, sendo a grande maioria deles zeros. Não sabia do que se tratava, mas gravei no meu celular caso um dia viessem a ser úteis e… Bem, talvez isso esteja relacionado com o que aquele stalker dizia.

Todos os meus companheiros ficaram boquiabertos com a minha revelação e o silêncio tomou conta da mesa. Hiperatividade era a única que sorria e foi a primeira a escapar do transe em que os coloquei. A garota se levantou, colocou as mãos em meus dois ombros e me sacudiu com força.

— Tu é brabo demais, cara! Como você acha uma coisa dessas e não conta para ninguém? Queria a recompensa toda para você né safado.

— Juro que eu só não fazia ideia de que eram importantes. - disse, tentando me defender. - Tinha pensado sim em contar para vocês, mas estava tão concentrado nos últimos serviços que simplesmente fugiu de minha mente.

— Skull Guy, sei que você foi o responsável por essa descoberta, mas precisamos investigar isso. - disse Sherlock. - Vim aqui com um caso de uma pintura famosa que desapareceu, um filho de um político que foi sequestrado e rumores sobre um local de desova da máfia, mas tudo isso pode esperar para sempre, se for o caso. O paradeiro do Watcher é a informação mais valiosa dentro do A.S.E., além de todo o valor sentimental que isso tem para mim.

— Acalme-se, Sherlock. - disse. - Nunca tive a intenção de guardar isso só para mim. Dê-me um minuto e lhes mostrarei os números.

Hiperatividade me soltou de seu surto de empolgação e eu fui capaz de mover meus braços novamente e pegar o celular que estava em meu bolso direito da calça. Desbloqueei o aparelho com minha senha complexa e acessei rapidamente o arquivo em que salvei os números de 18 dígitos cada, um embaixo do outro. Deixei o celular em cima de mesa e me afastei para que todos pudessem analisar o achado.

Horas de discussão se seguiram depois daquele ato, me forçando a configurar o celular para que sua tela nunca apagasse. Na maior parte do tempo fiquei batalhando internamente com minhas paranoias que estavam desesperadas com o fato de meu celular estar completamente desprotegido e ao alcance de todos aqueles stalkers. Porém, pude participar ativamente de algumas teorias. Todas estavam sendo descartadas até que Daisy se distraiu da conversa principal para olhar em seu aplicativo de mapas o endereço de um local que visitaria no dia seguinte. Em uma brilhante epifania, a garota decifrou o enigma, iluminando a lanchonete com a conclusão de que se tratavam de coordenadas de latitude e longitude que intercalavam com zeros para passarem despercebidas. Não era possível saber qual dos dois códigos se referia à latitude e qual seria a longitude, o que nos dava dois possíveis locais. Entretanto somente um deles se encontrava em uma cidade próxima à Baía dos Pecadores. Usando um aplicativo de mapas, pudemos marcar o local que visitaríamos logo após sair da lanchonete: o subúrbio da Selva de Concreto.


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