Singularidade escrita por SayakaHarume


Capítulo 8
II. Singularidade




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Vikram respirou fundo quando viu o arquipélago surgir no horizonte. Era a primeira vez que respirava com facilidade desde sua última visita.

Dessa vez, ele havia vindo para ficar. Iria alugar uma casa, reformá-la e ficar ali até que a construção do armazém terminasse. E mesmo que não soubesse no que sua ligação com Aklen se transformaria, sabia que o seguiria até o fim do mundo se fosse requisitado.

Quando desembarcou, não conseguiu se impedir de procurar por Aklen entre as pessoas no cais, mas não ficou realmente surpreso por não vê-lo. Não que isso tenha feito alguma diferença para sua crescente insegurança. Ele apenas queria saber onde eles se encaixavam. Ele engoliria os próprios sentimentos de bom grado se isso significasse ficar perto de Aklen.

Depois de se instalar na hospedaria, tomou a trilha conhecida pela floresta, um dos caminhos mais rápidos para chegar onde o armazém estava sendo construído e o porto ainda sendo restaurado. Ainda que fosse na maior parte uma trilha plana, em alguns pontos era necessário atenção, uma vez que várias bifurcações foram feitas em outras direções da ilha. Vikram não estava prestando atenção.

Para seu mérito, ele percebeu logo depois que estava subindo uma ladeira ao invés de estar descendo uma. Xingou-se em um tom baixo e se debruçou um pouco na beirada, se apoiando em uma árvore, para conferir se tinha se desviado muito. Duas coisas aconteceram: primeiro, ele percebeu que a trilha em que ele deveria estar serpenteava logo abaixo; segundo, ele aprendeu que árvores não mereciam confiança.

Ele mal registrou quanto tempo levou a queda, tentando se agarrar na vegetação para amortecê-la, mas a dor aguda rasgando sua perna exigiu toda sua atenção. Aterrissou sem graça nenhuma sobre sua coluna, e se apressou em sentar-se para conferir o estrago em sua perna, quando foi surpreendido por uma voz.

― Vikram? ― E tudo mais havia desaparecido, por que Aklen estava ali.

Aklen percorreu os últimos passou entre eles e se ajoelhou na frente de Vikram, que o mirava atentamente com sua respiração levemente ofegante. Três semanas tinham se passado desde a última vez que tinham se visto. Três semanas desde que os dedos de Aklen estiveram em seu cabelo e que seus lábios haviam se tocado incendiando o universo. Parecia que tinha sido três séculos.

Seu olhar devia ter pesado sobre Aklen, que levantou os olhos. Vikram viu os lábios dele se entreabrirem, como se estivesse prestes a falar alguma coisa, mas nenhum som foi ouvido.

Vikram pensou em que palavras poderiam ser ditas naquele momento. Que palavras não quebrariam aquela mágica frágil que existia entre eles.

― Aklen... ― Vikram viu o lábio inferior dele tremer e tocou-lhe o rosto, sem ao menos pensar, e a esperança surgiu ao ver que seu toque não fora rejeitado.

― Vikram, eu... ― Aklen começou, mas as palavras se perderam. ― Eu não... Eu...

Talvez era demais. Cedo demais. Nenhum dos dois sabia o que esperar, e nenhum dos dois havia se preparado para aquele encontro. Mas eles estavam juntos agora, e nem um cataclisma poderia separá-los.

Aklen colocou sua mão direita sobre os olhos de Vikram e encostou sua testa na dele, respirando fundo. Era demais, era demais. Ele estava perdido, estava perdido e tinha acabado de se encontrar.

― Eu não consigo pensar, Vikram ― sussurrou, fechando os próprios olhos. ― Me diga alguma coisa, qualquer coisa. Me fala sobre algum lugar que você conheceu.

Vikram, todo coração batendo e sangue pulsante, mal conseguia controlar sua própria respiração, sua mão ainda no rosto de Aklen, Aklen perto, perto demais. Queria ver o rosto que tanto sentira falta, mas com os olhos cobertos, estava sujeito a aquelas sensações desorientadoras, e só conseguia pensar em um lugar, um lugar que ele desejava mostrar a Aklen se este permitisse.

― Quando... quando eu sai de casa, depois de dois meses paramos na costa desse pequeno país para negociar Deus sabe o quê, nunca me interessei por essa parte. Passamos umas semanas por lá e nos levaram para conhecer a nascente do rio Akleanos e eu juro por tudo que é mais sagrado que é o lugar mais lindo que eu já vi na vida. ― Vikram narrava, a voz tão suave que Aklen não teria ouvido se não estivessem tão próximos. ― É de onde seu nome veio, sabe? Faz sentido você ter esse nome.

Alguns instantes se passaram e Vikram, com sua mão livre, pegou o pulso de Aklen e retirou a mão que cobria seus olhos. Eles se encararam como se estivessem se vendo pela primeira vez e, ao mesmo tempo, como se conhecessem a milhares de anos. Aklen então entendeu o que sua mãe quis dizer. O mundo tinha acabado de se transformar sem ter mudado uma coisa sequer.

― Por que faz sentido? ― Aklen conseguiu perguntou, sua respiração mais calma, mas ainda irregular. Ele podia jurar que Vikram ouvia as batidas de seu coração, principalmente depois que Vikram contornou seus lábios com o polegar.

― Faz sentido um lugar extraordinário como Akleanos nomear alguém extraordinário como você.

Aklen riu por um instante, antes de morder o lábio.

― Não faz sentido ― sussurrou. ― Você não deveria nem querer olhar pra mim. Não depois do que eu fiz. Não depois de você ter visto quem eu sou de verdade.

― Você é um lutador e um sobrevivente e acredite, eu não consigo tirar meus olhos de você por exatamente esses motivos. ― Vikram sorriu de uma maneira que faria uma geleira derreter. ― Quando você me beijou...

― Eu não sei o que deu em mim, eu não deveria... ― Aklen começou a se afastar, mas Vikram o impediu.

― Bem, então temos que descobrir, porque eu realmente tenho a esperança que aconteça de novo. ― Suas mãos contornaram as maçãs do rosto de Aklen, a mão esquerda acariciando a cicatriz que existia ali.

Aklen riu, seus olhos se desviando por um instante, mas logo voltando a encarar Vikram, de repente um pouco melancólico.

― Eu não sei se você é demais ou se eu que não sou suficiente. Talvez seja as duas coisas.

― Não é o suficiente? ― Vikram não escondeu a surpresa em sua voz ou em seu rosto. Ainda completamente incrédulo continuou, falando o que para ele era o fato mais óbvio do mundo. ― Eu passei a minha vida toda procurando por você.

― Por mim? Vikram, dificilmente alguém como eu...

― Você me acalma. ― Vikram o interrompeu, seus olhos tão vulneráveis que Aklen quase o beijou novamente. ― Desde que eu era criança eu tinha algo dentro de mim, essa sensação de que algo estava faltando. Eu era tão obcecado em saber o que era que se tornou difícil respirar. Eu tive que deixar minha casa, percorrer meio mundo, mas o tempo todo era você. Eu não vou pedir por nada mais que você esteja disposto a me dar, mas se me deixar ficar perto de você, vou te seguir a qualquer lugar.

Aklen levantou sua mão, mas quando estava quase tocando o rosto de Vikram, hesitou, desviando seu olhar para seus dedos. Fechou sua mão em punho e sentiu os calos que anos de trabalho colocaram ali, o exato oposto das mãos que estavam em sua face.

― Você é o viajante. Não seria eu que deveria seguir você? ― Seu olhos não tinham se levantando novamente.

Vikram segurou seu pulso, e só então Aklen notou que estivera contornando os calos e cicatrizes com a ponta dos dedos.

― Eu não preciso ir a lugar nenhum que você não esteja. Se quiser ver o mundo, eu vou com você. Se quiser ficar nessa ilha, eu também fico.

Dessa vez, Aklen realmente recuou, sentando em seus calcanhares, seu olhar sério e dolorido, mas um sorriso triste em seus lábios.

― Vikram, você não pode fazer isso. Não pode me colocar acima de tudo. Não é justo com você. Não quando eu não posso te dar o mesmo. Eu não sei como fazer isso. ― Riu sem humor algum, jogando a cabeça para trás e olhando o céu por entre as árvores. ― Talvez minha mãe esteja certa. Eu não sei abrir mão da dor. ― Olhou novamente o jovem sentado a sua frente. ― Eu nem sei se está tudo bem em te querer assim. Parece como se eu estivesse te arrastando para o fundo do poço onde eu estou.

Vikram tomou a mão de Aklen nas suas, seus olhos passando pelas árvores por alguns instantes. Com a mão livre, esfregou o polegar no lábio indicador.

― Lembra... ― começou, voltando a olhar para Aklen. ― Sabe aquele dia em que eu bebi demais e acabei perguntando por que tivemos que nos conhecer nessas circunstâncias? ― Aklen assentiu. ― Acho que esse era o motivo. Você foi quem me ajudou a começar a superar a morte dos meus pais. Você não julgou meus sentimentos de culpa, nem me deu palavras que nada significariam sobre como eu não deveria me sentir culpado. Você mantém meu equilíbrio. Eu posso estar sendo pretencioso, mas eu gostaria te tentar ser a pessoa que mantém o seu. Eu não vou te tirar do fundo do poço, suas palavras, não minhas, aliás, mas se eu ficaria mais do que feliz em ser seu ponto de apoio. ― Vikram mordeu o lábio inferior, sua voz se tornando mais suave a medida que continuava. ― Você pode contar comigo, Aklen. E quanto a todo o resto... eu estou como você. A única coisa que eu tenho certeza é que não quero ficar longe de você.

― Eu também não quero ficar longe de você ― Aklen confessou, um sorriso carinhoso se espalhando por seu rosto. ― Talvez possamos descobrir o que isso significa juntos.

― Com certeza. ― Vikram sorriu brilhantemente, e Aklen podia jurar que ele ofuscava o sol. E então Vikram tentou se levantar e sua face se contorceu em dor. ― Ugh, eu tinha esquecido da minha perna!

Aklen se apressou em ficar de pé e ajudar Vikram a se levantar.

― O que você estava fazendo aqui, de qualquer maneira? ― perguntou passando o braço de Vikram por cima de seu ombro para ajudá-lo a andar.

― Eu estava tentando chegar à obra, pra procurar por você.

― Vikram, essa trilha leva pra parte residencial da ilha. ― Aklen deixou o queixo cair, mas qualquer um de seus irmãos podia ver a bronca que se formava em seus olhos.

― Sério? ― Vikram não pareceu se incomodar muito. ― Eu podia jurar que...

― O que te deu a ideia que você poderia andar por aí sozinho? Se eu não tivesse passado por aqui Deus sabe o que teria te acontecido com essa perna ― ralhou bruscamente, mas quando Aklen revirou os olhos, Vikram riu.

― E o que você estava fazendo aqui? ― perguntou em retorno, e foi pego de surpresa ao notar o rubor na face de Aklen.

― Eu não sabia quando seu navio ia chegar.

A resposta foi dada em um tom simples, e Aklen nem por um segundo olhara na direção de Vikram, e por isso não viu o sorriso se espalhar pela pele morena. Aklen havia planejado recebê-lo e nada no mundo faria sumir a emoção crescente no peito de Vikram.

—x-

Duas semanas depois e Vikram estava se instalando em uma pequena, mas confortável, casa, quase no meio da floresta. No momento que colocou os olhos na construção, soube que era ali que queria morar e não havia quem o demovesse da decisão. Muitos até duvidavam que alguém do continente se adaptaria a morar no meio da floresta, mas Aklen sabia que Vikram havia sido criado no campo.

― Todo mundo acha que mais cedo ou mais tarde você vai voltar correndo para a hospedaria, onde vai ter pessoas para limpar e cozinhar pra você ― Aklen estava sentado no chão da sala, ao lado de Vikram. Os dois haviam, com a ajuda de outras pessoas que já haviam saído, acabado de trazer as coisas do mais novo habitante da casa para dentro.

Vikram riu, revirando os olhos.

― Isso é injusto. Eu sai de casa a anos atrás. Eu trabalhei na cozinha do navio por um tempo ― retrucou, se espreguiçando, seus ossos estalando confortavelmente. ― Morar aqui vai ser fácil comparado a cozinhar para dezenas de marinheiros famintos.

― Por que você trabalhou na cozinha? ― Aklen se virou parcialmente para encará-lo. ― Sempre imaginei que ajudar na navegação fosse ser mais a sua praia.

― Muito novo e muito inexperiente ― Vikram encostou a cabeça na parede e fechou os olhos. Sua expressão tão pacifica que era possível que ele estivesse para cair no sono. ― No meu tempo livre eu aproveitava para aprender. Talvez em alguns anos eu realmente possa ser um navegador e não enfiar o navio em uma falésia.

Aklen riu e, voltando a se sentar contra a parede, encostou a cabeça no ombro de Vikram. Eles eram todos toques casuais desde o dia na floresta, cheio de confissões e promessas. Pequenos toques que faziam o pulso acelerar e dedos se encherem de vontade de tocar e explorar.

Porém, nenhum dos dois tinha pressa, ambos curiosos para descobrirem como se encaixavam um na vida do outro. Naqueles dias nada mais havia acontecido além de carícias em bochechas, afagos em cabelo e dedos se entrelaçando. Eles sempre se olhavam e sorriam, a expectativa percorrendo suas veias, sabendo que aquele caminho que estavam percorrendo só levaria a um lugar.

― Vamos lá. ― Aklen rompeu a quietude, batendo duas vezes com as costas da mão na coxa de Vikram. ― Eu trouxe um presente de boas-vindas. ― E começou a se levantar.

― Sério? ― Vikram abriu os olhos e um sorriso, e aceitou a mão que Aklen lhe oferecia.

― Eu trouxe ontem a noite pra cá. ― Aklen o guiou para o andar de cima, onde havia apenas um quarto. ― Espero que não se importe com a invasão.

Vikram estava prestes a responder quando o único móvel naquele quarto chamou sua atenção. Era uma estante, mas imediatamente ele percebeu que não era a que ele havia trazido consigo de Alto Capital. Quando aproximou-se, percebeu que toda a lateral era ricamente entalhada. Para um observador estrangeiro, pareciam imagens aleatórias, mas para Vikram...

― São as minhas viagens. ­― Ele sorriu, seus dedos no contorno de um barco. ― Você contou minhas histórias em imagens aqui. ― Se virou para Aklen, o sorriso crescendo ainda mais.

Aklen estava parado perto da escada, trocando seu peso de um pé para o outro, um sorriso discreto em seus lábios.

― Eu não sabia se... ― Sacudiu a cabeça, rindo. ― Você gostou?

― Está brincando? ― Vikram riu, voltando sua atenção para os entalhes. ― Eu nunca mais vou me separar disso na vida.

― Eu deixei o outro lado vazio. ― Aklen se postou ao lado de Vikram, observando a madeira. ― Com o passar do tempo, eu vou incluir mais. ― Uma breve pausa. ― O que você achar importante.

Vikram virou o rosto para Aklen, bem ciente das palavras não ditas por trás daquela promessa. Ele já sabia que eles iam encontrar um meio de ficarem juntos, mas era a primeira vez que Aklen falava disso como algo concreto. Ele iria ficar por perto para continuar entalhando a estante de Vikram.

Vikram queria falar algo, responder de alguma forma, garantir que nada o agradaria mais, mas todas as palavras haviam sumido e tudo o que restava era Aklen, que, diante do silêncio, se virou para o outro. Eles ficaram assim, em silêncio, por alguns instantes. Aklen foi o primeiro a se mover, afastando os cachos de Vikram do rosto moreno, seus olhos acompanhando o movimento de sua mão.

― Deveríamos terminar de arrumar a casa ― falou em voz baixa.

― É, deveríamos ― Vikram retrucou no mesmo tom, seus olhos nos lábios de Aklen.

Aklen acariciou o rosto de Vikram com o polegar, fazendo o contorno ao redor dos olhos.

― Eu poderia beijar você ― Aklen sussurrou, seu olhar focado no de Vikram.

― Você certamente deveria. ― Foi a resposta, dada de maneira de maneira tão apressada que fez Aklen sorrir.

O que não o impediu de unir seus lábios aos de Vikram. Foi apenas um toque entre os lábios, mas que penetrou tão fundo que podiam sentir um a presença do outro em suas almas. Aklen se afastou minimamente, mantendo as testas coladas, e Vikram, quase temendo que as mãos em seu rosto se afastassem, segurou os pulsos de Aklen.

― Eu... eu... ― Aklen começou, mas não parecia achar as palavras.

― Apenas seja honesto comigo, Aklen ― Vikram pediu. ― Eu não posso ajudar se você não me disser o que está acontecendo.

Aklen ainda hesitou por um instante antes de sussurrar:

― Não faz sentido você estar aqui. ― Aklen fechou os olhos. ― Não faz sentido que você me queira ou que eu tenha permissão de querer você. Eu fico esperando você simplesmente passar por aquela porta e ir embora. Não faz sentido parecer tão... fácil.

A verdade era que Aklen não sabia como ser amado.

Vikram estava mais que disposto a ensiná-lo.

― Eu não vou a lugar nenhum, Aklen, e eu vou passar a vida provando isso. ― Vikram sussurrou de volta. ― Nem sempre as coisas vão ser fáceis, mas eu prometo que amar você sempre vai ser a coisa mais natural do mundo.

Aklen tremeu diante daquela revelação, mas não impediu Vikram de beijá-lo.

Dessa vez, tudo aconteceu de forma mais frenética. Eram duas criaturas desejosas e ansiosas, mas Aklen vinha sofrendo com a escassez por muito mais tempo.

Eles eram dois garotos perdidos que se encontraram um no outro.


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