Singularidade escrita por SayakaHarume


Capítulo 6
III. Perpendicularidade




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/702873/chapter/6

Vikram estava mais inquieto do que nunca. Sorria para os convidados e retribuía seus cumprimentos, mas não conseguia travar conversa com ninguém. Sinceramente, se não fosse a festa de noivado de seu irmão, ele já estaria no navio rumo a Ilha Sussurrante.

Ravi nunca tinha sorrido daquela maneira na frente de tantas pessoas, e Vikram não podia estar mais satisfeito. Era grato por ele ter encontrado Maya, alguém que entendia perfeitamente sua natureza reservada e era o contrabalanço perfeito. Vikram ergueu sua taça na direção dela ao vê-la olhando para a multidão, procurando por ele. Ela sorriu tão satisfeita que ele quase percorreu o cômodo para abraça-la tão forte que ela ficaria sem ar.

Ao invés de causar tal constrangimento a noiva de seu irmão, ele foi procurar a única outra pessoa que ele tinha vontade de falar. Ruya estava perto da mesa de aperitivos, organizando as bandejas. Ela sorriu discretamente ao vê-lo se aproximar, mas não interrompeu seu trabalho.

― Lamento. Acho que se esta festa tivesse acontecido duas semanas atrás, você teria ganho a aposta, não? ― Vikram comentou, escondendo o sorriso atrás da taça.

― É. ― Ruya riu baixinho. ― Dez moedas de ouro e cinquenta e três de prata, além de dois pães e uma galinha.

― O quê? ― Ele abaixou a taça, entre surpreso e divertido. ― Não, você tem que estar brincando.

― Eu nunca brinco com uma galinha envolvida. ― Ruya piscou um olho pra ele. ― Vai para nossa Ilha nos próximos dias?

― Sim, eu vou. ― Ele não fez nenhuma tentativa de esconder sua animação. ― Não por muito tempo, dessa vez. Volto antes do meu aniversário.

― Oh, eu não sabia que você estava aniversariando. ― Ruya se interrompeu por um momento, pega de surpresa, mas logo sorriu. ― Se me permite perguntar... quantos anos?

― Dezoito. Me tornarei um adulto. ― Um sorriso arrogantemente brincalhão surgiu em seus lábios.

― Você nunca será um adulto, Vikram. ― Ela se afastou, rindo.

― Amém a isso. ― Falou alto o suficiente para que Ruya ouvisse, o que apenas a fez rir ainda mais.

Ele a observou ir, o cabelo cor de areia preso em um coque apertado. O de Aklen estava sempre uma bagunça por causa do vento do litoral e perpetuamente precisando de um corte. Várias vezes teve que se impedir de erguer a mão e afastar as mechas dos olhos ambares de Aklen.

Vikram queria passar seu aniversário com Aklen, mas já havia prometido a Ravi que voltaria para casa e iriam com a família de Maya para a propriedade deles, no campo, onde haviam crescido. Restava então sentir falta da confortante presença daquele que em tão pouco tempo tinha conquistado tanto de sua estima.

― Uma moeda por seus pensamentos. ― Ravi o pegou de surpresa, se colocando ao lado dele. ― Você precisa parar de ser tão distraído.

― Desculpe, estava apenas pensando no arquipélago. ― Vikram deu de ombros. ― Você deveria ir lá, qualquer dia.

― Eu irei. Quero ver como as obras estão indo e conhecer esse seu novo amigo sobre o qual você nunca se cala.

Vikram teve que morder o lábio inferior para manter sua risada em um nível educado.

― Você vai gostar dele. Ele parece um pouco como você. Direto e sem tempo para besteiras. Ah, e dedicado ao trabalho a níveis completamente não saudáveis. ― Cutucou o irmão com o indicador, simplesmente para irritá-lo.

― Eu não sou viciado em trabalho! ― Ravi rebateu, mas riu.

― Sim, você é. ― Vikram revirou os olhos. ― Pobre Maya, não sabe onde está se metendo.

― Oh, calado. ― Ravi chocou seu ombro com o dele. ― Partirá esta noite?

― É. Mas voltarei em breve, não se preocupe.

― Não estou preocupado. ― E Ravi deixou seu olhar se perder na direção de Maya por um minuto, antes de voltar a olhar para seu irmão mais novo. ― Finalmente as coisas parecem estar voltando a se encaixar.

Aklen estava no cais quando Vikram desembarcou, e nenhum dos dois escondeu o sorriso. Por um longo tempo, sem que se dessem conta, não fizeram mais nada do que sorrir um para o outro, enquanto caminhavam para a hospedaria que agora tinha um quarto sempre reservado para Vikram.

― Então ― como sempre, era Vikram que quebrava o silêncio ―, como estão as coisas?

― Oh, minha mãe melhorou ― Aklen falou com o maior sorriso que Vikram tinha visto até então. ― Ainda tem um longo caminho pela frente, mas ela colocou na cabeça que a casa agora é responsabilidade dela. Não quero que ela se sobrecarregue, mas ao mesmo tempo, ela mete muito medo para alguém tão pequena.

Vikram mirou Aklen em uma confusa surpresa, até deixar um sorriso escorregar por seus lábios.

― Fico feliz em ouvir isso. Você nunca falou muito dela.

Os dedos de Aklen foram para a manga da camisa, e Vikram sorriu ainda mais diante disso.

― Não havia muito a falar. Ela está doente, mas está melhorando e eu estou orgulhoso dela. ― Ele mantinha a cabeça levemente abaixada, e mirava Vikram por entre as mechas do cabelo cor de areia. Vikram novamente teve que se impedir sua mão de se erguer. ― Quero mandá-la para Alto Capital em breve, ficar com Ruya. Acho que novos ares vão fazer bem pra ela.

― E você? ― Vikram se ouviu perguntar, uma sensação que ele não sabia identificar em seu peito. Parecia expectativa. ― Tem planos de se mudar para Alto Capital também?

― Quando todos meus irmãos e minha mãe estiverem lá, não terei mais motivos para ficar aqui.

― Eu já te disse que você é incrível? ― Vikram não conseguiu impedir as palavras sinceras e cheias de admiração.

E dessa vez ele viu o rubor atingir o rosto de Aklen.

― É, você mencionou uma vez ou outra. ― Foi a simples resposta.

Aparentemente a temporada de pesca estava para recomeçar, e todos estavam comemorando. Vikram, criatura social que era, se viu preso em abraços de estranhos e com sua taça sendo frequentemente preenchida com mais vinho. Aklen não bebeu uma gota sequer, mas se deixou se sacudido e abraçado pelos ombros por Vikram. Eventualmente, ele conseguir arrastar o amigo de volta para o quarto.

― Você nunca deveria beber, Vikram ― Aklen o jogou em cima da cama com certo esforço.

― Eu estou bem, eu estou bem ― Vikram se sentou na cama, um pouco tonto, e encostou-se à cabeceira. ― Meu irmão estava certo, sabe? Pela primeira vez, as coisas parecem que estão caindo em seus lugares. Me pergunto se eu também.

Aklen nada disse, apenas se sentou na cama e deixou que Vikram falasse.

― Eu nunca deveria ter ido embora ― Vikram falava tão claramente como alguém que tinha bebido feliz toda taça que tinham lhe posto a frente. ― Devia ter ficado, sido um bom filho. Eu deveria ter sido como você, Aklen. Alguém que se dedica a família. Mas agora meus pais estão mortos e eu nunca vou poder dizer a eles que eu sinto muito por ter partido. Nunca vou poder dizer que sinto muito por não ter voltado a tempo, não ter voltado a tempo de ajudá-los. Você deveria ter visto, Aklen, o conselho da cidade estava aterrorizado, não tinha coragem de abrir os portões da cidade outra vez. Foram dias os convencendo que era a única solução, e eu estava certo. Eu deveria ter feito tudo isso antes. Se eu nunca tivesse deixado Alto Capital...

― Você nunca teria sabido que a cura estava aqui. ― Aklen completou a frase em um tom de voz suave. ― Não é sua culpa, Vikram, por mais que você se sinta culpado. Eu estava conversando com a minha mãe um dia desses e ela disse que estava farta de querer voltar no tempo e querer que as coisas mudassem. Também disse que não questionava mais o destino. Não entendi completamente o que ela disse na hora, mas... acho que entendo agora. O que aconteceu, aconteceu. Está escrito em pedra, e por mais que doa, é imutável. Vamos sofrer por isso, mas um dia, vamos olhar para trás e apenas aceitar. Nada vai mudar. Você ainda vai desejar ter tido mais tempo com seus pais, mas a culpa vai ter diminuído. Ainda vai doer, mas você saberá lidar com essa dor de uma forma que ela não nuble as boas memórias.

­― Você sempre sabe o que dizer, Aklen ― Vikram sussurrou, os olhos azuis marejados. ― Eu sou tão incrivelmente sortudo por te conhecer. Por que teve que ser dessa maneira? Por que eu tive que te conhecer nessas circunstâncias? Por que não em Alto Capital, depois de você ter conseguido levar sua família pra lá? Por que não quando eu estivesse fazendo uma viagem de negócios a mando de meu pai, ao invés de uma terapia estipulada pelo meu irmão?

Os dois ficaram em silêncio por um tempo. Aklen deixou seus olhos caírem para a mão de Vikram, e teve que cerrar as suas em punhos para evitar entrelaçar seus dedos nos dele.

― Você se arrepende de ter vindo pra cá? ― Aklen falou em um tom tão baixo que ele tinha a esperança de Vikram não ter ouvido sua embaraçosa pergunta.

Mas Vikram sempre o escutava.

― Não, Aklen. ― Vikram o olhou com os olhos azuis despidos de qualquer reserva. ― Nos últimos tempos, você é a única coisa da qual eu não me arrependo.

Depois de uma ressaca nada divertida para Vikram, mas que provocou vários risos em Aklen, ambos entraram em um acordo mútuo e sem palavras que aquela noite não deveria ser mencionada. Eles se contentaram em continuar em sua rotina, com a leve mudança de que agora, com a volta da temporada de pesca e com os serviços de Aklen sendo disputados pelos pescadores, Vikram passava bastante tempo no cais, ora conversando com os pescadores, ora apenas observando Aklen trabalhar.

Foi em um desses dias em que Vikram conheceu Sumer.

Não foi algo planejado. Aklen apenas precisava de uma das ferramentas que estava na casa, e nem pensou em questionar quando Vikram o seguiu. Por sorte, Derin não estava em casa, tendo ido passar alguns dias em uma ilha vizinha, supostamente procurando emprego. Não havia viva alma que ainda acreditasse nisso.

Sumer estava sentada na varanda, e sorriu educadamente para o amigo do filho. Vikram corou e se atropelou nas palavras e isso fez o coração de Aklen doer, mas ele também não pode evitar de sorrir.

Porém, Sumer ainda não conseguia realmente se engajar em longas conversas, e Vikram logo entendeu isso. Os dois fizeram suas despedidas e Vikram se virou de lado para não encarar deliberadamente Aklen beijando o rosto da mãe. Só quando estavam na metade do caminho rumo ao cais eles retomaram a conversa.

― Você parece muito com a sua mãe ― Vikram comentou. ― Ela parece bem.

― É, ela está melhorando. Alguns dias ela ainda não sai do quarto, mas... a melhora dessas últimas semanas está me deixando realmente esperançoso. ― Aklen jogava o alicate de uma mão para a outra, distraído.

Vikram pesou os pós e contras em perguntar o que tanto queria saber a meses, mas nunca tivera a coragem. Dessa vez, resolveu arriscar.

― E seu pai?

― Provavelmente está bêbado em algum bar de uma das ilhas. ― Aklen não escondeu o desprezo na voz. ― Ele não é importante.

Vikram assentiu e resolveu não pressionar por mais detalhes.

― Logo você não vai mais ter que se preocupar com ele ― disse, ao invés. ―Você vai embora com o resto da sua família.

― Assim que o entreposto comercial e o armazém estiverem prontos. ― Aklen sorriu, satisfeito, e mordeu o lábio inferior. ― Então estarei livre pra fazer o que eu quiser.

Tinha tudo para ter sido um dia rotineiro. Vikram saia da hospedaria, prendendo a espada ao cinto, pronto para se encontrar com Aklen e irem investigar a floresta ao redor da obra, junto com outros empregados. Aparentemente um porco do mato tinha se perdido por ali e a noite provocava o caos por toda a região. Aklen estava parado perto da taverna, e sorriu discretamente assim que viu Vikram. Começava a se tornar frequente essa troca de sorrisos e olhares no lugar de olás e outros cumprimentos. Nenhum dos dois realmente dava atenção a que isso podia significar.

E então, alguém rosnou o nome de Aklen, e Vikram viu o rosto de seu amigo se virar e sua expressão se transformar em puro horror. Logo o motivo de tal reação foi identificado como o alto e truculento homem que marchava em direção a Aklen.

Vikram não ouviu o próprio grito, mas o sentiu sair de sua garganta quando o primeiro soco atingiu o rosto de Aklen e ele correu para separar a briga. Não foi o único, e quando alcançou o local, outros já tentavam afastar o homem de Aklen, sem muito sucesso. Vikram não pensou, não quando tal homem acertou um chute nas costelas de Aklen, que tinha caído no chão.

― Fique longe dele ― rosnou de forma feral e desembainhou a espada, não hesitando um instante a colocar a lâmina ao longo do pescoço do desconhecido.

Isso o fez parar, para não acabar cortando o próprio pescoço, e quem o segurava se afastou um passo. Seja lá quem fosse esse homem, apenas olhou para Vikram, cheio de desprezo.

― Não se meta em assunto de família. ― O olhar do homem era cheio de ódio, mas também indicava o seu nível de embriaguez.

Aquele, Vikram percebeu, era o pai de Aklen.

― Eu não vou me repetir ― Vikram retrucou, aproximando ainda mais a espada do pescoço de Derin.

Ele sinceramente não sabia o que teria feito se a mão de Aklen não tivesse se colocado sobre seu braço, tentando fazê-lo baixar a espada.

― Minha mãe sumiu ― Aklen sussurrou, a dor quase totalmente escondida em sua voz. A mão de Vikram se apertou ao redor do punho da espada. ― Por favor, Vikram.

Vikram ainda sentia o sangue pulsando em seus ouvidos quando baixou a espada.

― Se tocar nele outra vez, eu arranco a sua cabeça ― cuspiu as palavras para Derin antes de se virar, agarrando o ombro de Aklen e tirando os dois dali.

O lado bom de uma pequena comunidade era que notícias se espalhavam rápido e todos se voluntariavam a ajudar. Então, não demorou a ter várias pessoas na floresta ao redor da casa de Aklen, indo em diversas direções, procurando por Sumer. E ainda assim, mesmo sendo o menos familiarizado com a área, foi Vikram que a encontrou.

Foi um caso de sorte, realmente, uma vez que ele não estava prestando atenção aonde estava indo. Apenas cortava a vegetação com a fúria ainda acumulada em suas veias, tentando de alguma forma apagar a imagem do rosto cheio de terror de Aklen. Vikram tinha sido cego. Devia ter percebido antes o que acontecia debaixo do teto daquela pequena casa.

Ele provavelmente teria percorrido a ilha inteira naquela raiva cega se não fosse a voz que surgiu a alguns metros de distância:

― Você está realmente furioso. ― Vikram se virou surpreso, apenas para ver Sumer sentada em uma rocha, encostada em uma árvore.

Ela estava enrolada em um xale, os pés descalços. Seu rosto estava apático, mas também era possível ver que ela havia chorado.

― Senhora Sumer, estávamos preocupados. ― Ele suspirou, tentando acalmar seus pensamentos enquanto andava até ela. ― Eu vou conduzi-la até em casa agora.

― Ele descobriu que eu sai, não foi? ― Sumer não se moveu. ― Apenas Aklen se importaria a esse ponto de mandar procurar por mim, mas ele nunca voltaria tão cedo pra casa. Minha pobre criança... ― Ela fechou os olhos, como se estivesse com dor, e encostou a cabeça na árvore. ― Aklen está sempre com tanto peso nos ombros... Eu não queria ser mais um.

― Não se preocupe, senhora Sumer. ― Vikram se ajoelhou diante dela. ― Vocês estão saindo daqui. E Aklen não está mais sozinho.

― Por favor, ajude meu menino. ― Sumer olhou para Vikram, os olhos que ela havia passado para o filho cheio de lágrimas. ― Ele cresceu cedo demais.

As horas que se seguiram foram confusas. Vikram guiou Sumer de volta para Aklen, que agradeceu profundamente, mas se recusou a olhá-lo nos olhos. Manteve a cabeça baixa todo o tempo, e Vikram não sabia se queria gritar com ele ou abraçá-lo. Escolheu voltar para a floresta, e não pensou em nada enquanto deixava o tempo passar. Apenas usava sua espada em toda a vegetação em seu caminho.

Quando voltou para a hospedaria, seus músculos estavam cansados e doloridos, e uma grande sensação de derrota se apoderava dele. Provavelmente teria passado a noite batendo a cabeça na parede se não fosse por Aklen esperando, sentado na ponta da cama.

― Você está saindo daquela casa. ― A voz de Vikram saiu mais dura do que ele esperava, porém mais vunerável também.

Aklen riu, e passou as duas mãos no rosto, cansado. Ele parecia ter mil anos quando voltou a olhar para Vikram. Só então foi possível identificar o que estivera em seu olhar desde o momento que Sumer fora encontrada. Era vergonha.

― E pra onde eu iria, Vikram? ― O sorriso de Aklen partiu o coração de Vikram, e ele achou que nada mais poderia remendá-lo.

― Pra Alto Capital ― Vikram se ouviu dizer, e não se importou em esconder a ponta de esperança. ― Meu navio sai amanhã. Pegue sua mãe, seus irmãos, e vem comigo.

― Eu agradeço, mas eu não vou fugir. Eu não tenho motivos pra isso. ― Aklen se levantou e se aproximou o suficiente para tirar uma folha do cabelo de Vikram. ― Você não entende...

― Então me explica! ― Vikram praticamente rosnou em frustração, se afastando de Aklen. Jogou a espada em cima da cama e sentou-se na cadeira, virado de lado para Aklen.

― Eu quero sair dessa vila da mesma maneira que eu vivi aqui. De cabeça erguida. Eu não vou fugir com o rabo entre as pernas. ― Aklen ergueu a mão quando Vikram quis interrompê-lo, sabendo bem o que o outro ia dizer. ― Não é orgulho. Acredite, se a situação realmente fosse ruim, se ele tivesse tocado em um dos meus irmãos ou na minha mãe, eles estariam naquele navio com você, amanhã.

― Mas não você. ― Vikram passou o polegar pelo lábio inferior, se impedindo de mordê-lo.

― Não eu. ― Aklen se encostou na porta, de braços cruzados. ― Ele nunca bateu em nenhum dos menores. Em Ruya algumas vezes, a muito, muito tempo. Eu sou o único. Eu não vou mentir, eu pensei em fugir várias vezes. Mas se eu fugir, alguém fica para trás. Eu não posso levar todos comigo. Por isso eu fiquei. Eu trabalhei e juntei o suficiente para mandar um por um para a cidade. Eu não vou fugir e nem me esconder, Vikram.

― Ele poderia ter te matado hoje.

― Eu sei. ― Aklen suspirou e bateu a parte de trás da cabeça na porta, de leve. ― Ele não ficava assim a um tempo. Quando chegou em casa e a mãe não estava, ele achou que eu a tinha mandado para Alto Capital, com os outros. Ele não se importa tanto com os meninos. Ele os vê mais como fonte de renda. Mamãe é diferente.

― Eu quase o matei hoje ― Vikram confessou, nenhum traço de vergonha e arrependimento em sua voz.

― Ele não vale a pena. ― Aklen voltou a encará-lo. ― Eu não queria que você tivesse visto aquilo. Queria que continuasse me vendo como alguém que... ― Desviou o olhar.

― Ninguém pode mudar a forma que eu vejo você, Aklen ― Vikram sussurrou, pela primeira vez no dia, realmente sentindo a fúria ir embora. ― Você é o melhor amigo que eu tive em anos.

― E você é o meu. ― Aklen se descolou da parede e a passos lentos, veio se postar atrás da cadeira de Vikram. ― Eu não deveria ter deixado você sozinho hoje. ― Começou a puxar os gravetos e folhas que estavam presos nos cachos castanhos.

― Você precisava cuidar da sua família. ― Vikram fechou os olhos, apenas sentindo as mãos de Aklen em seu cabelo. ― Aliás, está tudo bem você estar aqui?

― O pai bebeu tanto que desmaiou. Ele não vai acordar tão cedo. E minha vizinha está em casa, ela realmente estava preocupada com mamãe.

― Aklen? ― chamou, em voz baixa. ― Se ele tocar de novo em você, eu vou matá-lo. Eu não me importo com as consequências. ― Jogou a cabeça para trás, sua coluna se curvando sobre o encosto da cadeira, apenas para ver os olhos de Aklen.

Aklen sorria daquela maneira triste que ele já vira tantas vezes.

― Eu acredito em você ― sussurrou como resposta.

E Aklen não soube o porquê do que aconteceu a seguir. Talvez fosse a luz do pôr do sol nos olhos azuis de Vikram. Ou talvez fosse o cuidado que ele demostrava. Talvez ainda fosse a lembrança da primeira vez que havia entrado naquele quarto, e Vikram tinha segurando seu rosto com gentileza. Aklen não sabia o porquê.

Ele apenas sabia que sem ordem consciente, sua mão tinha segurado o queixo de Vikram, o mantendo naquela posição, o olhando de ponta cabeça, e então o beijou.

Foi por um momento breve, breve demais. Apenas o suficiente para Aklen sentir o pulso de Vikram se acelerar sob seus dedos, apenas tempo o suficiente para Aklen sentir o que poderia ser Vikram retornando seu beijo. Porém, sua mente finalmente acompanhou seus movimentos e ele se afastou.

― Aklen... ― Vikram chamou, se levantando da cadeira, sua mão erguida na tentativa de impedir Aklen de sair do quarto.

Mas era tarde demais, e tudo que restava era uma porta aberta e o som de passos apressados na escada.

Vikram esperou por Aklen até o último minuto possível, mas o Capitão veio avisar que o navio estava pronto para partir e Vikram teve que embarcar.

Pela primeira vez, Aklen não havia vindo vê-lo partir.

Não era nenhum mistério o porquê de tal mudança. A lembrança do motivo ainda fazia os lábios de Vikram queimarem e seu coração querer sair do peito. Tinha sido necessário todo seu autocontrole e a constante repetição de como Ravi estava esperando por ele para Vikram subir naquele navio.

Mas Vikram só conseguia pensar sobre como Aklen o beijou e depois partiu, deixando-o em uma solidão que ele não sentia há anos. Ele queria ver Aklen outra vez, e a cada minuto que se afastava daquela ilha, a vontade apenas crescia.

E foi olhando para a silhueta de Ilha Sussurrante a distância, que Vikram percebeu que havia se apaixonado por Aklen.

Aklen observou o navio se afastar da costa da ilha sentado em um dos morros. Se perguntava se deveria ter ido se despedir, como sempre havia ido. Se Vikram havia esperado por ele, ou se havia ordenado ao capitão para partirem o mais rápido possível. O navio parecia ter partido com algum atraso, mas aquilo podia significar muitas coisas.

Ele estava sozinho. Havia algum tempo que ele estava, mas só agora começava realmente senti-lo. Mesmo depois de Ruya ir embora, e depois Demir, Isin e Demet, era fácil não se sentir solitário. Vikram estava sempre por perto, e mesmo quando não estava, Aklen tinha aquela expectativa pelo próximo momento que o veria para lhe fazer companhia.

Não havia nada disso agora.

Ele apenas olhou o navio se afastar, tendo a certeza que seus sentimentos descontrolados o fizera perder Vikram. E também sabendo que seu coração nunca se recuperaria totalmente disso.

― Estou apaixonado por ele ― sussurrou para si mesmo ―, e o perdi.

Não havia mais como voltar atrás.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Singularidade" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.