Singularidade escrita por SayakaHarume


Capítulo 5
II. Perpendicularidade




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A segunda visita de Vikram ao arquipélago seria mais demorada, e quando ele viu Aklen pela primeira vez depois de sua chegada, agradeceu a Deus por isso. Aklen tinha um hematoma roxo e um corte embaixo do olho esquerdo, e Vikram viu sua mão se mexer por vontade própria, rumo ao local. Por sorte, conseguiu se controlar antes de tocar de fato o rosto de Aklen.

― O que, em nome de Deus, aconteceu com você? ― se ouviu perguntar, ao invés. ― Sua pele vai algum dia voltar a cor normal?

Aklen hesitou um pouco, antes de dar um meio sorriso irônico.

― Vida me aconteceu. Não é grande coisa, já tive piores.

Vikram não se deixou convencer, cada centímetro de si preocupado.

― Não quer que eu dê uma olhada? Seja lá o que te atingiu, se tivesse sido um centímetro acima, você teria que dizer adeus ao seu olho.

― Eu agradeço a preocupação, mas...

― Não, sem mas, nem meio mas. ― Vikram sacudiu a cabeça, voltando aos seus sensos. ― Não sou exatamente médico, mas aprendi a fazer todo tipo de curativo durante minhas viagens e se você não me deixar dar uma olhada, eu vou ter um tópico muito interessante de conversa com Ruya quando eu voltar para Alto Capital.

― Você não se atreveria.

Vikram apenas sorriu um sorriso que faria um gato invejoso de toda aquela charmosa impertinência.

― Isso é um exagero, eu estou bem! ― Aklen reclamou pela quinta vez desde que se sentara na cadeira do quarto que Vikram alugara em uma hospedaria.

― Ficar andando com esse corte aberto pode infeccionar. No mínimo, vai demorar horrores para cicatrizar, então fique quieto. ― Vikram, que tinha por alguns momentos revirado sua bagagem em busca do que precisava, veio até Aklen e começou a trabalhar.

Aklen se calou ao sentir as mãos de Vikram em seu rosto, o colocando em uma posição onde a luz do sol, vinda pela janela, iluminasse o local do ferimento. Ele temia que estivesse evidente que aquilo era fruto de um soco muito bem acertado, e temia ainda mais que Vikram descobrisse os outros hematomas cobertos por sua camisa. Os movimentos eram leves e gentis, o que fez algo se contorcer dentro de Aklen, e ele prendeu a respiração.

Vikram tinha as mãos macias, e ele não sabia o que fazer com essa informação, apenas sabia que estava consciente nos calos nas suas próprias e queria muito escondê-las dentro dos bolsos das calças.

― O corte não é tão fundo, então acredito que a cicatriz será pequena ― Vikram falou distraidamente, concentrado em limpar e aplicar o curativo, sem perceber o desconforto de Aklen. ― Vai parecer pior do que é porque nada cicatriza muito bem recebendo sol, e você não é muito fã de trabalhar debaixo de um teto.

― Melhores pagamentos vem para aqueles que trabalham no cais. ― Aklen tentava se concentrar na conversa e não na gentileza daqueles toques.

― Imaginei. Você sempre trabalhou com barcos?

― Ajudei a construir algumas casas também. E às vezes aceito pedidos de móveis, mas fico principalmente no cais.

― Eu gostaria que você trabalhasse na obra do armazém.

― Agradeço o convite. De qualquer forma, você iria acabar comigo no meio do pessoal. Sou um dos carpinteiros mais experientes e...

― Oh, não como carpinteiro. ― Vikram se afastou um pouco, para permitir que Aklen se virasse pra ele com sua expressão confusa. ― Claro que seus talentos serão bem-vindos, mas gostaria que você trabalhasse na supervisão da obra.

― Eu? ― Aklen piscou duas vezes, completamente pego de surpresa. Ele poderia ter sacudido a cabeça para clarear os pensamentos, mas Vikram ainda tinha as mãos em seu rosto. ― Não, eu não sou qualificado...

― Você responderia ao engenheiro. Não vou colocar aqui um estrangeiro e deixar que ele dê ordens a população, isso seria estúpido. ― Vikram revirou os olhos e voltou a virar o rosto de Aklen, para terminar o que estivera fazendo anteriormente. ― Eu confio em você e acredito que os trabalhadores vão lidar melhor com um deles no comando.

― Você mal me conhece ― Aklen sussurrou.

― Eu posso ser jovem, mas eu já conheci tanta gente, em tanto lugar. ― Vikram se afastou novamente, de verdade dessa vez, recolhendo o material. ― Eu sei reconhecer sinceridade quando vejo, e você usa a sua como um escudo.

Aklen levou sua mão até seu rosto, e sentiu uma substancia oleosa sobre seu corte, que lentamente estava secando e formando uma película. Vikram então lhe estendeu um pequeno pote.

― Continue passando, até fechar totalmente. É um bom cicatrizante. ― Sorria, simpático.

Aklen hesitou antes de pegar o que lhe era oferecido, trocando olhares entre o pote e Vikram. Vikram ainda sorria, o corpo meio virado em direção a janela, mas seu olhar em Aklen, sem vacilar.

Aklen nunca tinha visto olhos azuis como aqueles.

― Obrigado.

Os dias passavam e Vikram caía de amores por aquele arquipélago, se perguntando como nunca tinha pensado em visitá-lo antes. Tinha decidido viajar rumo a nações no outro lado do mundo, mas nunca parado em um conjunto de ilhas a algumas milhas de casa.

Aklen tinha se tornado uma companhia constante. Assim que ele terminava o que quer que precisasse ser feito no cais, ele se reunia a Vikram e o apresentava a partes da Ilha Sussurrante e das ilhas vizinhas também. Ele nunca ria muito, mas o sorriso discreto começou a ser permanente diante das loucuras de Vikram. Uma das poucas vezes que Aklen realmente tinha gargalhado havia sido quando Vikram foi atacado por uma coruja.

― Oh, eu nunca vou esquecer isso, nem por um instante ― ele falou, sem ar, enxugando as lágrimas no canto dos olhos.

― Eu fui atacado por uma criatura maligna, ok? ― Vikram choramingou, sentado no chão, mas secretamente deleitado por Aklen parecer mais calmo e relaxado.

Era difícil desviar os olhos dele quando Aklen estava assim. Sua postura mudava, e ele parecia mais o jovem homem que era. E foi em um desses passeios que Vikram descobriu a característica escondida nos olhos de Aklen. Aklen, como ele, tinha a mesma selvagem vontade de ver mais, de descobrir mais.

― Eu apenas não entendo por que você nunca se tornou um marinheiro ― Vikram havia dito certo dia. ― Muitos capitães dariam um braço pra ter você na tripulação.

― Eu tinha que cuidar dos meus irmãos ― Aklen respondia simplesmente, um sorriso sossegado brincando em seus lábios. ― Ou não haveria uma casa pra eu voltar no fim de cada jornada de trabalho.

― Você, meu caro amigo, é incrível ― Vikram nunca se cansava de dizer, e nunca reparava no rubor que tomava conta de Aklen toda vez que o fazia.

Então, quando a noite chegava, eles se sentavam ao redor da mesa no quarto de Vikram e falavam sobre o projeto. Às vezes, falavam sobre o mundo também.

― Quando eu era mais novo eu mapeei todas as constelações do arquipélago ― Aklen contava, sentado no chão com Vikram ao seu lado. ― Eu ficava entediado a noite, quando não tinha muito o que fazer, principalmente quando eu estava trabalhando em uma das outras ilhas e eu não tinha meus irmãos comigo.

― Eu sempre tive essa fascinação por plantas, sabe? ― Vikram confidenciava em retorno. ― Eu ainda tenho e não faço ideia de onde veio. Sei que tinha essa floresta enorme perto de onde eu morava e Ravi e eu passávamos horas lá. Ele empoleirado em uma árvore lendo e eu correndo ao redor em direções aleatórias. Tínhamos uma coleção de rochas. Acho que ainda está guardada em algum lugar. Ravi é um sentimental.

― Só ele? ― Aklen não fez nada para disfarçar seu sorriso.

Vikram riu, jogando a cabeça para trás.

― Não, não só ele. ― Se virou para Aklen, um pouco embriagado de riso e calmaria. ― Você ainda tem seus mapas?

― Estão embaixo da minha cama, em casa. ― Aklen ainda sorria.

― Então você é um sentimental também.

― Eu nunca disse que não era.

Nessas horas, Aklen nunca sabia como interpretar aquele frio na boca do estômago e aquele calor no peito, e Vikram nunca percebia que aquele vazio que tinha sido uma constante em sua vida, sumira.

Vikram voltara para Alto Capital, tendo que monitorar o embarque de alguns materiais que teriam que trazer para a construção, e isso deu a Aklen tempo para pensar. Ele raramente o conseguia fazer recentemente, não com Vikram por perto.

O que Aklen queria de verdade era conversar com Ruya. Talvez ela soubesse por sentido em tudo que estava na cabeça de Aklen. Ele nunca tinha sido tão... tão. Mesmo em temporadas como essa, onde o serviço no cais diminuía por conta da migração dos principais cardumes de peixe, ele sempre procurava outros serviços para fazer, para garantir renda extra. Não dessa vez.

Cada um de seus momentos livres tinha sido dedicado a explorar a ilha com seu mais novo amigo, a rir discretamente da felicidade de Vikram, rir com a felicidade de Vikram.

Era fácil, era simples se deixar gravitar para perto daquela infantilidade anciã. Vikram tinha os olhos de quem tinha visto o mundo inteiro e ao mesmo tempo, tudo era novo e interessante. E eram azuis, tão azuis que era quase fisicamente doloroso para Aklen.

Ele não era idiota, e começava a desconfiar sobre o que isso podia significar. Não é como se algum dia Aklen tivesse se interessado por alguma das garotas da vila, mas sempre achara que isso se devia ao fato dele estar focado no trabalho. Isso até Vikram.

Aklen passou a mão no rosto, sentado na janela da cozinha, observando a vila. Seu polegar passou por cima da cicatriz em seu rosto, e teve que conter um suspiro. Ele ainda lembrava das mãos de Vikram em seu rosto.

Um barulho perto das escadas chamou sua atenção. Esperava que fosse Kaner ou Seven em uma de suas brincadeiras, ou até mesmo Nimet, mas Sumer o provou errado.

― Mãe? ― Ele deixou o queixo cair em surpresa, antes de se apressar em ajudá-la a descer as escadas, ajuda esta dispensada por ela. ― O que está fazendo aqui em baixo?

― A noite está linda e a casa está tão quieta... ― Sumer se abraçou, olhando para os lados. ― A casa não era assim desde que Demir era um bebê.

― Os gêmeos e Nimet estão brincando no quintal, mas logo eles vão entrar. ― Aklen não sabia o que dizer. Não tinha mais esperanças de ver sua mãe no andar de baixo da casa.

― Vamos lá pra fora. ― Sumer se dirigiu para a porta dos fundos, sem olhar para trás para ser se Aklen a seguia. Ela sabia que ele o faria.

As crianças que brincavam de pega-pega não deram atenção a eles. Os gêmeos nasceram de uma Sumer que raramente saia de casa. Aklen nunca conseguiu entender como sua mãe tivera a determinação de trazer Nimet ao mundo. Ele sabia muito bem que Sumer nunca tinha pego sua caçula no colo depois de tê-la desmamado.

Sentaram-se no batente da porta, em um silêncio que era apenas perturbado pelas risadas infantis e Sumer apoiou a cabeça no ombro do filho.

― Eu acho que estou satisfeita ― disse em certo momento. ― Eu não lembrava como era se sentir assim. ― Aklen permaneceu em silêncio, apenas escutando a mãe. ― Tem tanto que eu não lembro. Tantas coisas que eu perdi. Eu chorei tanto pelas coisas que eu não acompanhei. Chorei tanto, tanto. Tantas crianças, e não conheço nenhuma. Eu conheço você, mas você não é uma criança a muito tempo. Porém estou orgulhosa de você. Você não se tornou como ele, e era tudo que eu poderia pedir. ― Uma pausa antes de continuar. ― Você tem raiva de mim.

― Não é raiva. ― Aklen não hesitou e nem mentiu. ― É... abandono. Mas é injusto, eu sei que é. É só que eu amo tanto você e queria que você voltasse a ser como antes.

― Eu não questiono mais o destino. ― Sumer segurou a mão de Aklen entre as suas, e começou a contornar as linhas na mão do filho. ― Você se saiu melhor do que qualquer um poderia esperar nessas condições. Eu apenas estou feliz por ter tido você. Deus sabe o que teria acontecido se qualquer coisa tivesse sido diferente. Eu não trocaria você por nada desse mundo.

― Nem por uma vida longe do pai?

Sumer riu, e Aklen chorou ao ver a semelhança com a semelhança a risada de antes. Era a prova que ela não estava perdida, e ele iria recuperá-la a qualquer preço.

― Não. Nem por um minuto. ― Sumer acompanhou seus filhos mais novos pelo quintal. ― Eu não trocaria nenhum de vocês. O que está feito está feito. ― A voz dela não passava de um sussurro. ― Estou farta de querer voltar no tempo. Eu deveria ter saído dessa casa anos atrás, quando você ainda cabia no meu colo e antes de eu achar que um bebê igual a Derin iria fazê-lo mudar. Eu quero aprender a apreciar o fato que eu só tive filhos que são opostos a ele. Quero conhecer minhas crianças.

― Então você virá comigo? Quando for a hora? ― A voz de Aklen estava trêmula.

― Eu ainda estou doente, Aklen. ― Sumer entrelaçou seus dedos aos dele. ― Mas não quero deixar que isso me separe dos meus filhos. Vocês são as únicas coisas que eu ainda tenho.

― Mamãe... ― Aklen chamou, a voz ainda trêmula, mas um sorriso nos lábios.

Sumer beijou-lhe o canto do olho, enxugando a lágrima que se acumulava ali.

― Meu lindo garoto... ― ela sussurrou, como sussurrava histórias para ele antes de dormir, anos e anos atrás. ― Você já passou por tanta coisa nessa vida. Eu realmente quero que você um dia encontre alguém que cuide de seu coração com a ternura que ele merece.

Aklen riu, sem humor, com o rumo que a conversa parecia tomar. O destino devia estar rindo dele.

― Não deseje o que pode não conseguir, mãe. ― Mas a voz dele não era nada além de suave, de alguém que não tinha expectativas e não se importava em não tê-las.

― Você é inteligente, você é determinado. E você é parecido comigo, o que prova que você é bonito. ― Aklen teve que rir depois dessa. ― Não me contradiga nessa última, sou sua mãe. Alguém vai notar você, e você vai notar alguém.

― E se eu notar alguém que não vai me notar de volta? ― ele perguntou, olhando o céu, se apoiando na cabeça de sua mãe, que por sua vez, tinha voltado a se apoiar em seu ombro. ― E se quem eu notar não puder me notar de volta?

― Você diz da mesma maneira. ― Era possível ouvir o carinho na voz de Sumer. ― Amor é algo bonito demais para ficar guardado e preso. Você tem que deixá-lo voar livre. Algumas vezes, vai voar para longe e você sofrerá, mas depois de um tempo, se tornará uma bela memória. E outras vezes, na única vez que importará de verdade, vai encher o ar e o mundo vai se transformar sem mudar uma única coisa.

― Isso não faz sentido.

― Não discuta com sua mãe.

Aklen riu e beijou a mão dela.

― Tudo bem. Eu não vou.


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