Singularidade escrita por SayakaHarume


Capítulo 4
I. Perpendicularidade




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/702873/chapter/4

Perpendicularidade

1. característica do que é perpendicular. 2. que forma ângulo reto em relação a uma linha ou superfície. 3. que vai dar transversalmente em; que atravessa; que cruza.

 

Aklen estava no cais, ajudando a colocar um barco pesqueiro de volta na água quando Demet se chocou com ele, em uma velocidade que quase o desequilibrou.

― Demet, tenha modos! ― ralhou, mas colocou uma das mechas de cabelo negro atrás da orelha da menina. ― O que houve?

― Chegou notícias de Ruya! ― Demet dava pulinhos, segurando os pulsos de Aklen. ― E chegou um moço bonito procurando por você! ― Ela se virou e apontou um jovem parado um pouco atrás dela, cada centímetro de roupa que ele usava indicando sua fortuna.

Aklen abaixou a mão de Demet, mortificado com o comportamento da irmã. Rubor subiu as suas bochechas quando o estranho se aproximou com um sorriso de quem estava se divertindo com o comportamento da menina.

― Lamento muitíssimo pelo comportamento de Demet ― Aklen começou a falar quando o recém-chegado parou a alguns passos dele.  ― Ela não tem modos.

― Modos são para idiotas! ― Demet cantarolou feliz, o que fez o estranho rir e Aklen querer bater a mão no próprio rosto.

― É isso, já chega. Demet, direto pra casa da velha Meral. ­― Empurrou a menina levemente na direção que queria que ela seguisse, e Demet começou a correr. ― Eu vou saber se você parar em qualquer outro lugar antes, ouviu? ― gritou para a irmã, mas só recebeu uma deliciosa gargalhada em resposta.

― Bem que Ruya me avisou que a pequena Demet ia ser a minha favorita ― o estranho comentou, ainda sorrindo abertamente. Então, estendeu a mão direita para Aklen. ― Me chamo Vikram. Eu conheci sua irmã em Alto Capital, ela está trabalhando para amigos da minha família.

― Aklen ― disse simplesmente, apertando a mão oferecida. ― No que posso ajudá-lo?

― Minha família é de mercadores, e estávamos pensando em fazer um armazém aqui no arquipélago. ― Vikram cruzou os braços nas suas costas. ― Nossas rotas sempre cruzam aqui. Ruya me falou que você conhece bem a região e trabalha em construções.

― Principalmente com barcos, mas também já trabalhei erguendo casas. ― Aklen colocou as mãos nos bolsos.

― Eu amei esse lugar. ― Vikram olhou ao redor, um sorriso satisfeito nos lábios. ― Eu já decidi que vou construir aqui. A questão é onde, qual a melhor localização e eu gostaria que me ajudasse com isso.

― Eu? ― Aklen piscou duas vezes, surpreso. ― Certamente tem outras pessoas mais qualificadas...

― Um engenheiro vai chegar nos próximos dias, mas não é com isso que estou preocupado. ― Vikram fez um gesto de pouco caso com a mão. ― As pessoas daqui é que vão trabalhar nesse armazém e nesse entreposto comercial. Se a ideia do meu irmão der certo, essa ilha vai se tornar um local de parada para todos os navios que saírem do continente. Mas para isso ser possível, preciso mais de conhecimento local do que de um engenheiro que nunca colocou os pés aqui.

― Entendo o que quer dizer. ― Aklen mordeu o lábio inferior, seus olhos se perdendo por entre as construções da vila. ― O outro lado da ilha é provavelmente melhor, mas o cais vai precisar de uma reforma. Porém, vai ter mais espaço para as construções. Se puder esperar um pouco, posso levá-lo até lá.

Vikram sorriu brilhantemente.

― Isso seria ótimo.

Por mais que fosse Aklen o guia, era Vikram que dominava a conversa, falando sobre os tipos de planta e outros locais onde tinha encontrado espécimes iguais ou parecidos, e como ele mal podia esperar para começar a estudar a flora local. Aklen não era antissocial ou algo do tipo, mas também não era alguém que ficava jogando conversa fora. Por isso, foi uma surpresa ao ver que estava sorrindo diante da animação de Vikram, que parecia uma criança inquieta.

― Então, pretende ficar aqui durante as obras? ― Aklen perguntou a uma certa altura da caminhada.

Vikram abriu a boca para responder, mas seu sorriso animado desapareceu para dar lugar a um cheio de tristeza.

― Eu... não sei realmente. Acho que não é uma boa hora para eu deixar meu irmão sozinho. ― Mordeu o lábio por um instante. ― Nossos pais morreram na epidemia.

― Oh, eu sinto muitíssimo. ― Aklen franziu as sobrancelhas, pesaroso.

Vikram tentou forçar um sorriso, mas tinha certeza que não havia saído do jeito certo. Sentia-se grato pelo silêncio que agora Aklen oferecia, sem tentativas de consolo vazias que tantos em Alto Capital tentaram oferecer.

― Estamos tentando descobrir como... ― Mas Vikram não podia ignorar que havia algo nos olhos de Aklen que dizia que ele entenderia e que respeitaria o que não conseguisse entender. ― Eu não sei. Seguir em frente, talvez.

Aklen assentiu, mas não desviou seu olhar dos olhos de Vikram, o que fez este se sentir levemente sem ar. Não estava acostumado a receber a completa atenção de ninguém que não fosse Ravi. Talvez tenha sido isso que o fez continuar falando.

― Eu estava fora da cidade, em uma viagem. Quando cheguei já haviam fechado Alto Capital. Meu irmão teve que lidar com tudo isso sozinho e eu... eu...

― Agora você tem que cuidar dele. ― O tom de voz de Aklen era factual, e Vikram respirou mais aliviado. Não sabia que precisava tanto de alguém para entender porque ele precisava ficar ao lado de Ravi neste momento. Mas o que o surpreendeu foi o que Aklen disse a seguir. ― Parte de você diz que seu irmão pode se cuidar sozinho, mas a outra não quer aceitar isso. Talvez essa primeira parte esteja certa, talvez não. O que importa é que você odeia a ideia do seu irmão sozinho e odeia a ideia de estar sozinho.

Vikram deixou o queixo cair por um instante, o que pareceu despertar Aklen. Aklen desviou o olhar, claramente mortificado pelo que havia dito. Ele não tinha pretendido se intrometer assim. Ele apenas tinha simpatizado com o recém-chegado e quis oferecer palavras amigas, mas...

― É exatamente isso. ― Ouviu Vikram dizer. Novamente mirou os olhos azuis e encontrou surpresa e clareza neles. ― Eu estava tentando pôr em palavras, sabe?

― Eu não queria me intrometer ― Aklen se apressou em falar, torcendo a ponta da manga de sua camisa entre os dedos. ― É só... eu entendo. Eu tenho sete irmãos e sou completamente incapaz de não me preocupar com eles.

― Mesmo que em alguns dias você queira sufocá-los com um travesseiro. ― Vikram deu um meio sorriso.

― Principalmente nesses dias. ― Aklen sorriu de volta, ainda um pouco encabulado.

Voltaram a caminhar, gravetos estralando sob peso de suas botas sendo o único som por um tempo. Vikram, para a surpresa de ninguém, foi o primeiro a quebrar o silêncio.

― Ruya me falou que vocês eram oito, mas eu ainda não consigo imaginar. Como é crescer com sete irmãos? ― perguntou, seu tom animado retornando aos poucos, iluminando a conversa.

― Oh, é ter muitos dias em que você quer mergulhar no mar e nunca, nunca, nunca voltar a superfície ― Aklen sorriu discretamente, apreciando como a gargalhada de Vikram se espalhava pela floresta.

Aklen abraçou Demet uma última vez antes dela correr para o navio, animada com a aventura que a esperava. Isin, antes de segui-la, também abraçou o irmão mais velho, e logo só havia Aklen e Demir.

― A viagem vai levar alguns dias, então fique de olho nesses dois ― instruiu. ― Quando chegarem, Ruya vai estar esperando por vocês. ― Afagou os cachos negros e curtos do irmão mais novo, que trazia uma expressão nervosa.

― Aklen... ― Demir sussurrou de tal forma que quase não foi ouvido no meio do barulho do cais. ― O pai...

― Eu vou lidar com o pai. ― Aklen fez um gesto de pouco caso, embora soubesse muito bem que uma tempestade cairia no momento que Derin descobrisse que Aklen tinha os mandado para Alto Capital. ― Você vai cuidar de estudar.

― Eu já sou velho. ― Demir mirou o pé que cutucava uma ponta do paralelepípedo que começava a se soltar. ― E se eu não acompanhar? E se eu não entender nada?

― Você vai. Você só vai precisar de tempo e dedicação, ok? ― Aklen segurou o rosto de seu irmão com as duas mãos por um instante. ― Agora vai. Se deixar aqueles dois sozinhos por muito tempo, vai se tornar um pesadelo.

― Eu vou sentir sua falta, Aklen ― Demir disse por fim, antes de dar as costas e correr rumo aos irmãos no navio.

Aklen acenou até que o navio se afastasse, nunca desviando os olhos das três crianças que ele agora mandava para Alto Capital. A alegria que ele sentia era tão devastadora que não havia espaço para o medo do que esperava por ele em casa quando seu pai descobrisse.

Vikram caminhava pelo porto de Alto Capital, Ruya a seu lado e Ravi e Maya andando mais a frente, absortos um no outro, para a alegria de Vikram.

― Eu acho que ele vai pedi-la em casamento em breve ― Vikram confidenciou a Ruya, sem desviar os olhos do casal a frente.

― Oh, espero que sim. ― Ruya escondeu o riso atrás da mão. ― Está rolando uma roda de aposta entre os empregados e se ele não fazer a proposta até o final do próximo mês, eu estou fora da corrida.

Vikram riu sem reservas, antes de mudar o tópico.

― Como seus irmãos estão se adaptando?

― Oh, Demir e Demet estão amando cada segundo. ― Ruya deixou seu sorriso correr solto. ― Demir estava com medo de não conseguir acompanhar a nova escola, mas está ficando mais tranquilo com a medida que os dias passam. Ele sempre adorou ler e Aklen sempre comprou novos livros, então não está tão ruim. Demet sempre foi esperta e já fez uma trupe de amigos. Isin sempre foi o mais tímido, e isso está me deixando um pouco preocupada. ― Ela mordeu o lábio inferior. ― Ele é muito apegado ao Aklen.

― Aklen não tem planos de se mudar para cá também?

― Sim, mas... ― Ruya torceu a ponta da manga de seu vestido. Vikram julgou que esse era um hábito que ela tinha pego de Aklen. ― É complicado.

― Espero que as coisas se descompliquem em breve, então. ― Vikram não forçou nada, e ganhou um sorriso de agradecimento.

Ruya tinha um sorriso mais fácil que o de Aklen, ele notou. Menos cansado, ele diria, e aparecia mais frequentemente. Era difícil não olhar para ela e lembrar do irmão que estava no arquipélago a algumas milhas dali. Ambos tinham a belíssima pele cor de mel e os cabelos cor de areia, mas a principal diferença era nos olhos, por mais que tivessem a mesma cor. Ruya tinha os olhos doces e curiosos, enquanto Aklen tinha algo indecifrável por trás de toda a sinceridade. Vikram não sabia o que era, mas pretendia descobrir.

― Mestre Vikram... ― Ruya começou, subitamente, mas logo foi interrompida.

― Por favor, não me chame assim ― ele pediu, antes de gesticular para ela continuar.

― Vai parecer estranho o que vou lhe pedir, mas... soube que vai retornar ao arquipélago em breve. ― Ruya brincou com os polegares, mordendo o lábio inferior.

― Sim, próxima semana. Deseja que eu leve algo para Aklen?

― Estou preocupada com meu irmão ― Ruya desabafou, seus ombros caindo. ― Ele trabalha demais, se sobrecarrega demais. Ele nos criou, sabe? Ele sempre foi inteligente, aprendeu tudo que sabe sozinho. Ele desistiu da escola ainda criança, pouco depois de aprender a ler e a escrever. Acho que ele tinha o que, nove? Oito? Agora ele está sozinho com os gêmeos e Nimet, e ambos são jovens demais para a escola e eu não estou lá para ajudar. ― Então, ela ruborizou, finalmente percebendo o que tinha feito. ― Oh, Deus, se ele me ouvisse agora...

― Está tudo bem, Ruya. ― Vikram a tocou no ombro por um breve momento. ― Eu vou checar e ver se ele não está abocanhando mais do que pode suportar. Ele tem sido de grande ajuda pra mim.

― Só não diga nada disso a ele, ok? ― Ruya pediu, mordendo o polegar por um instante. ― Ele não é o que pessoas chamam de orgulhoso e que deve ser tratado cheio de dedos, mas ele não gosta de falar sobre certas coisas.

― Seu irmão é alguém que gosta de falar das coisas como ela são, mas respeita o silêncio ― Vikram refletiu mais para si mesmo do que para Ruya, lembrando do que Aklen tinha lhe dito durante a caminhada na ilha. ― É uma qualidade rara.

― Meu irmão é uma pessoa muito rara.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Singularidade" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.