Singularidade escrita por SayakaHarume


Capítulo 3
III. Paralelismo




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Dois meses após o décimo oitavo aniversário de Aklen e três semanas depois do décimo sexto aniversário de Ruya, os navios de Alto Capital ancoraram no porto da pequena ilha, e as notícias da epidemia de febre vermelha se espalharam.

As reações foram mistas. Alguns não se importaram. Outros zombaram por pessoas do continente caírem tão fácil diante de uma doença comum. Outros ainda se solidarizaram, porque, por mais comum que fosse a febre vermelha ali, todos sabiam que era uma doença horrorosa.

Os emissários do conselho da cidade estavam ali buscando voluntários para trabalharem em Alto Capital, ajudando nos hospitais. Ainda haviam ofertas de empregos em casas de famílias ricas, que preferiam atendimento particular.

― Você tem que ir ― Aklen falou enquanto seguia Ruya pelas ruas do mercado do vilarejo. ― Uma oportunidade como essa...

― Pessoas estão morrendo, Aklen! ― Ruya ralhou com ele, sem levantar seus olhos dos tomates que examinava.

― Porque não sabem tratar febre vermelha, mas você sabe ― Aklen cruzou os braços e se encostou na banca de tomates, mirando a irmã. ― Foi você que colocou cada um dos meninos de pé depois que eles pegaram. Levou o que, duas semanas?

― Eu não vou deixar você sozinho com seis crianças, Aklen ― Ruya se virou para ele, seus lábios espremidos em uma linha rígida. ― E o pai está cada vez pior e se eu for... ― Os olhos dela se demoraram o hematoma roxo na maçã do rosto de seu irmão mais velho. Ela quis acariciar o local, mas isso só irritaria Aklen. ― Eu não quero nem pensar nisso. ― Sacudindo a cabeça, voltou sua atenção para as compras.

― Ruya, você pode ter um emprego de verdade lá. Um que pague bem, e começar a ter um pouco de conforto ― Aklen continuou sua argumentação. ― Se te fizer feliz, você até pode mandar dinheiro pra cá, mas acredite, só de você ir vai me deixar mais tranquilo.

― Me sinto expulsa, agora ― Ruya disse em tom de brincadeira, e riu ao ver Aklen revirar os olhos.

― Queria que fosse simples assim te fazer ir. Os outros não pensariam duas vezes. Demir que nem quinze anos tem já está de olhos compridos para os navios.

― Demir sonhou a vida inteira em ir pra Alto Capital. Eu não. ― Ruya repuxou uma folha de alface murcha e a despedaçou entre os dedos, seus olhos mirando o nada. ― Mas realmente... eu faria uma maior contribuição se eu trabalhasse por um tempo na cidade. Só por um tempo. ― Apontou o dedo em riste para Aklen, seus olhos rígidos na face do irmão. ― Eu vou voltar pra cá, entendido? Vou economizar e voltar com uma boa quantia.

― Eu também tenho juntado algum dinheiro, sabe? ― Aklen sussurrou, um sorriso juvenil se espalhando por seu rosto. ― Estava pensando... talvez, se juntarmos o suficiente, possamos conseguir uma casa.

― Uma... casa? ― Ruya se virou para ele rapidamente, suas sobrancelhas unidas em confusão, piscando lentamente. ― Uma casa só nossa? ― ela pronunciou as palavras como se ainda as estivesse testando, verificando se podiam ser reais.

― E nunca mais teríamos que nos preocupar com o pai. ― Aklen irradiava animação, e segurou as mãos da irmã. ― Eu tenho juntado há um tempo, e tenho em vista algumas casas. Vou trabalhar nos reparos e cuidados dos navios que chegaram e vou ter o suficiente para alugar uma, finalmente.

― Você nunca me contou isso. ― Ruya ainda estava incrédula. ― Há quanto tempo...?

― Eu não queria te pressionar, te fazendo trabalhar demais pra me ajudar a conseguir dinheiro. ― Aklen deu de ombros. ― Faz alguns anos. Eu só ia contar quando tivesse algo concreto. Vou dizer para os outros quando eu tiver a chave na mão e poder dizer para eles juntarem suas coisas.

Dessa vez, Ruya não se conteve. Libertou uma de suas mãos, que foi parar na bochecha de Aklen, o fazendo mirá-la. Ele tinha essa estranha timidez nos olhos, de alguém que não estava acostumado a se sentir feliz.

­― Você é um filho da mãe incrível, sabia? ― ela se ouviu dizer. ― Eu te acho estúpido por se matar de trabalhar assim, mas eu também te amo por isso.

― Eu só quero que sejamos livres, Ruya ― Aklen beijou a palma da mão da irmã. ― E depois, se você realmente der certo em Alto Capital, quem sabe não possamos mandar os outros pra lá? Pra estudar? Demir é tão esperto e Demet está na idade certa de começar lá. Isin é pequeno, podemos mentir a idade dele e ele entrar na mesma turma que ela.

― Kaner e Seven logo vão ter idade também... ― Ruya começava a se contagiar com os planos de Aklen. ― Oh meu Deus, você vai mesmo conseguir, não vai? Você vai nos tirar daqui. Todos nós.

― Esse sempre foi o plano. ― Ele deu de ombros. ― Primeiro, saímos daquela casa. Depois, saímos da ilha.

― E nunca mais olhamos para trás. ― Ruya sentiu o sorriso se espalhar pela sua face, tão grande que seu rosto doía.

― Nunca mais olhamos para trás. ― Aklen era seu reflexo, com os mesmos cabelos cor de areia e olhos cor de âmbar. ― Se você for agora, mandarei Demir e Isin e Demet no fim do verão, para começarem a escola lá. Não teremos condições de pagar uma com alojamentos, então...

― Eu vou conseguir um lugar pra nós. ― Ruya começou a roer a unha do polegar, as sobrancelhas franzidas mostrando sua concentração. ― Talvez, se eu conseguir um emprego em casa de família... Demir é grandinho, poderia conseguir um trabalho pra ele também, depois da escola.

― Sei que é algo precipitado e tem muita coisa ainda a ser arranjada... ― Aklen coçou a nuca e mastigou o lábio inferior, preocupado.

― Mas é a melhor oportunidade que apareceu em anos ― Ruya completou, seu sorriso transbordando mel e afeição. ― A que você veio esperando todo esse tempo.

― Eu sou uma má pessoa por querer render homenagens aos bravos besouros que fugiram para Alto Capital e contaminaram metade da população? ― Aklen perguntou, um sorriso brincalhão se espalhando.

― Sim, você é, mas prometo guardar seu segredo e te amar mesmo assim. ― Ruya se pôs na ponta dos pés e, puxando o rosto de Aklen com as duas mãos, conseguiu beijar-lhe a testa. ― Agora, se me dá licença, parece que eu tenho um emprego a conseguir.

—x-                                                          

Ravi e Vikram assistiram o desembarque dos habitantes do arquipélago enquanto caminhavam pelo porto. Ravi estava mais forte a cada dia, e ambos descobriram que as caminhadas ajudavam.

― Parte de mim ainda acha que é meio dramático trazer tanta gente, mas ao mesmo tempo, não é como se houvesse pessoas saudáveis o suficiente para cuidar dos doentes ― Vikram comentou, com bom-humor. ― Tem certeza que não quer contratar alguém para nossa casa?

― Não vejo necessidade, estou quase recuperado. ― Ravi deu de ombros. ― De qualquer maneira, um de nossos vizinhos está contratando e já me disse que poderei usar dos serviços da enfermeira. ― Rubor se espalhou pelo rosto dele a medida que ele via, pelo canto dos olhos, o sorriso provocador de Vikram se espalhar.

― Ah, sim, eu vi a carta. ― Vikram praticamente ronronou. ― Senhorita Maya é tão solícita!

― Vikram... ― Ravi disse em um tom de aviso.

― Uma alma tão boa! Tão preocupada com o bem-estar dos outros...!

― Vikram... ― Ravi tornou a falar, mas dessa vez, havia um pouco de riso em sua voz.

― Claro que ela nem chegou a me mencionar no bilhete, mas enfim, uma moça adorável! Se ao menos meu querido irmão tomasse a coragem de finalmente pedir a mão dela ao invés de apenas ficar usando a própria doença como desculpa para vê-la... ― Vikram estava totalmente em modo provocativo.

― Oh, calado! ― Ravi ria, mas mirava os próprios pés.

― Você a menciona em suas cartas a quase um ano, por Deus! É hora de tomar uma atitude. ― Vikram chocou seu ombro com o do irmão, de brincadeira. ― E já é hora de me apresentar a ela. Então, eu posso pedir a mão dela em seu nome, já que sua timidez não encontra limites até o dia de hoje.

― Não é tão simples, eu não posso chegar lá e apenas...

― Besteira. ― Vikram revirou os olhos. ― Nossas famílias são amigas a anos. Eu não vou ver esse ano terminar sem você ao menos estar noivo de Maya, nem que eu tenha que resolver o assunto sozinho, está me entendendo?

― Vikram...

― Eu não quero que você fique sozinho, Ravi. ― Ele adotou um tom mais sério. ― Eu não sei como você conseguiu aguentar todos esses meses, irmão. Enquanto isso, eu...

― Não, Vikram. ― Ravi parou de andar, fazendo Vikram parar com ele. ― Não se responsabilize. Não há nada que você poderia ter feito.

― Eu deveria ter estado aqui. Todo o tempo. ― Vikram murmurou, deixando seus ombros caírem em derrota. ― Eu deveria ter entrado na cidade antes, eu...

― Não, não. Nesses últimos meses meu único alívio era que você estava seguro, fora da cidade. ― Ravi apertou o ombro de seu irmão mais novo. ― Eu fiquei feliz por você não ter visto o que eu vi. Triste por você não ter tido uma chance de se despedir, mas...

― O pior é que... eu sei que eu deveria estar arrependido de ter ido embora, mas eu não consigo. ― Vikram cruzou os braços e lançou seu olhar para os paralelepípedos da rua, uma vez que era incapaz de encarar os olhos preocupados que estavam sobre ele. ― Como eu posso ser tão egoísta?

― Nunca mais diga algo assim, Vikram ― Ravi sussurrou, sua voz tão leve quanto a brisa que vinha do mar. ― Papai tinha orgulho da pessoa que você se tornou. Ele já tinha orgulho do homem que você será um dia. E eu posso garantir que ele estava tão satisfeito quanto eu por você estar fazendo o que ama, que é viajar por todo esse mundo. Sempre falávamos de você. Mamãe nos últimos dias sempre estava falando como nós dois somos obcecados por trabalho e os únicos netos que ela teria seriam os recibos das mercadorias.

Vikram riu, e ao mesmo tempo em que parecia errado, parecia tão certo.

― Soa como ela ― comentou, arriscando olhar para cima.

― Não estou dizendo que vai ficar tudo bem em breve, Vikram ― Ravi falou de uma maneira que Vikram se sentiu voltar ao tempo que eram apenas crianças, explorando as florestas ao redor de seu lar. ― Você ainda está aprendendo a aceitar o fato. Eu tive mais tempo que você e ainda tenho problemas com isso. Só temos que passar por isso juntos.

Vikram assentiu antes de reafirmar:

― Juntos.

Ravi sorriu, um pouco triste, mas havia esperança também. Vikram não sabia como ele conseguia.

― Por esta semana, nós vamos nos lamentar como temos o direito de fazer ― Ravi continuou. ― E a partir da próxima nos concentramos em como seguir em frente.

Vikram assentiu novamente, mas nada falou dessa vez. Também ficou em silêncio enquanto prosseguiam a caminhada. Seus olhos se perderam no cais, e em seguida no oceano. Alguns dos navios da família estavam ali, inclusive o seu. Parte dele queria apenas voltar para o navio e sumir nas águas, e ele se odiava por isso. Não tanto por querer partir, mas por ter partido por tanto tempo antes.

Já estavam de volta a casa quando Vikram falou novamente:

― Eu não vou embora outra vez, Ravi. ― Seu tom era firme, mas sussurrado. ― Ainda viajarei e continuarei tratando dos negócios que iniciei, mas eu perdi coisas demais por ir embora desse jeito. Você é a única família que eu tenho agora.

― Eu nunca pediria para você ficar, Vikram. ― Não havia nada na voz dele que indicasse qualquer coisa além da mais pura sinceridade. ― Só para você voltar.

― Eu sei. ― Duas palavras ditas com dificuldade a partir daquele nó na garganta. ― Eu sei o que é ser sozinho, Ravi, e eu não quero que você o seja.

― Eu nunca o serei, Vikram. ― Ravi sorriu e afagou os cabelos do irmão, afastando-os dos olhos azuis cheios de angústia. ― Eu sempre tenho meu irmão mais novo comigo. Mesmo quando ele está longe.

Foram duas semanas até Ravi ser coagido a visitar Maya ao invés de apenas ficar eternamente na troca de bilhetes e cartas. Troca esta que, na visão de Vikram, era mais do que ridícula, visto que apenas um quarteirão separava as duas casas.

― Honestamente, eu não sei quem é mais idiota e não sei o que ela vê em você ― disse para Ravi enquanto os dois caminhavam rumo à casa de Maya. ― Sério, onde você quer chegar sem ao menos visitá-la regularmente?

― Eu não quis incomodá-la! ― Ravi se defendeu, repuxando as mangas de seu casaco, olhando para todos os lados, menos para o irmão.

― Você, sem mim, ia acabar solteiro e soterrado em toneladas de recibos e listas de mercadorias. ― Vikram revirava os olhos enquanto Ravi batia a porta.

Não demorou que fossem introduzidos na sala para visitas, e menos ainda para Maya surgir pela porta, acompanhada por uma moça que provavelmente era sua dama de companhia. Vikram ficou curioso pelo tom de pele cor de mel da acompanhante de Maya, mas não pensou muito nisso enquanto era apresentado oficialmente a moça que tinha conquistado as afeições de seu irmão.

― Tenho ouvido sobre a senhorita ― ele disse ao cumprimentá-la. ― Meu irmão fala muito sobre você.

― Oh, ele fala? ― Maya sorriu e arqueou uma sobrancelha, mirando Ravi, que imediatamente ruborizou.

― Muitíssimo ― Vikram continuou, bem-humorado.

― Bem, posso dizer o mesmo sobre você, meu caro. ― Maya riu, e era uma sinfonia de delicados sinos e Vikram soube imediatamente porque Ravi gostava tanto dela. ― Permitam-me apresentar minha nova dama de companhia. ― Ela se virou para a moça. ― Ela veio do arquipélago e nos colocou em boa saúde novamente. Um anjo enviado pelos céus.

― E como se chama tão talentosa moça? ― Ravi perguntou, bem educado.

― Ruya ― A moça respondeu com um sorriso calmo. ― Eu me chamo Ruya.

—x-

Aklen não teve muito tempo de aviso. Ele estava terminando de tirar a mesa quando ouviu Derin tropeçar na varanda e xingar em um bravejo. Aklen então teve pouquíssimo tempo para mandar que todos fossem para o quarto. Isin mal teve tempo de fechar a porta quando Derin se fez presente na cozinha, seus olhos injetados deixando bem claro que a dívida na taverna tinha aumentado.

― Você ainda está ai? ― rosnou ao ver Aklen parado, perto da mesa. ― Achei que já tinha sumido, feito a outra inútil.

Aklen remoeu as palavras que surgiram na ponta de sua língua, mas se obrigou a engoli-las. Ao invés, se voltou para o fogão e começou a servir um prato para o pai. Colocou a comida a mesa, mas não reconheceu a presença de Derin de nenhuma outra maneira, se dedicando a montar a bandeja que levaria para o quarto, para a mãe.

Subiu a escada precária ouvindo os resmungos e reclamações do pai, mas estava agradecido por Derin ter chegado apenas determinado a latir, e não a morder. Depois de bater a porta três vezes, se fez entrar no quarto dos pais, de onde Sumer raramente saia.

― Mamãe? ― ele chamou suavemente, se aproximando da cama.

Sumer demorou a se mover. Estava sentada na cama, seu olhar perdido pela janela. Quando ela finalmente se virou para o filho, Aklen já tinha colocado a bandeja sobre a cama, perto do alcance dela.

― Seu pai chegou em casa. ― Não era uma pergunta.

― Ele não está tão ruim hoje. Só irritado. ― Aklen não levantou seus olhos para encará-la, sentando-se na cama.

― Sua irmã não deveria ter ido sem a permissão dele.

― Ruya não deve nada a ele. ― Aklen cruzou os braços, encarando a lamparina. Por um instante se virou para sua mãe. Naquela luz, ela parecia tão bonita quanto tinha sido antes de ser quebrada pela vida naquela casa. ― Ela vai ter uma vida melhor longe daqui. Todos eles vão.

― Aklen, você não pode ficar batendo de frente com seu pai, tem que aprender a respeitá-lo ― Sumer ralhou, mas não havia força em sua voz.

― Respeito ― Aklen riu, cheio de desdém, empurrando o cabelo que caía sobre seus olhos para trás. ― Como se isso tivesse acabado bem pra alguém. ― Revirou os olhos, o sorriso depreciativo ainda presente. ― Eu posso apanhar quando eu desafio a suposta autoridade dele, mas pelo menos só eu apanho. Ele não toca nos outros.

― Ele é um homem complicado.

― Ele é um monstro desprezível e você melhor do que ninguém deveria saber disso, mãe ― Aklen mastigou o lábio inferior, mirando as sombras que dançavam nas paredes. ― Ele sempre foi assim e sempre vai ser, ele nunca vai mudar. Eu fiz minha escolha a muito tempo atrás, mamãe. Assim que Isin nasceu.

― Você era tão pequeno... ― Sumer levou uma das mãos a boca, e Aklen levou alguns instantes para perceber que ela estava tremendo. ― Tão, tão pequeno. Se você não fosse tão parecido comigo...

― Não é sua culpa. Nada disso é sua culpa. ― Aklen segurou a outra mão de sua mãe, e ela apertou seus dedos até que estes ficaram lívidos. ― Você aguentou mais do que qualquer um aqui. Mas acabou. Nós vamos embora em breve.

Sumer riu, e era um riso cheio de tristeza e miséria. O coração de Aklen doeu. Havia tanto tempo que não ouvia sua mãe rir, que até mesmo aquele sinal de tristeza e derrota era uma carícia na saudade que ele tinha daquele som, na saudade do tempo que ela não tinha desistido.

― Ele nunca vai me deixar ir, meu bem. ― Ela acariciou o cabelo do filho, e Aklen se sentiu com sete anos outra vez. ― Quando eu me casei, eu achei que tinha me casado com um bom homem. O dia que você nasceu... foi o dia mais feliz da minha vida. E pouco tempo depois Ruya chegou e eu achei que meu coração tinha ficado tão grande que eu nunca teria espaço para amar mais ninguém. E então tudo começou a desmoronar, com seu pai perdendo o emprego e nunca mais conseguindo se segurar em nenhum. ― Sumer deixou uma lágrima cair, mas não interrompeu as carícias que fazia em seu filho mais velho. ― Eu fui tão egoísta, tendo filhos como tentativas de emendar esta família, mas vocês eram meu único motivo para continuar vivendo. Eu amo cada um de vocês, mas eu não sei mais fazer isso. Por isso, meu bem, você precisa ir embora.

― Eu não posso te deixar pra trás. Ele vai matar você. ― A voz de Aklen tremia enquanto ele se forçava a manter sem tom não mais alto que um sussurro. Sua garganta doía pela necessidade de gritar, gritar até que sua mãe visse que ela precisava sair dali.

― Seu pai já me matou várias vezes durantes esses anos ― Sumer segurou o rosto de Aklen com as duas mãos. ― A única coisa que pode me machucar é caso ele faça algo a um de vocês.

― Eu não me importo. Eu vou tirar todo mundo daqui, incluindo você ― Aklen rosnou, segurando os pulsos de sua mãe. ― Você merece uma chance longe desse lugar tanto quanto os meninos.

― Oh, meu menino. ― Sumer sorriu, e pela primeira vez em anos, parecia o antigo sorriso dela e por isso, Aklen deixou uma lágrima cair. ― Você é teimoso demais para seu próprio bem. ― E beijou-lhe a testa e permitiu que ele se enrolasse em seu colo, sendo um pouco o menino que a tantos anos ele havia desistido de ser.

—x-

Uma certa normalidade ia sendo conquistada com o passar das semanas, com Ravi voltando ao trabalho e Vikram o seguindo. Havia muito a ser feito, embora nem todas as entregas tenham sido atrasadas pela epidemia.

― Vamos acabar precisando aumentar nosso armazém ― Ravi comentou vagamente, metade de sua atenção nos papéis espalhados pela mesa. ― Eu já previa isso a algum tempo, mas acho que vou ter que adiantar essa obra. Oh ― levantou a cabeça, subitamente lembrando de algo ― e também estava pensando em construir um armazém no arquipélago, o que acha?

Vikram, que até então só estava ali para ajudar a separar contratos e recibos nas caixas certas, levou a mão a nuca, concentrado por um momento.

― Acho que pode ser uma boa ideia. Nunca fui lá pessoalmente, mas sempre que eu estava voltando do ocidente, tinha que contorná-lo. Não são muitos navios que param por lá, embora o porto seja ótimo. O problema é que aparentemente a vila é pequena, não conseguiria reabastecer muitos navios.

― Hum... ― Ravi esfregou o polegar em seu lábio inferior, seus olhos mirando o horizonte. ― Talvez nós pudéssemos suprir essa demanda. Claro que precisaríamos de uma certa infraestrutura... Você poderia fazer uma visita as ilhas, ver em qual delas poderíamos nos instalar.

Vikram teve que conter um suspiro. Sabia muito bem o que o irmão estava tentando fazer, e na mesma medida que se sentia grato por isso, também sentia uma grande vontade de bater a cabeça de Ravi na mesa.

― Bem, então acho melhor eu ir falar com Ruya.

Isso surpreendeu e chamou a atenção de Ravi, que se virou para ele.

― Ruya? Por que você precisa falar com ela? ― arqueou uma sobrancelha.

― Ela é do arquipélago, pode me indicar algumas pessoas que vou precisar falar. E também, ela se diverte tanto quanto eu com suas conversas cheias de timidez com Maya ― Vikram sorriu brilhantemente, pegando seu casaco. ― Vamos lá!

― Espere, eu não posso simplesmente aparecer lá sem aviso! ― Apesar de seu protesto, Ravi se apressava em acompanhar o irmão, já a meio caminho da porta.

― Ora, Ravi, seja espontâneo!

Vikram sorria por trás de sua xícara de chá, vendo seu irmão gaguejar suas desculpas pela visita surpresa. Maya tentava esconder seu sorriso radiante sem muito sucesso, o que apenas fazia Ravi se encabular ainda mais.

Deixando seu irmão se acertar com sua pretendente, Vikram se virou para a jovem que terminava de pôr o chá a mesa.

― Ruya, você vivia em qual ilha do arquipélago?

― Oh? ― Ela ergueu o rosto subitamente, a surpresa estampada em sua expressão. ― Ilha Sussurrante. ― Um sorriso saudoso tomou conta dos lábios de Ruya. ― É um lugar lindo. Está pensando em fazer uma visita?

― É, quero conhecer o arquipélago. Talvez uma oportunidade de negócios se apresente por lá.

― Ah, sim. ― Ruya entrelaçou os dedos a frente do corpo, o sorriso cheio de saudade ainda presente. ― Ilha Sussurrante é a maior do arquipélago, mas é nas outras ilhas que você vai encontrar mais pescadores e caçadores. Nossa ilha é mais como se fosse... o quartel-general.

― Você sente falta, não é? ― Vikram sorriu, solidário.

― Eu sinto mais falta dos meus irmãos. Crescemos lá. ― Ruya deu de ombros, seus olhos se desviando para o chão, mas o sorriso nunca desaparecendo. ― Essa é a primeira vez que sai da ilha. Meu irmão mais velho andou bastante por todo o arquipélago, trabalhando. Ele faz reparos nos barcos dos pescadores. Algumas vezes em navios também, quando sofrem avarias perto de nossa costa.

― Oh, sério? ― Vikram ergueu as sobrancelhas em interesse. ― Como ele se chama?

― Aklen. ― E o sorriso de Ruya poderia ofuscar o sol.


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