Muito Além de Mim escrita por Mi Freire


Capítulo 19
Vamos embora.




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 Pela primeira vez odiei o fato de morar num apartamento quase sem paredes, porque agora eu não podia ficar sozinha, por mais que quisesse. Estavam todos ali o tempo todo. Preocupados e prestativos. Eu entendia que eles só queriam ajudar, mas eu só queria um tempo de tudo. Um tempo para assimilar que esse pesadelo era mesmo real e que não foi só uma coisa da minha cabeça: ele se foi e não vai voltar.

Todos apareceram para me dizer palavras de conforto: Sydney, Mason, Noah, Denise, Josh e até mesmo o Mr. Wilson e sua esposa. Foram muito gentis comigo e eu até agradeci com poucas palavras, mas sinceramente eu queria todos longe da minha casa, longe da minha vida. Pode até parecer ingratidão da minha parte, mas sei que também é algo totalmente compreensível. Eu acabei de perder alguém.

E não perdi qualquer pessoa. Eu perdi A Pessoa.

Ninguém parecia acreditar, assim como eu, que aquilo aconteceu tão de repente. Não parecia justo terem o levado. Logo ele. Um cara tão bom com todos, tão de bem com a vida, tão jovem, trabalhador... Ele ainda tinha tanto para viver.

Eu ouvi muito isso nesses últimos dias.

Mas não era só nisso que tudo se resumia. Andrew não era só um cara trabalhador e bom. Ele era muito mais do que isso. Ele era o que me mantinha firme e forte. Ele era o principal motivo para eu continuar aqui nesse país, sorrindo. E agora, sem ele, nada disso parecia ter sentido. Sem ele era tudo tão vazio, silencioso, tão sem graça e sem vida.

Nesses dias desde a terrível noticia, eu aprendi muitas coisas, além de ver que nada disso parece ter um sentido. Aprendi principalmente que nenhum esforço parece o bastante, nenhuma palavra de conforto e carinho ajuda a melhorar. Dói muito. Dói em todas as partes e não para.

E descobri que Célia é mesmo uma grande mulher. Eu só a vi ceder naquela noite, depois disso.... Nenhuma lágrima. Ela ainda estava firme ao meu lado, me oferecendo chá, água, comida o tempo todo, me dizendo sem parar que tudo ficaria bem e que tudo acontecia por algum motivo.

Ela era incrível comigo, sem dúvidas. Mas não precisava disso tudo. Queria dizer isso a ela, mas não tinha coragem. Queria poder dizer que tudo bem ela chorar até ressecar, afinal, ela tinha perdido um filho. Existe dor pior que essa? Queria dizer que tudo bem ela dar um tempo de tudo isso, voltar para junto de sua família no Brasil e procurar apoio neles porque eu já não era mais responsabilidade dela. Queria dizer que eu estava sem fome, sem sede, sem vontade de nada.

Mas algo me dizia que mesmo que eu dissesse todas essas coisas, ela não desistiria tão fácil. Ela não me parece esse tipo de pessoa e eu deveria saber. E era por isso que eu ainda não tinha a expulsado do meu apartamento aos gritos, porque eu tinha muito mais que gratidão por ela. Eu tinha uma dívida.

— Já foram todos embora. – Disse ela ao se aproximar de mim. Ela nem precisava, eu ouvi quando todos se foram. — Você quer alguma coisa? Posso sair e comprar algo pra você.

— Não precisa. Obrigada. – Continuei deitada, virada para parede feito uma criancinha emburrada. — Você pode ir descansar um pouco. Eu vou ficar bem. Não sairei daqui.

Não sairia mesmo. Eu só saí da cama para ir ao banheiro. E para onde mais eu iria? Eu não tinha mais nada.

Nada.

— Tudo bem. Eu só vou buscar as minhas coisas, pois ficarei com você aqui esses dias. – Ela fez um carinho rápido na minha perna. — Volto logo. Aguenta aí.

Ouvi ela se afastar em direção a porta, foi quando eu me levantei um pouco e abri a boca para dizer que eu não queria que ela voltasse, muito menos que se mudasse para cá.

Tornava tudo tão mais difícil.

Mas eu não o fiz. Não era justo.

Ela já tinha saído, então aproveitei para dar uma bela conferida em volta, apesar de já saber que a situação não era das melhores. Eu nem me lembrava a última vez que tinha tomado um bom banho. Mas me surpreendi com a quantidade de flores espalhadas pela sala com cartãozinho pendurados.

Eu costumava amar flores, mas agora tudo que eu queria era chuta-las com forças ou jogá-las pela janela. Só que aí pensei na bagunça que eu causaria e que depois teria que limpar tudo sozinha. Daria muito trabalho. Então não. O melhor mesmo é ficar na cama, aqui eu cometo menos estragos.

Ouvi quando Célia voltou com suas coisas e as colocou no chão. Pelo visto ela também tinha aproveitado para passar em algum restaurante e comprou algo para comer. O cheiro estava bom, mas causava um embrulho danado no meu estômago.

— Você quer? - Perguntou ela.

— Agora não. Obrigada.

Pensei no Andrew e no quanto ele estaria decepcionado por eu ter me tornado uma idiota com tudo e todos. Mas ele não estava mais aqui, certo? Então ele não tinha que achar nada. Além do mais, tudo isso era culpa dele. Ele que não lutou o suficiente por nós dois. Ele que se foi e me deixou aqui.

Meu celular vibrou sobre o criado mudo. Ele vibrava muito ultimamente. Mas eu estava sempre o ignorando. Eu estava me tornando muito boa nisso de ignorar as coisas a minha volta.

— Você deveria ver o que é.

— Hoje não.

Provavelmente alguém estava me ligando nesse momento, porque ele não parava de vibrar. O que mais as pessoas tinham para me dizer? O quanto sentiam muito? O quanto ele era maravilhoso? O quanto isso era trágico?

Eu já sabia de tudo isso.

— Então eu vejo. – Célia se aproximou e pegou meu celular antes que eu pudesse impedi-la. — Oi. Alô?

Fechei os olhos com força, odiando-a por isso.

— Sou eu, Célia. – Ela continuou falando enquanto se afastava, acho que para me impedir de tomar o celular. — Bom, ela não está muito a fim de nada ultimamente...

Era o Eli. Só poderia ser ele. Pois todos os outros falam inglês e Célia não sabe muito inglês e está falando português.

— Obrigada, querido... Sim, é terrível. Mas não tem muito o que podemos fazer a respeito, certo? Eu estou bem. Eu vou ficar bem. Não se preocupe. Eu vou cuidar dela.

Silêncio.

— Tem certeza de que não quer falar com ele? Ele está muito preocupado com você.

— Diga a ele que ligo outra hora.

Ela diz, desliga e devolve o celular no lugar.

As horas passam. Nada muda. Nada acontece.

Acabo adormecendo e acordo assustada quando alguém bate à porta. Suspiro fundo. Não aguento mais as visitas intermináveis. Me pergunto quando tudo isso vai acabar.

— Nina... Visita para você.

— Peça para voltar outra hora.

— Você deveria falar com ele.

Será que é tão difícil entender que não estou interessada nisso agora?

Já me levanto da cama com raiva, ajeito o moletom velho no corpo e respiro fundo. Vou até a porta. Um homem me espera no corredor. Ex-chefe do Andrew. Reconheço logo. Ele estava lá aquele dia.

Ele me oferece flores. Eu olho bem pra ele.

— Sério isso? – Falo em inglês. — Como você ousa vir na minha casa?

— Eu vir ver como você estava e me desculpar...

Ele insiste nas flores.

— Jogue essa porcaria fora, porque eu não quero. E não quero você aqui também. Eu não estou bem, você não vê? Você matou o homem que eu amava! Você o matou, cretino!

Quero socar a cara dele, mas bem nessa hora Célia me contém.

— Eu sinto muito. – Ela tenta dizer a ele em seu melhor inglês.

— Vá embora! – Continuo gritando com ele.

Ele me olha assustado, mas continua ali, disposto a tentar.

— Ele se foi como um herói. Porque era isso que ele era: um herói. Ele amava o que fazia e ele te amava também. Nunca tenha dúvidas disso. Eu realmente sinto muito.

E então ele se vai, com flores e tudo.

Fecho a porta com força.

— Ele matou o nosso Andrew. Tudo isso é culpa dele!

— Nina, se acalme. – Célia me leva até o sofá. — Fique calma.

— Como?! Ele matou o Andrew!

— Não diga isso, querida. Ele é tão inocente nessa história quanto nós. Foi um acidente, uma fatalidade. Ninguém teve culpa. Ninguém esperava por isso. Só.... Aconteceu.

Olho para ela incrédula... Como ela pode acreditar nisso?

Andrew estava sempre disponível para viagens, mas não significa que ele deveria ir em todas elas. Mas ele ia, não só por amor ao que fazia, mas também por causa do chefe, dos colegas. Se ele não tivesse ido dessa vez, ainda estaria aqui. Se ele não tivesse que salvar uma maldita espécie em extinção o tempo todo por culpa das escolhas erradas do ser humano, ele ainda estaria aqui. Se ele aquela correnteza não tivesse arrastado todo mundo e ele tivesse tentado salvar a todos, ele ainda estaria aqui.

Ele salvou a todos, mas não conseguiu salvar a si mesma devido ao cansaço. Horas depois encontraram seu corpo boiando e não tinha mais volta, nem reversão. Ele se foi. Lutou até o fim. Mas não foi o bastante. E agora... ele não pode mais bancar o herói.

De certa forma, todos nós somos culpados nessa história.

**

— Ah, então você finalmente resolveu me ligar.

— Eli, por favor...

— Nina, eu estava louco por notícias suas! Eu liguei todos os dias e você me ignorou. Você sabe o quão transtornado eu fiquei com isso? Eu não ia ficar sabendo de nada disso se a Sydney não tivesse me ligado, preocupada com você.

— Não seja exagerado...

— Eu estou indo comprar a passagem de volta agora. Estou indo até você. Você precisa de mim e eu vou até você. Ficarei do seu lado o tempo todo, farei você levantar dessa cama, comer alguma coisa, tomar pelo menos um banho...

— Eu tomei banho hoje.

— Depois de quanto tempo sem? Você acha que não sei de tudo? Tenho conversado com a Célia secretamente quase todos os dias e ela me mantém a par de tudo, querida.

— Então você já sabe que eu estou bem. Não precisar estragar tudo por minha causa. Fique aí e não volte.

— Você ficou maluca? Você não vai estragar nada. Eu quero te ver. Preciso te ver. Então, eu vou e ponto.

— Eli, não faça isso. Por favor. Não por mim. 

— Eu faria qualquer coisa por você, Nikolina.

— Mas não precisa!

— Não é você quem decide isso!

— Pelo visto eu já não decido mais nada. Fica todo mundo no meu pé o tempo todo, querendo fazer coisas por mim, decidir coisas por mim. Eu estou cansada disso! Chega.

— As pessoas estão tentando ajudar você!

— Mas eu não preciso de ajudar, Eliezer. Eu só preciso de tempo. Um tempo sozinha. Eu perdi tudo. Espera que eu me sinta como? Tudo que eu queria agora era o Andrew de volta, mas eu não posso e nem você e nem ninguém pode me dar isso. Então parem de pegar no meu pé como se eu fosse um bebê.

— Você definitivamente precisa de mim.

— Se você vier, eu juro, que não estarei aqui e todo seu esforço será em vão.

— Porque? Porque você está fazendo isso comigo? Eu sou seu melhor amigo. Eu quero estar com você nesse momento.

— E eu agradeço, mas não quero. Por favor. Me entenda. Você como meu melhor amigo precisa me ouvir.

Ele suspira.

— Tudo bem. Vou te dar esse tempo, mas não será muito. E você tem que me prometer não me ignorar nunca mais!

— Eu prometo! Juro.

— Ta bom. E tem certeza que está bem?

— Eu vou ficar.

— Eu sei que vai.

— E obrigada por não me dizer que sente muito e todo esse blá blá blá que estou cansada de ouvir das pessoas.

— Tudo bem. Faço qualquer coisa por você.

— Obrigada e eu te amo por isso.

**

— Nós vamos embora.

— O quê?

— Voltaremos para o Brasil no sábado.

— Mas eu não vou!

— Eu não vou te deixar aqui.

— Mas você não pode decidir isso por mim!

Era a primeira vez que Célia e eu discutíamos dessa forma. Apesar de agradecer tudo que ela estava fazendo por mim, achava que ela já estava passando dos limites.

— Eu pensei que fosse o que você quisesse.

— Você pensou errado, então.

— Então você não vai?

— Com você? Para sua casa?

— Sim! Ou para qualquer outro lugar que você quiser.

— E se eu quiser ficar aqui?

— Então fique, mas pense primeiro na minha proposta.

— Célia, é gentil, mas... Você não é minha mãe.

— Não de sangue, mas de coração eu sou sim.

— Eu sei, mas você não tem essa obrigação.

— Eu tenho. Você é minha família também.

— Mas... O Andrew, ele se foi.

— E você está aqui, não está?

— Sim, mas.... Qual o sentido de tudo isso?

— Recomeçar.... Ser feliz. Ou pelo menos tentar.

— Eu estou tentando!

— Não, não está. Você sabe. Eu sei. Você só está levando.

— É o máximo que posso fazer agora.

— Isso não é verdade. Olhe só para mim... Como acha que me sinto? Eu perdi um filho. Meu amado filho! Você acha que isso não dói? Dói muito. Mas eu tenho mais pessoas que precisam de mim. Uma parte de mim morreu e se foi com ele, mas a outra parte continua aqui, cheia de esperança e fé.

— Todas as minhas partes se foram com ele, não sobrou nada.

— Eu não acredito nisso.

— Mas é verdade!

— Só pense a respeito, o.k?

E eu penso bastante sobre isso. Penso nos motivos para continuar aqui. Existem poucos: meu trabalho, o apartamento, meus amigos. Uma vida toda que eu construí nesse longo tempo. Mas foi não por isso que eu permaneci aqui mesmo após o fim do intercambio. Eu fiquei por ele. Somente por ele. Eu estaria mentindo se dissesse que não foi tudo por ele.

Só que agora é diferente. Ele morreu. Não tem volta. É definitivo. E quando olho em volta, tudo me faz lembrar dos planos que tínhamos e tudo que ainda queríamos viver e não poderemos mais. Não faz sentido. Viver aqui não faz mais sentido de nenhuma maneira. Mas pensando por outro lado, o que eu tenho no Brasil? Nada. Meus avós, minha mãe... Não estou pronta para isso. Não quero isso nesse momento da minha vida. Não quero sentir esse peso depois de todas as maravilhas incríveis que eu passei ao lado do Andrew.

Eu olho para a Célia e percebo que ela fez mais por mim nesses meses que esteve aqui do que minha família de verdade, de sangue já fez em toda minha vida. Ela é tudo que tenho agora. Então me dou conta que ao menos ainda tenho algo. Eu tenho ela. Minha nova família.

— Célia? – Chamo por ela quando ouço que ela chegou em casa depois de horas fora. — Podemos conversar?

Sento-me.

— Eu já decidi.

Seus olhos se enchem de esperança e eu não quero desapontá-la depois de tudo que ela passou. Nós duas sabemos o quanto esses dias têm sido infernais.

— Eu vou com você.

— Sério?

— Sim. Você é minha família. E a família a gente não abandona nunca, nem mesmo quando tudo desmorona.

— Oh, querida. – Ela me puxa para um abraço de urso de esmagar os ossos. — Você não vai se arrepender. Ficaremos juntas e passaremos por isso juntas. Sempre juntas.


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