A Redenção do Tordo escrita por IsabelaThorntonDarcyMellark


Capítulo 50
Pequenas vitórias




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Por Peeta

Depois de anunciar a novidade sobre os gêmeos que estão a caminho, Effie nos convida a sentarmos à mesa. Ela e Haymitch trouxeram o nosso jantar e, como costumam ser as refeições da Capital, parece bem apetitoso.

Haymitch pega uma garrafa de vinho para o brinde e serve um pouco de suco de uva para Effie, numa taça igual às outras.

— Será que eu vou ser uma boa mãe? – Effie se pergunta, num surto de lucidez. — São dois bebês, Haymitch! Dois!

— Vai ficar tudo bem. Você cuida tão bem da gente! – Katniss a tranquiliza, pondo sua mão sobre a dela.

— Aliás, você e o Haymitch – complemento, fitando a ambos. — E nós vamos ajudar em tudo o que precisarem, vocês podem confiar – prometo e Katniss confirma com a cabeça.

— Ah, nós contamos com isso. Quero deixar acertado aqui que o primeiro banho dos bebês quem vai dar é o Peeta. – Abro um sorriso pela consideração que Haymitch demonstra, mas ele tinha outra motivação em mente para essa oferta. — Em homenagem ao banho que você me deu no trem, garoto.

— Há certas coisas que é melhor esquecer, Haymitch. Essa é uma delas. – Apoio a mão sobre os meus olhos, realmente tentando afastar a imagem da minha mente.

— Peeta dispensou qualquer ajuda naquele dia! – Katniss acrescenta, rindo bastante.

— Katniss, você é minha única testemunha e está induzindo as pessoas a conclusões falsas. – Finjo indignação. — Vocês devem saber que eu só tinha boas intenções.

— Você me jurou amor eterno, não é? – Haymitch provoca mais risos em todos.

— Sim. Como mentor e amigo. Como família— confirmo de bom humor.

— Também amo você eternamente, garoto. – Ele enche a sua taça de vinho e pisca para mim.

— Peeta, banhar os bebês vai ser algo bem mais tranquilo – brinca Effie.

— E será mesmo uma honra dar o primeiro banho nas crianças… Já treinei bastante com o Finn – declaro e Katniss abaixa os olhos.

— E o casamento de vocês? – pergunta ela, mudando de assunto.

— Eu e Haymitch estávamos mesmo conversando sobre isso e decidimos adiar. Vamos focar na gestação – afirma Effie, com uma serenidade antes incomum, mas que estou passando a enxergar com mais frequência nela. — E eu não acharia um vestido de noiva decente pra mim!

— Quando as crianças estiverem um pouco maiores, quem sabe? – Haymitch prevê, erguendo sua taça num convite a que todos imitemos o gesto. — Podemos fazer uma grande festa no Distrito 12.

— Não – discorda Effie, recolhendo um pouco o cálice que está em suas mãos antes que ele se choque com os outros. — Aqui na Capital!

— Nos dois lugares, então! – Ponho fim à discussão e todas as taças se unem no ar em nossa singela celebração.

Logo depois de comermos, vamos nos deitar, pois no dia seguinte é a primeira consulta com o Dr. Aurelius.

Eu e Katniss dormimos pouco. O decorrer da noite é agitado, uma amostra da instabilidade que está abalando Katniss e, devo confessar, até a mim mesmo.

O dia amanhece nublado, mas o céu se abre quando estamos a caminho do hospital, o que espero seja o prenúncio do que nos aguarda aqui na Capital.

Desço do carro e trago Katniss pela mão. Atravessamos a porta de entrada e muitas pessoas nos observam. Nossa presença causa uma repercussão imediata, apenas um pouco mais sutil do que o impacto causado em nossa caminhada nas proximidades do prédio de Effie.

Katniss está bastante desconfortável e segura minha mão firmemente, enquanto caminhamos pelos corredores bem iluminados. Viro meu rosto para o lado e, quando trocamos olhares, sei exatamente o que ela está pensando.

Faça isso acabar”.

Felizmente, avistamos logo o Dr. Aurelius, que discretamente gesticula para que nos encaminhemos ao seu consultório.

— Bom dia, Dr. Aurelius! – Eu e Katniss o cumprimentamos em uníssono, quando estamos próximos o suficiente para que ele nos ouça.

— Bom dia. Vamos entrando. – Ele nos guia até o interior de sua sala.

É difícil ocultar minha surpresa quando vejo que a Dra. Ceres está lá dentro nos esperando, ao lado da mesa próxima à janela.

— Olá, Peeta e Katniss. Sentem-se, por favor… E, antes que perguntem, está tudo bem no Distrito 4. Estou levando adiante alguns projetos profissionais e pessoais também. – A médica sorri, respondendo ao questionamento silencioso que eu esboçava em meu semblante. — No entanto, eu simplesmente não poderia negar o pedido do Dr. Aurelius para, mais uma vez, acompanhar o seu caso, Peeta.

— O seu tratamento continuará sob a minha responsabilidade, Katniss – completa o Dr. Aurelius.

— Nós vamos precisar ficar internados aqui? E separados? – O tom de voz de Katniss transparece o pavor que essa ideia lhe causa.

Cubro seus ombros com meu braço e a trago mais para perto de mim.

— Não, Katniss!. – A Dra. Ceres nega prontamente. — Não é necessária a internação de nenhum dos dois, a princípio.

— Além disso, o máximo de distância que haverá entre vocês são os poucos metros que separam as nossas salas. – O médico aponta para ele próprio e para sua colega alternadamente, depois se dirige a mim e à Katniss. — Finalmente, a Dra. Ceres aceitou assumir um dos consultórios dessa ala hospitalar e deixou a sala de pesquisas sob a responsabilidade de alguns médicos residentes.

— Temporariamente – enfatiza a Dra. Ceres, com o dedo erguido, o que nos faz rir e, ao mesmo tempo, perceber o quanto é importante para ela ocupar a sala que um dia foi de seu pai. — Então, você vem comigo, Peeta?

Katniss olha pra mim desolada e tateia para segurar de novo a minha mão.

— Dr. Aurelius, Peeta pode ficar ao menos para contar o que se passou? Ele certamente pode verbalizar melhor do que eu. – implora ela.

— Ok. Só quero que se lembre de que Peeta pode detalhar melhor o que aconteceu, mas não o que está se passando com você internamente. Isso apenas você pode me dizer – fala o médico seriamente e Katniss assente. — Então, Peeta, o que exatamente trouxe vocês aqui?

Pisco algumas vezes antes de enfrentar os olhares atentos dos médicos, agora sentados à minha frente. Narro o ocorrido na floresta, calibrando minhas palavras, e, por fim, exponho de modo objetivo o que eu pude observar no comportamento de Katniss, sobre seu silêncio e inapetência por dias e dias, seu bloqueio para voltar à floresta e suas crises de ansiedade em público.

Ainda que eles tentem disfarçar, a reação assombrada dos médicos à descrição dos fatos comprova que, felizmente, não houve divulgação do ataque que sofremos no Distrito 12.

Ao fim do meu relato, o Dr. Aurelius começa a digitar algumas informações numa tela de computador. O lugar em que estou sentado me proporciona o ângulo perfeito para ver o reflexo do monitor no vidro da janela.

Não é minha intenção bisbilhotar, mas a minha curiosidade é maior que a minha discrição e eu leio o que ele escreve, por meio das letras espelhadas.

Katniss Everdeen:

—Depressão;-Síndrome do pânico;-Perturbação pós-stress traumático.

O médico tira as mãos do teclado e se volta para Katniss.

— Você quer acrescentar alguma coisa? – indaga o Dr. Aurelius e ela confirma com um gesto de cabeça.

— O que aconteceu despertou em mim alguns pensamentos que estavam um pouco adormecidos nos últimos meses – declara ela, olhando diretamente para mim, como se estivesse me devendo essa explicação. — É um monólogo de autoacusação. Eu voltei a pensar de forma recorrente que eu deveria ter morrido junto com os outros, ou que eu deveria ter morrido no lugar deles. E, se eu não morri, é porque sou tão egoísta que consegui escapar. Também há o sentimento de culpa por não ter feito o suficiente para salvá-los, por ter causado tanto mal, por continuar causando e…

Estico o braço para enxugar uma lágrima que corre por sua face, impedindo que ela termine a frase. Katniss segura minha mão e beija a palma que toca seu rosto, antes de continuar.

— Sem contar a vergonha diante das outras pessoas que sobreviveram e a revolta por não poder mudar os fatos. É uma carga, muitas vezes, insuportável e eu me rendo… e fracasso com quem eu deveria apoiar. – Seu olhar permanece sobre mim, pedindo desculpas sem usar palavras.

Quando Katniss termina de falar, ponho a mão no braço dela, acariciando sua pele. O Dr. Aurelius torna a digitar e acrescenta um item à lista anterior. Volto meu olhar para a imagem refletida no vidro da janela e leio:

—Culpa do sobrevivente.

Ele vira a tela para a Dra. Ceres, buscando a confirmação de sua colega sobre o que eu imagino ser o diagnóstico prévio de Katniss. Ela faz um sinal afirmativo, com uma expressão séria.

— Agradeço as explicações de vocês. E agradeço mais ainda por estarem aqui – diz o Dr. Aurelius com ar grave, ficando de pé, e dá a palavra à Dra. Ceres.

— É verdade, Dr. Aurelius. Não é raro que, mediante tragédias, as pessoas que conseguiram escapar da morte fiquem se questionando onde erraram. A culpa é um sentimento comum nesses casos e deve ser encarada como algo natural. Entretanto, dependendo das situações que envolvem a perda, esse sentimento pode chegar a níveis tão excessivos que se torna perigoso – explica a médica. — A decisão de virem para a Capital foi realmente bastante acertada.

— Com o tratamento adequado, depois de algum tempo, é possível gradualmente retomar a normalidade de vida. Às vezes, pode restar uma dificuldade específica a ser vencida, como o seu receio de voltar à floresta – ilustra o Dr. Aurelius.

— É possível ter uma ideia da duração do tratamento? – Katniss indaga.

— O acompanhamento de vocês nunca foi interrompido, ainda que à distância. Então, o tempo pode até ser mais curto que o esperado – esclarece o médico e suspira pesadamente, batendo os dedos sobre o tampo da mesa. — Agora eu preciso encaminhar você para alguns exames, Katniss, enquanto o Peeta ficará aos cuidados da Dra. Ceres.

Dou um abraço reconfortante em Katniss e beijo carinhosamente sua testa. Evito seus olhos, para não demonstrar a ela minha apreensão com as informações que li sem querer.

— Você vai ficar bem – digo, fazendo questão de não ser uma pergunta, mas uma afirmação. — Nós vamos ficar bem.

Dra. Ceres se ergue e me convida a acompanhá-la. Olho para trás uma última vez e vejo Katniss apertando as mãos em seus joelhos. Já no corredor, pergunto à médica:

— Por quanto tempo vai ficar aqui na Capital?

— Pelo tempo que for necessário – responde a Dra. Ceres sem qualquer hesitação. — Não se preocupe.

— Dra. Ceres, é um sacrifício grande da sua parte – deixo escapar, num fio de voz.

— Eu tenho todo o suporte das pessoas que preciso. – Ela abre a porta da sua sala e estende a mão para que eu entre e me sente na cadeira logo em frente à sua mesa. — E sei que posso contar com o seu empenho também.

— Sem dúvida – concordo, sem conseguir enfrentar os olhos da médica, já temendo o meu próprio diagnóstico.

— Peeta. – A voz acolhedora da Dra. Ceres não me dá escolha e subo o meu olhar até ela. — Você falou muito sobre o comportamento da Katniss depois da experiência que vocês vivenciaram, mas preciso saber o que houve com você. Alguma crise?

Sinto meu peito se apertar com a dor e a decepção de ter que reconhecer em voz alta algo que eu não quero admitir nem para mim mesmo.

— Eu consegui evitá-las, mesmo depois desses maus momentos, mas está cada vez mais difícil lutar contra os flashbacks.

— É mesmo de se admirar o fato de você ter se mantido firme nesse caos de emoções.

— Eu só não sei até quando… E não estou sendo dramático dessa vez. – Rio sem humor. — É um esforço constante. Um esforço que está me consumindo.

— Agora é a minha vez de agradecer o fato de vocês terem vindo à Capital. – Ela respira fundo e abre um leve sorriso. — Vamos cuidar de vocês. E vocês vão cuidar um do outro.

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Diante de tantos problemas a serem enfrentados, nosso tratamento não poderia ser tão breve, apesar de intensivo. Então, eu e Katniss nos preparamos para permanecer por um bom tempo na Capital.

Nossas consultas quase diárias no hospital fazem com que o nosso equilíbrio emocional deixe de parecer tão tênue e comece a ser real.

Katniss realmente progride ao longo do tratamento. Consigo distinguir nela mais segurança, assim como o aumento em sua autoestima e uma melhor aceitação dos fatos. Não todos, porém já é um avanço.

Observo também que, graças à dica do Dr. Aurelius de sempre levá-la a refletir sobre o que Prim gostaria que ela fizesse, quase sempre é possível vê-la assumir uma atitude mais positiva frente a algumas situações.

Já decorreram dois meses e, a princípio, nosso acompanhamento médico ainda não acabou, mas faremos um intervalo para retornarmos ao Distrito 12, pois o casamento de Delly e Thom está marcado para o próximo fim de semana.

Ontem aconteceu a nossa última consulta antes da viagem de volta. Nosso aerodeslizador partirá daqui a dois dias e hoje haverá um jantar na mansão presidencial.

É uma data marcante em vários sentidos. O primeiro aniversário do fim da rebelião, um ano que se passou desde a morte de Primrose.

Até hoje, consegui evitar ao máximo que Katniss visse os lugares marcados pela nossa passagem durante a rebelião.

Por isso, venho sondando Effie sobre providenciar uma entrada alternativa para que, em nossa rota, não seja necessário passar pela frente da mansão, especialmente pelo lugar em que foi montada a barricada onde Prim morreu.

— Peeta! – Effie chama na porta do quarto de hóspedes e eu abro rapidamente, aproveitando que Katniss está no banho. — Eu consegui o que você me pediu. Uma entrada reservada e do lado oposto do Círculo da Cidade.

— Isso significa muito, Effie! Um dia, Katniss vai conseguir enfrentar tudo isso, mas é fundamental não forçar nada agora. Muito obrigado mesmo!

— Ora, Peeta, foi apenas um pequeno remanejamento – minimiza ela.

— Ainda posso pedir um favor? – Junto minhas mãos numa súplica.

Effie rola os olhos e cruza os braços sobre sua barriga saliente, porém logo cede.

— Pode falar. Estou a postos!

Puxo um pedaço de papel do meu bolso, onde rabisquei uma lista com vários itens.

— Você sabe onde vendem essas coisas? – indago.

— Humm. Interessante. – Ela corre os olhos pelas minhas anotações. — Posso saber o que você está pretendendo com isso?

— Estou planejando uma surpresa, para quando Katniss conseguir vencer o trauma de voltar à floresta – explico. — Uma decoração especial para a casa do lago.

— Estou gostando de ver seu tom confiante – elogia Effie.

— Sim. Ela vai conseguir. – Fico feliz por reconhecer em Effie o mesmo sentimento. — E, então, você pode me ajudar?

— Você ainda pergunta? Eu mesma vou comprar tudo isso!

— Não quero dar trabalho, Effie. Ainda mais em seu estado.

— Sair às compras é uma ótima distração. – Ela sacode a folha de papel no ar. — Além disso, como você acha que vai comprar tudo sem que ela desconfie? Surpresa é surpresa!

— Você tem razão.

— Aprenda uma coisa. – Ela toca o dedo indicador na lateral de sua face repetidas vezes, para que eu lhe dê um beijo ali. — Eu sempre tenho razão.

— Quase sempre! – Haymitch surge na extremidade oposta do corredor. — Ainda há pouco, estava se lamentando por estar se sentindo feia com as mudanças no corpo.

— Pode dizer… Por estar enooorme! – Ela apoia as mãos no ventre protuberante.

— Eu não me atreveria a dizer isso a você! – replica ele.

— Effie, você está mais linda que nunca. Haymitch é quem está certo agora – digo e ela sacode a cabeça. — E para provar meu argumento… – Ergo a mão para que ela espere um pouco antes de retrucar e pego a última tela que pintei, na qual eu a retratei de perfil, com seus belos contornos de grávida, sobre um fundo desconexo, de modo que está nítida apenas a imagem dela.

Minha dedicação às artes é uma das recomendações para minha recuperação. Então, esses meses na Capital foram muito produtivos.

— Peeta… É lindo demais! – exclama ela.

— Essa é você, exatamente como está – declaro.

— Obrigada, meu querido. Vou mandar emoldurar.

— Já que você mencionou… Vou pedir mais um favor. Fiz um quadro para dar de presente à Delly. – Pego a tela à qual estou me referindo. — E seria ótimo emoldurar também. Pode ser?

— Pode, é claro que pode!

— Vou ficar em dívida com você, Effie.

— Você tem crédito, garoto. – Haymitch bate no meu ombro.

Nesse momento, Katniss sai do banheiro da suíte, com os cabelos ainda úmidos. Effie entrega os quadros para Haymitch e coloca a folha de papel na pequena bolsa que carrega.

— Já está pronta para enfrentar sua equipe de preparação, meu amor? – pergunto.

— Estou sim. – Ela sorri fracamente, tentando ocultar a dor que, sem dúvida, está sentindo nesta data.

— Então, vamos logo, Katniss! Não podemos nos atrasar! – Effie a apressa, indo buscá-la pela mão.

Só tenho tempo de deixar um beijo rápido nos lábios de Katniss, quando passa por mim em direção à saída do apartamento. Ela e Effie vão se encontrar com Venia, Flavius e Octavia no Centro de Embelezamento – como Effie chama –, recém-inaugurado pelo trio.

— Vem aqui me ajudar, garoto! – Haymitch pede e eu o sigo até o quarto deles. — Por onde começar?

Ao visualizar a cena, arregalo os olhos e coço a cabeça, distribuindo meu peso no batente da porta. 

Depois que descobriu o sexo das crianças, Effie não para de comprar tudo o que vê pela frente. Então, trato de auxiliar Haymitch a guardar as últimas aquisições feitas para os bebês, que agora sabemos ser um casal. O menino vai se chamar Elliot, que é o nome do irmão mais novo de Haymitch, e a menina, Mayselee, em homenagem à tia de Madge, que foi aliada dele na segunda edição do Massacre Quaternário.

Quase não dá tempo de arrumar tudo e também de nos prepararmos para o jantar, antes do retorno de Effie e Katniss. No entanto, parecendo que havíamos cronometrado nossos passos, quando termino de vestir meu terno escuro e chego à sala, a porta se abre, revelando uma Katniss estonteante, num vestido verde-escuro, longo e bem marcado, mas sem ser vulgar. 

Haymitch se junta a nós em seguida e Effie aplaude a nossa pontualidade, dando os últimos retoques na gravata de Haymitch. Ela nos olha admirada, porém sua expressão embevecida logo é substituída pela pressa em nos colocar a caminho do tão esperado jantar.

Ao sairmos, vejo que o clima na Capital está muito diferente dos outros dias. 

Espontaneamente, as pessoas estão nas ruas, carregando faixas e bandeiras coloridas com o brasão de seus distritos. Muitos têm os rostos e corpos pintados, celebrando um ano de liberdade.

Katniss observa tudo da janela do carro com os olhos marejados e alguns sorrisos fugazes.

— Prim adoraria fazer parte da comemoração – sussurra ela, mais para si mesma do que para alguém ouvir.

— Naturalmente – concordo e ela olha pra mim, sentindo-se encorajada a sorrir. E é algo contagiante.

Ao longe, avisto a construção opulenta, que já abrigou o Presidente Snow e foi o palco de sua tirania. Um nó se forma em minha garganta ao lembrar os momentos difíceis que passei quando estive em poder da Capital. 

As entrevistas durante a rebelião, em sua maioria, foram feitas na mansão presidencial. Recordo como Portia precisava ajustar as minhas roupas, para ocultar minha magreza e meus ferimentos, e as terríveis ameaças e torturas que sofria antes e depois das transmissões.

Tento mascarar o mal estar da melhor forma possível, quando finalmente entramos naqueles cômodos ainda tão suntuosos, mesmo após as mudanças feitas pelos novos habitantes.

Conforme nos aproximamos da sacada do grande salão onde acontecerá o jantar, os dedos delicados de Effie fazem floreios no ar, apontando todos os detalhes da decoração e da comida.

Enquanto ela fala, percorro o local com os olhos, sorrindo e meneando a cabeça em forma de cumprimento para as pessoas, até que meus olhos encontram a antiga estufa da mansão. Vejo que Katniss segue meu olhar. Ela estremece e eu pressiono levemente seus dedos, entrelaçados aos meus.

Desvio sua atenção, apontando para a pista de dança, e encontro uma ótima forma de distração para nós dois.

Como a festa de hoje é muito mais democrática do que aquela em que comemoramos nosso falso noivado, há pessoas de vários cantos do país, movendo-se cada um a seu modo.

Mesmo sob os discretos protestos de Katniss, eu a levo até lá. Felizmente, em pouco tempo, ela decide que pode tentar se divertir um pouco também.

Eu e Katniss não nos intimidamos com os passos diferentes dos outros Distritos e nos esforçamos para aprendê-los.

Quando uma canção tradicional do Distrito 12 se inicia, passamos de aprendizes a mestres e arrancamos assovios de admiração e incentivo de todos os lados. Terminamos a dança, rodopiando abraçados. Ainda ofegantes ao final da música, nós nos unimos às palmas das pessoas que nos cercam.

Logo após, o jantar é anunciado e descubro que foram reservados lugares de honra à mesa para mim e Katniss, assim como para outras pessoas que desempenharam papéis importantes na revolução. Então, Haymitch e Effie se sentam próximos a nós.

Depois de servida a refeição, a Presidente Paylor se ergue de sua cadeira e pede a palavra.

— Boa noite a todos. – Ela bate algumas vezes um talher na borda de sua taça antes de um curto discurso. — Felicito a cada um aqui presente, pois, sem vocês, não haveria o que comemorar nesta noite. Não podemos nos esquecer daqueles que, mesmo ausentes, mesmo não estando mais entre nós, fizeram parte dessa nossa conquista. – A Presidente Paylor permanece em silêncio por alguns segundos. — Por isso, vou propor a vocês um gesto simbólico. Aproveitando que, surpreendentemente, ainda não está nevando na Capital, serão distribuídas a todos algumas lanternas flutuantes para acendermos juntos. Vamos encher o céu com mensagens de esperança, com homenagens aos familiares e amigos falecidos, com louvores aos heróis que nos trouxeram até aqui.

E assim é feito. As pessoas pegam suas lanternas e escrevem seus desejos e pensamentos no objeto feito de papel de seda com uma espécie de vela no centro, que, depois de acesa, serve de combustível para o balão de ar quente alçar voo.

— Eu peguei essa aqui pra você escrever o nome dos seus familiares. – Katniss senta-se ao meu lado e me oferece uma lanterna branca. — Você fala tão pouco deles comigo e, às vezes, eu acho que é pra que eu não me sinta culpada.

— Não é isso… É que eu acho muito difícil falar deles no passado, e não no presente – esclareço.

— Eu entendo bem isso – admite ela, acariciando meus cabelos.

— Katniss, você pode escrever os nomes dos meus familiares na lanterna? Eles seriam sua família também. – Eu lhe entrego o pincel e Katniss começa a delinear os nomes dos meus pais e dos meus irmãos no papel de seda, com sua bela caligrafia, enquanto eu continuo a falar sobre eles. — Eu e meu pai éramos muito ligados. Com minha mãe e meus irmãos, eu não tinha tanta afinidade, mas eram minha família e, mesmo que pudesse eleger qualquer outra no Distrito, eu iria escolhê-los de novo e de novo e de novo.

— Você é um filho e um irmão muito leal.

— Eu sinto que o tempo em que convivi com eles foi apenas um rascunho do que é o amor familiar. – Entrego a Katniss a lanterna que eu estava enfeitando antes que ela se sentasse ao meu lado. Nela, estão escritos nossos nomes e, abaixo deles, desenhei três pontinhos, um ao lado do outro, como reticências. Um pedido implícito de continuidade, uma prece para que, depois de nós, não haja um mero ponto final. — É com você que eu quero viver esse amor familiar pra valer. Eu posso ser leal aos meus pais e aos meus irmãos, mas quero que saiba que nada se compara à minha lealdade a você.

Recebo seus lábios nos meus. Eles têm o calor e a suavidade que nunca perdem o dom de me enfeitiçar.

Katniss me devolve a lanterna com os nomes dos meus familiares e, no lado oposto, escrevo o nome do pai dela e o de Prim. Ela repete o gesto, dessa vez redigindo os nomes de outros tributos e companheiros de rebelião que já se foram.

Com o que sobrou das tintas que usamos, pinto um tordo na lateral do rosto de Katniss e ela faz uns rabiscos em minha face também, dizendo que é um dente-de-leão.

Quando enfim nos juntamos às demais pessoas, muitas lanternas já flutuam tranquilamente no ar, embaladas por uma brisa leve, iluminando o horizonte e proporcionando uma bela vista, mesmo à distância.

Haymitch me entrega uma caixa de fósforos para eu acender as nossas lanternas. No entanto, antes que eu faça isso, Katniss me toma pela mão e me conduz até o local mais improvável. A fachada da mansão presidencial.

Do ponto onde estamos, posso distinguir perfeitamente os mastros em que eu e ela estávamos quando as bombas explodiram. É o exato local onde Prim perdeu a vida.

Acendo o fósforo para aquecer as velas das nossas lanternas e, depois de acesas, elas sobem inofensivamente.

É impossível não comparar o movimento ascendente das lanternas iluminadas com a descida suave dos paraquedas que mataram inocentes há um ano, que mataram Prim.

Nossos olhos não se desgrudam das luzes soltas no ar, que se elevam acima de nossas cabeças. O vento que as sopra para o alto é calmo e frio, arrepiando nossa pele.  

As lágrimas que Katniss conseguiu segurar até o momento descem por suas bochechas. Envolvo-a em meus braços e ela se aninha em meu peito.

Então, choramos juntos a perda de Primrose. Choramos por tudo e todos que foram sacrificados.

— Eu consegui vir até aqui me despedir dela, Peeta. Não pensei que eu fosse capaz, mas Prim me ajudou… Eu precisava dizer adeus! – Katniss sussurra em meu ouvido.

— Prim vai continuar nos ajudando. Sempre.

O fim da rebelião não foi exatamente o fim das nossas batalhas. 

Outras lutas começaram a ser travadas desde então. Fomos derrotados em algumas, mas já podemos celebrar pequenas vitórias.

Pequenas, mas significativas.

 


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Notas finais do capítulo

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Olá, pessoal!

Capítulo 50! 

Nem acredito que cheguei até aqui e só tenho a agradecer a vocês que acompanham, recomendam, comentam e me incentivam...

Beijos! 

Isabela