A Redenção do Tordo escrita por IsabelaThorntonDarcyMellark


Capítulo 51
Por enquanto


Notas iniciais do capítulo

Olá, pessoal!

Amanhã é meu aniversário e o presente que dei a mim mesma foi terminar esse capítulo!


Ele tem de tudo um pouco e ideias que eu estava guardando desde a lua de mel. Espero que gostem!

❤❄❤❄❤❄❤❄❤❄

Boa leitura!



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Por Peeta

Não tínhamos planos para a manhã seguinte ao jantar na mansão presidencial. No entanto, Katniss me surpreende ao pedir para visitar a loja de Tigris nesse dia de folga, já que o nosso retorno ao Distrito 12 será apenas amanhã. Fico feliz pela iniciativa dela, pois temos uma grande dívida de gratidão com a antiga estilista dos Jogos.

— Você quer sair que horas? – pergunto à Katniss, quando nos sentamos à mesa para o café da manhã.

— Sair? Achei que não fossem mais ao hospital – comenta Haymitch ao se acomodar próximo a nós.

— Hoje vamos à loja de Tigris! – Katniss responde a Haymitch e, em seguida, volta-se para mim. — Pode ser agora cedo, assim que terminarmos de comer?

— Se quiserem, podemos dar uma carona a vocês, pois vamos sair daqui a pouco também – oferece Haymitch. — Effie ainda quer fazer compras.

Do outro lado do cômodo, Effie sacode no ar a lista que eu havia deixado com ela, sinalizando que deve comprar hoje tudo o que pedi.

— Preciso providenciar algumas coisas para duas crianças! – Ela pisca em minha direção e eu balanço a cabeça em sinal de entendimento, mas paro o movimento quando percebo que Katniss parece intrigada, olhando alternadamente para mim e Effie.

Quando saímos do prédio, o carro já está nos aguardando. O motor acelera e os pneus emitem um zumbido agudo quando entram em atrito com o asfalto. O som me faz sobressaltar e, então, constato que estou receoso a respeito dessa visita.

Katniss põe sua mão sobre a minha e acaricia meus dedos. Eu ofereço um sorriso em agradecimento e aceno com a cabeça, antes de voltar a olhar para fora da janela. Por todo o trajeto, luto contra a onda de temor que me invade.

Conforme nos aproximamos, reconheço alguns dos lugares que atravessamos, disfarçados e feridos, para chegarmos ao local que foi nosso último esconderijo durante a rebelião.

O motorista estaciona em frente à loja. Effie e Haymitch pedem que cumprimentemos Tigris em nome deles e nós descemos do automóvel logo depois.

Diante da fachada, observo que não está mais encardida como antes. Pelo visto, a loja foi reformada e recebeu muitas melhorias.

Somos recepcionados por Tigris, que parece ronronar de alegria ao nos ver. Expressando nossos agradecimentos, abraçamos a figura estranha com traços e trejeitos felinos, cujos movimentos lembram a postura de um tigre, o predador que ela personifica. Seus olhos escuros e rodeados de tatuagens fazem com que ela pareça estar nos observando com muito mais intensidade do que pretende.

Os longos bigodes de gato implantados cirurgicamente sobem e descem, enquanto Tigris sorri e nos conta que, com a ampliação das vendas para todos os Distritos, expandiu seus negócios, além de ter retomado a carreira de estilista, criando e produzindo suas próprias peças.

Assim como na primeira vez em que estivemos aqui, ao entrar na loja, Katniss passa os dedos pela maciez dos itens de vestuário dispostos nas prateleiras.

— Como vocês estão vendo, muita coisa mudou. No entanto, a principal delas é que Peeta agora sabe o que fazer com você, guria. – Tigris dá uma gargalhada gutural, após trazer à nossa memória a frase perfeita que ela usou para definir o que muitos, especialmente Alma Coin, pensavam a respeito de Katniss na época em que aceitou ser o Tordo.

Eu e Katniss nos entreolhamos sem jeito.

— Porém algo não mudou – continua Tigris, com voz grave.

Nossa antiga guardiã empurra o painel na base da parede, à frente da abertura de onde se vê a escadaria íngreme que leva ao subsolo. É nesse momento que se abre para nossos olhos o porão onde nos refugiamos no final da rebelião.

Katniss me fita com ar entristecido, mas desce as escadas sem titubear. Ela está revestida da fortaleza que sempre foi sua característica.

Eu, no entanto, sinto uma ligeira inquietação antes de segui-la. Tigris não nos acompanha, deixando-nos a sós.

Quando alcanço o piso de concreto, passeio os olhos pelo local e as recordações me assolam de modo preocupante. Minha mente é invadida por algumas lembranças com aquele brilho que indica a falsidade delas.

Há muito tempo que venho conseguindo evitar crises e isso torna ainda mais difícil minha tentativa de me conter. A dor do veneno se alastra por minhas veias e alcança minha cabeça, forçando-me a fechar os olhos.

— Katniss… Não estou bem. É melhor que suba as escadas e fique longe de onde estou. Você… faz isso… por mim? – suplico, num esforço imenso.

— Peeta, não quero deixar você sozinho. Não vou permitir que se machuque! – Katniss fala atrás de mim e apoia suas mãos em meus ombros.

Involuntariamente, faço um movimento brusco para me afastar e ela se dá conta da gravidade da situação. Todo o sangue se esvai do rosto de Katniss e ela permanece olhando pra mim. Uma única lágrima se forma e escorre por sua face.

— Katniss, por favor… – Minha voz vai sumindo, enquanto minhas mãos tremem em busca de algo em que se prenderem.

A presença dela ao meu lado me provoca as mais diversas sensações. Algumas parecem brotar de dentro de mim. Amor, carinho, admiração, fascínio. Outras me dão a impressão de terem sido empurradas para o interior da minha mente. Asco, ódio, pavor, repugnância. Mas estão todas aqui, misturadas, até o ponto de eu não saber o que vem de mim e o que foi causado pelo telessequestro.

Mesmo me sentindo enjoado, com a dor se enraizando em meu cérebro, mantenho um pouco de controle enquanto ela sobe os degraus. Conto cada segundo como uma eternidade até que seus pés atingem o andar superior.

Agarro o suporte das escadas, onde minhas algemas ficavam presas, justamente para não atacá-la. Mal posso crer que, depois de um ano, estou aqui, nesse mesmo lugar, ainda refém do que foi feito comigo.

Meu corpo está rígido e meus músculos gritam para eu me mexer e me livrar desse desconforto, mas me mantenho firmemente preso onde estou.

Atordoado com a confusão de sentimentos, não sei quanto tempo se passa até que ouço alguns passos avançando aos poucos nos degraus feitos de pedra, deixando para trás o topo da escada.

— Eu estou aqui, Peeta. Não vou lhe fazer mal. Jamais. Você não vai me fazer mal, porque você me protege. Nós protegemos um ao outro.

Quanto mais as passadas de Katniss ecoam em meus ouvidos, mais meu rosto se contrai. Ela faz um apelo angustiado, ainda que em tom baixo:

— Peeta, volta pra mim. Está tudo bem agora… Diz que está tudo bem, por favor.

Essa voz. A voz dela. Seu timbre, que mistura dor e suavidade, faz todo o resto desaparecer.

O formigamento em minhas mãos apertadas no corrimão da escadaria me obriga a movimentar meus dedos. Consigo vencer a tensão dos meus membros e soltar a grade, deixando-me cair no chão.

O solo frio deixa uma sensação agradável contra as palmas das minhas mãos, quando me firmo para me erguer.

Eu me ajoelho no chão e os meus músculos antes retesados doem. Abro os olhos lentamente e minha retina dilatada se acostuma com a claridade aos poucos. Ergo minha cabeça em direção ao meio da escada, onde sei que ela está.

— Peeta… – Katniss suspira com alívio ao ver os meus olhos recuperarem seu aspecto normal.

Ela me observa, ainda hesitante em se aproximar. Ergo o braço e ela desce. Katniss não tira os olhos de mim até que esteja à minha frente. Alcanço sua mão, entrelaço nossos dedos e os levo até meus lábios. Fecho os olhos com força e respiro com dificuldade.

O ar que tento inspirar parece não caber em meus pulmões. Katniss segura suavemente a minha nuca com a mão livre e gruda minha cabeça em sua cintura.

— Estou aqui. Sempre estarei.

Ela se senta em um dos degraus e deito minha cabeça em seu colo. Fico nessa posição até estar minimamente recuperado, ao menos no aspecto físico, pois estou devastado emocionalmente. Mesmo após todo o recente acompanhamento médico, não pude conter esse colapso.

— Vamos ao hospital? – Katniss sugere e concordo, pois é o único destino que considero possível agora.

Levanto a cabeça e forço um sorriso, mas minha batalha contra o nó em minha garganta já está perdida. Ainda não consigo pronunciar uma palavra sequer.

— Eu não deveria ter pedido para vir aqui. – Katniss segura a respiração, em agonia pelo fato de eu me encontrar tão abatido e ela estar se sentindo tão culpada.

Eu posso ver a dor em sua expressão, na forma como ela olha para a trilha de lágrimas que ficou marcada em meu rosto e no modo como aperta seus lábios, tentando ocultar suas emoções, sem sucesso. Não consigo vê-la assim e me sinto impelido a falar.

— Vou confessar uma coisa. Eu estava com muito medo de vir pra cá. Por você, por mim. Mas não quis demonstrar isso. – Respiro fundo, recuperando o fôlego. — É sempre difícil passar pelos flashbacks, porém eu consegui me controlar sem me ferir. E o mais importante… A ideia de atacar você nem passou pela minha cabeça. Pode parecer pouco, mas considero um grande avanço. Então, não me arrependo de termos vindo.

— Você ficou mesmo mais calmo do que da última vez – afirma ela, com um sorriso tímido, emaranhando seus dedos em meus cabelos.

Tigris desce cautelosamente a escada e nós dois olhamos para cima em sincronia.

— Tomei a liberdade de chamar uma ambulância. Ela está lá fora. – avisa a estilista. — Vocês estão bem?

— Vamos ficar bem. Obrigada! – Katniss agradece e nos despedimos de Tigris, manifestando nosso reconhecimento por toda a ajuda mais uma vez.

Katniss me ampara em todo o caminho até o veículo. Sou colocado na maca que está no interior dele, o que me permite descansar um pouco durante o percurso.

Seguimos em silêncio, enquanto um enfermeiro mede minha pressão arterial e minha frequência cardíaca. Depois, ele nos acompanha desde o pátio do hospital até o corredor interno que tanto visitamos nos últimos meses e onde nos deparamos com a Dra. Ceres.

— Vocês por aqui hoje? – indaga ela preocupada.

— Eu tive uma recaída, Dra. Ceres – despejo sem rodeios.

— Oh… – A médica tenta ocultar sua surpresa. — Preciso vê-lo em meu consultório, então. Encontro você lá em dez minutos, pode ser?

— Combinado. Em dez minutos – confirmo.

— Você deveria falar com o Dr. Aurelius, Katniss. Se não me engano, ele está na sala dele ainda – aconselha a Dra. Ceres.

Eu e Katniss levamos pouco tempo para chegar ao consultório do Dr. Aurelius. No entanto, como ele também não esperava nos ver nesta tarde, está de saída para visitar o quarto de outro paciente.

— Katniss, você pode me aguardar aqui. Não devo demorar – propõe o médico.

— Tudo bem. Eu espero – concorda ela, antes de o Dr. Aurelius sair.

Depois que ele se afasta, pergunto:

— Você fica aqui, então, enquanto vou para o outro consultório, Katniss?

— Sim. É só que… – Ela faz uma pausa e olha para o relógio.

— Está precisando de alguma coisa? Você está tão pálida – reparo, segurando cada lado de seu rosto.

— Estou bem. Só estou… faminta – sussurra ela.

— Vou ao refeitório pegar algo pra você comer. Eu conheço bastante gente por lá.

— Mas a Dra. Ceres já deve estar chegando para falar com você, Peeta.

— Pode deixar. Eu escrevo um bilhete pra ela. – Beijo sua testa e caminho até a porta.

Seguro a maçaneta e me viro para trás. Os olhos de Katniss estão vermelhos outra vez.

— Peeta… – Ela me chama. — Não importa o que aconteça. Eu amo você. Muito.

Com passos rápidos, eu a alcanço e puxo seu corpo para junto do meu, beijando seus cabelos, quando ela se aninha em meu peito. Fico reconfortado com a declaração de amor inesperada e, ao mesmo tempo, apreensivo com sua afirmação inicial, carregada de significados.

Não importa o que aconteça. O que ela imagina que pode acontecer?

— Também amo você sem medida. – Encosto meus lábios nos dela demoradamente.

Em seguida, eu me afasto o suficiente para ver sua face e Katniss assente sem dizer uma palavra. Depois de soltá-la devagar, vou até o consultório da minha médica.

— Dra. Ceres… – chamo do lado de fora.

Dou leves batidas na porta, que logo se abre, pois estava apenas encostada.

— Com licença – peço permissão para entrar, mas a sala está vazia como eu previra.

Eu me aproximo da mesa e destaco uma folha do bloco de anotações que está sobre ela. Procuro algo com o que escrever no papel.

Logo ao lado de uma bandeja de prata com alguns instrumentos médicos, há uma caneta tinteiro, que eu não me atrevo a pegar, pois a cor branca que domina o ambiente – o piso, as paredes, as cortinas e os móveis – parece conjurar os respingos daquela tinta preta por toda a parte e eu não me arriscaria.

No entanto, apesar do meu cuidado, quando seguro a única caneta esferográfica que encontro, ela estoura acidentalmente, espalhando tinta azul em minha mão.

Vou depressa ao banheiro que há na sala e tento por uns bons minutos lavar a pele manchada. Ao fechar a torneira, ouço os passos suaves da Dra. Ceres dentro do consultório. Quando estou prestes a abrir a porta, o som da voz de Katniss me impede de destravar o trinco.

— Dra. Ceres? Eu sei que Peeta não está aqui – afirma ela com voz trêmula. — Pedi que ele fosse ao refeitório pegar algo para eu comer. Não foi intencional e não sei se estar aqui é a coisa certa, mas eu estava pensando… É a oportunidade que tenho de conversar com a senhora sem que ele saiba.

Essa frase me deixa congelado e me põe num dilema. Não sei se devo revelar a elas que estou aqui.

A princípio, decido que sim. Não é correto ficar escondido e ouvir um assunto que Katniss pretende manter fora do meu conhecimento.

Por outro lado, Katniss vai ficar triste por eu saber que ela queria ter essa conversa com a Dra. Ceres, em segredo.

Vou até o fundo do banheiro, para verificar se a distância abafaria o som de suas vozes, mas ainda posso distinguir cada palavra.

— Pode me chamar de você, Katniss.

— Ok. Vou me lembrar disso.

— E sobre qual assunto quer conversar?

— Gostaria de saber alguns detalhes sobre o tratamento do Peeta, saber se ele abordou alguns assuntos… – Katniss responde, tentando dar um ar casual e despreocupado às suas palavras, sem conseguir de fato.

— Eu sei que você tem a melhor e mais nobre das intenções, mas isso vai contra a ética profissional, Katniss.

— Eu preciso saber como ajudá-lo. – Seu tom de voz está tingido de desespero. — Ou, ao menos, como não atrapalhar o tratamento dele.

— Entendo, mas… Vamos fazer melhor? Vamos falar sobre você, e não sobre ele. Vou até retirar o meu jaleco, pra eu parecer menos com uma médica. Que tal?

— Tudo… bem. – Katniss vacila e eu rio sozinho, pensando que só mesmo a Dra. Ceres para convencê-la a se abrir tão facilmente.

— Ótimo. Eu tenho um sanduíche aqui na minha bolsa. Quer dividir?

— Não é preciso, Dra. Ceres.

— Ora! Se Peeta foi ao refeitório buscar um lanche, é porque você deve estar com fome – insiste a Dra. Ceres e Katniss deve ter assentido, pois a médica prossegue. — Só vou ali lavar as mãos.

Meu sangue gela em minhas veias, mas minha circulação se normaliza ao ouvir barulho de água corrente do lado de fora do banheiro. Só agora me recordo que há uma pequena pia em um dos cantos do consultório.

— Muito bem. Aqui está o seu pedaço do sanduíche. – A Dra. Ceres volta a falar. — Vamos conversar um pouco sobre você, então?

— Eu não sei por onde começar – fala Katniss, baixinho.

— Pois tenha certeza de que você já começou a se abrir – diz a Dra. Ceres com firmeza. — Você está aqui em meu consultório, fazendo um pedido inusitado. Algo que obviamente é muito difícil pra você. E, mesmo antes disso, veio para a Capital buscar auxílio, esforçando-se por se recuperar.

— Minha recuperação tem nome e sobrenome. Peeta Mellark. É ele que me mantém sã. Mas eu… Eu acho que dificulto bastante o restabelecimento dele.

— Permita-me discordar de alguns pontos. Aliás… Eu discordo de todos os pontos. – A Dra. Ceres ri e imagino que seja para descontrair a conversa. — Já estou feliz por ter esse papo informal com você. É uma oportunidade de romper esse seu padrão de não reconhecer seu próprio esforço em acertar, seu próprio valor e potencial.

— Eu também estou feliz de poder conversar com alguém que Peeta admira tanto. E eu também.

— A recíproca é verdadeira. Eu admiro muito, tanto o Peeta quanto você. Só de pensar que tantas pessoas fizeram de tudo para que vocês fossem a ruína um do outro e, ainda assim, os dois conseguem ser exatamente o oposto disso… Enfim! Não entendo de onde vêm esses críticos internos e mal informados, que parecem nunca descansar dentro das cabeças de vocês dois… Você é dramática como o Peeta?

Katniss ri antes de responder.

— Talvez um pouco mais… Queria eu ser apenas dramática como ele! Acho que já melhorei muito, mas ainda sou depressiva, insegura, ansiosa, fraca.

— Então, é assim mesmo que você se enxerga no seu íntimo? Saiba que a depressão e a ansiedade são sinais de luta, não de fraqueza.

— O Dr. Aurelius me diz a mesma coisa. Só que, diferente de Peeta, eu fraquejo em algumas situações, sim. Nós dois lutamos por aquilo em que acreditamos, mas, quando quebro, eu me entrego totalmente. – Enquanto Katniss fala, meu coração se aperta. — Eu também não tenho o otimismo dele e, além disso, sempre fui muito dura.

— Com você mesma, pelo que estou ouvindo – assinala a Dra. Ceres, enfática.

Katniss fica calada. Tento decifrar o motivo do silêncio dela e a resposta vem logo a seguir, quando ela faz um comentário que nada tem a ver com o que estava sendo abordado antes.

— Dra. Ceres… Ontem Peeta me falou sobre amor familiar, sobre querer viver isso comigo pra valer.

Agora percebo que o que falei ontem enquanto pintava as lanternas com Katniss a abalou de alguma forma. Talvez seja esse o motivo do comentário que ela fez antes de eu sair do consultório do Dr. Aurelius.

Por outro lado, essa mudança brusca de assunto entrega o motivo pelo qual ela está aqui. Então, posso afirmar que a Dra. Ceres entendeu que a menção ao que eu disse ontem tem mais nuances do que aparenta e que Katniss está tratando sobre um tema delicado.

— Esse é um ponto de discordância entre vocês? – pergunta a médica.

— Não perguntei a Peeta sobre o que significa exatamente o amor familiar na visão dele, porque… Eu temo a resposta.

— Então, é porque você já sabe qual será a resposta dele.

— Ele sente muita falta da convivência com a família, especialmente com o pai. – A voz de Katniss falha um pouco. — Você acha que, se Peeta tivesse com quem formar laços familiares fortes, isso facilitaria as coisas pra ele?

— Você quer dizer estabelecer vínculos tão estreitos como o que ele tinha com o pai?

— Sim. Eu me refiro a filhos. – Katniss suspira profundamente. — Os filhos que ele tanto quer, mas eu… Não.

Inclino minha cabeça pra frente, com as mãos em minhas têmporas, lamentando a dor que me causam as palavras dela. Eu sempre procuro entender a opção de Katniss, mas ouvi-la negar essa possibilidade dilacera a minha alma em todas as vezes.

— E ele sabe disso?

— Sim, ele sabe e sempre diz que respeita a minha opinião. Mas eu sei que é muito difícil para Peeta viver sem a perspectiva de ver nossa família crescer… Primeiro, tiraram dele a própria consciência e, depois, ele soube que quase todas as suas referências da infância e da adolescência, boas ou ruins, haviam desaparecido. Apesar de eu sempre ter feito parte da vida dele de algum modo, não havia, de fato, qualquer convivência entre nós. Eu era apenas alguém idealizado por ele… Às vezes, acho que ainda sou e a ideia de decepcioná-lo me apavora.

— Katniss, se você optou por não ter filhos, deveria conviver bem com essa decisão. No entanto, pelo que você acabou de me dizer, isso ainda não está bem resolvido pra você, o que pode ser sinal de que, no fundo… – a Dra. Ceres interrompe o que está dizendo e posso ouvir o barulho de dedos tamborilando numa superfície de madeira, até que ela prossegue: — Desculpe-me. Essa é apenas a minha opinião. O importante é que você foi honesta com Peeta o tempo todo.

— Nem sempre. – A voz de Katniss fica embargada. — Antes do incidente na floresta, eu prometi que tentaria vencer meu medo, mas desisti.

— As circunstâncias eram outras quando você fez essa promessa e Peeta deve ter consciência disso.

— Eu sei, mas não fui justa com ele. Voltei atrás em algo tão importante e isso me dá uma sensação de vazio por dentro.

— Talvez essa seja a resposta para a pergunta que está em seu coração. Acho que é essa a resposta que você teme de verdade… Porém, não quero que você se sinta ainda mais pressionada. Tenha paciência consigo mesma. Não se cobre tanto. A cobrança e a pressão que vêm desse sentimento somente dificultam seu processo de recuperação.

Fico feliz de não ser o único que tem essa impressão a respeito do que realmente se passa no coração de Katniss, o que, de algum modo, alimenta a minha esperança de vê-la mudar de ideia mais uma vez.

Alguém bate à porta e escuto uma cadeira sendo arrastada.

— Você me dá um minuto, Katniss? – É a pergunta que a Dra. Ceres faz antes de chegar aos meus ouvidos o barulho de alguém caminhando.

— Dr. Aurelius! – a Dra. Ceres exclama. — Pode entrar. Você deve estar à procura de sua paciente!

— Estava mesmo – confirma o médico. — Fui examinar alguns itens de sua ficha, Katniss, e notei que faltou verificar um ponto em relação aos seus medicamentos. E eu preciso enviar esse formulário com urgência ao laboratório.

— Ah! É verdade – informa a Dra. Ceres. — Hoje um dos médicos residentes me cobrou esse documento para dar início à produção do remédio.

— Você tem uma caneta à mão? – o Dr. Aurelius pede.

— Tenho sim – responde a médica, mas, como não poderia ser diferente, ela não encontra caneta nenhuma. — Onde está minha caneta? Estava bem aqui… Só tenho essa caneta tinteiro, que eu quase nunca uso, mas funciona.

— Obrigado. – Ouço o médico agradecer. — Muito bem, Katniss. Você quer que eu altere a fórmula do seu remédio que tem efeito contraceptivo?

— Não. – A resposta imediata e categórica de Katniss faz meu coração afundar. — Vamos deixar assim como está – pede ela de modo mais suave e eu solto o ar que estava represado em meus pulmões. — Por enquanto.

Para tudo. Katniss disse por enquanto?

A felicidade expande meu peito antes apertado pela angústia. Quase denuncio meu esconderijo ao soltar uma exclamação. Fecho os olhos para recuperar o autocontrole e, quando faço isso, duas grossas lágrimas se desprendem deles.

— Então, vou pedir para o laboratório produzir a antiga fórmula do medicamento – comunica o Dr. Aurelius. — E onde está o Peeta?

— Ele foi ao refeitório – responde Katniss.

— Será que seguraram o Peeta por lá? – insinua a Dra. Ceres. — Não duvido nada. A última passagem dele pela cozinha foi um sucesso... Eu vou ver se encontro com ele e também posso pedir a alguém para levar o formulário ao laboratório.

— Isso é ótimo. Já que é assim, vou levar minha paciente comigo agora – avisa o Dr. Aurelius. — Vamos, Katniss?

O ruído de passos e o abrir e fechar da porta indicam o momento em que todos saem da sala. Espero alguns minutos para deixar o banheiro e, logo depois, o consultório.

No percurso até o refeitório, a Dra. Ceres se depara comigo quando viro em um dos corredores.

— Peeta! Eu estava procurando por você, mas você deveria vir… dali. – Ela aponta confusa para onde fica o refeitório, isto é, o lado oposto do lugar de onde saí. — Não me diga que…

— Ainda não fui ao refeitório. – Eu a interrompo antes que tenha que entregar onde eu estava nos últimos minutos, mas vejo seus olhos pousados na minha mão ainda manchada de tinta azul e não me seguro. — Peço desculpas pela sua caneta. Ela estourou na minha mão e tive que usar o banheiro do seu consultório para me limpar. Ou, pelo menos, tentar – digo sem graça.

A Dra. Ceres franze o cenho, encaixando as peças para descobrir por conta própria o motivo do meu sumiço.

— Você está bem? – indaga ela.

— Muito bem. – Um sorriso escapa dos meus lábios e a médica sorri também.

— Ok, então. – Ela respira fundo e estreita ligeiramente os olhos pra mim. — Trate logo de providenciar um lanche para a sua esposa. Se bem que…

— Ela já comeu metade de um sanduíche, verdade?

— Comeu sim, enquanto abria o coração, de modo surpreendente. – A Dra. Ceres endireita sua postura, ajeitando o jaleco branco, no qual está novamente vestida, e faz uma expressão quase séria. — E que isso não se repita!

Eu assinto, sorrindo agradecido para ela, e saio em disparada até o refeitório. Lá chegando, os funcionários preparam duas embalagens com alguns alimentos e bebidas para mim e Katniss. Quando retorno à sala do Dr. Aurelius, aguardo pouco tempo até ela sair. Eu a recebo com um abraço e um enorme sorriso.

— Não pensei que fosse ver você sorrindo desse jeito hoje. Não depois de…

Pouso minha mão levemente em seus lábios e balanço a cabeça.

— O flashback de hoje não significa nada perto do que estou sentindo. – Seguro suas mãos e as levo ao meu peito. — Estou com um sentimento bom dentro de mim, que me faz ver todas as minhas possibilidades.

— E eu faço parte delas?

— De cada uma delas. Você é parte fundamental.

Katniss esconde o rosto na curva do meu pescoço e sussurra:

— Não vejo a hora de voltar para casa… De voltar à floresta!

— Comigo?

— Com você. Eu vou conseguir.

Pego as sacolas com os lanches e a levo pela mão até os bancos de espera que ficam no corredor. Entrego a ela uma pequena garrafa de suco e um pedaço de pão, enquanto me sirvo de um pouco de cada coisa também.

— Você já falou com a Dra. Ceres? – Katniss questiona.

— Digamos que sim. Tivemos uma conversa rápida, porém eficaz.

— E o que é isso na sua mão? – Ela repara no borrão azul que não consegui remover completamente.

— Tinta de caneta – respondo distraidamente.

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A viagem para o Distrito 12 é quase inteiramente preenchida, por um lado, pelo falatório de Effie em relação aos planejamentos para o casório de Delly e Thom e para a decoração nos quartos dos bebês, e, por outro lado, pelas reclamações de Haymitch a cada turbulência durante o voo.

A preocupação dele é compreensível, pois os médicos da Capital desaconselharam qualquer deslocamento de longa distância de Effie, tendo em vista o estágio avançado da gravidez, que, além de tudo, é gemelar. No entanto, mal sabem eles que Effie ainda pretende ir e voltar à Capital algumas vezes, até sossegar por lá para o nascimento das crianças.

Katniss consegue dormir um pouco. Aproveito seu descanso e vou à sala de controle da aeronave para tentar me comunicar com a Guarda Nacional e arregimentar um último aliado para as muitas surpresas que pretendo fazer pra ela amanhã.

Effie me acompanha, seguida de perto por Haymitch, e ambos me entregam discretamente tudo o que eu havia pedido para comprarem.

Quando me sento novamente ao lado da minha esposa adormecida, os preparativos para o seu retorno à floresta já estão todos encaminhados. Mal posso esperar para ver a reação dela.

É bem tarde quando aterrissamos no Distrito 12 e não dá para avisar a ninguém sobre nossa chegada, pois já estão todos recolhidos em suas residências.

O único que nos recebe ao pararmos exaustos em frente à nossa casa é Buttercup.

Basta eu colocar as bagagens no chão e Katniss girar a chave na fechadura para o gato escapar da minha antiga casa, onde Delly estava cuidando dele, e disparar em nossa direção, miando alto até Katniss pegá-lo no colo.

— Eu senti sua falta, figura! – Ela o afaga, enquanto atravessa a soleira, e eu entro logo depois.

Katniss tenta soltar o bichano no chão, mas ele não aceita.

— Assim eu fico com ciúmes, Buttercup! – reclamo com o gato e Katniss sorri, aproximando seu rosto da patinha que ele ergue manhosamente para ela.

Trago todas as malas e bolsas para dentro da sala de estar.

— Vou lá fora ajudar o Haymitch com as bagagens, senão ele terá que fazer umas quinze viagens de ida e volta – aviso.

— Enquanto isso, vou desfazendo as malas e…

— Não, não! Deixa que eu faço isso – recuso sua oferta, preocupado com a possibilidade de Katniss descobrir algo ao encontrar as minhas encomendas.

— O que você está aprontando, Peeta? Eu percebi suas confabulações com a Effie.

— Eu apenas pedi pra ela comprar alguns itens… Pra fazer umas mudanças aqui e ali, sabe?

— Sei. – Ela me olha desconfiada. — Vou cuidar do Buttercup, então… Como Prim faria.

— Ótima ideia, meu amor. Ele parece estar com saudades de você. – Beijo sua testa e, depois, esfrego os dedos entre as orelhas do gato. — Não o julgo por isso.

Atravesso a Aldeia dos Vitoriosos no sentido do campo de pouso e, no caminho, encontro Haymitch carregado de pacotes.

Eu o ajudo a transportar tudo o que eles trouxeram no aerodeslizador, levando os diferentes volumes para vários cômodos da casa, seguindo as orientações de Effie.

Quando coloco no balcão da cozinha a última caixa, Haymitch bate a mão em meu ombro, agradecido.

— E os planos para amanhã? Estão de pé? – pergunta ele.

— Sim. Pretendo ir com Katniss até a floresta logo cedo.

— Então, só posso desejar que a sorte esteja em favor de vocês, garoto.

— Estará sim. – Eu o puxo para um abraço.

Ouço os passos vagarosos de Effie, vindos da sala, e faço um gesto para que se aproxime de nós, estendendo o abraço a ela também.

— Obrigado por esse tempo de convivência juntos na Capital. Isso prova que somos mais que uma equipe, somos uma família de verdade – agradeço emocionado. — Não sei o que eu faria sem o apoio de vocês.

— Oh, Peeta! – Effie afaga o meu rosto. — Foi maravilhoso receber vocês.

— Pode deixar que vamos cobrar essa conta com juros, quando os gêmeos nascerem – brinca Haymitch.

— Então, eu não vejo a hora de pagar a nossa dívida com vocês! Estou louco pra conhecer essa duplinha.

— Calma, garoto, ainda faltam algumas semanas. Temos que arrumar tudo isso antes. – Haymitch aponta para as sacolas, caixas e pacotes espalhados por todo o lado.

— Bem lembrado. – Coço a nuca, imaginando a trabalheira. — Sinto muito, mas acho que só poderei ajudar depois do casamento de Delly e Thom.

— Eu sei, querido, não se preocupe. Agora, vá cuidar para que tudo dê certo amanhã. – Effie me leva até a porta e eu aceno um adeus para Haymitch, que faz um sinal de positivo em resposta.

Ao voltar pra casa, Katniss já está deitada, com Buttercup enroscado aos pés dela.

Arrumo a mochila e algumas bolsas com tudo o que preciso e deixo tudo escondido num canto do quarto de hóspedes.

Após um lanche rápido e um bom banho, eu me deito ao lado dela, cansado e cheio de expectativas.

A noite traz ainda alguns pesadelos, porém, mesmo tendo um sono agitado, Katniss se levanta antes de mim. Sou acordado aos poucos com seus dedos passeando em meus cabelos. Quando finalmente desperto, eu me deparo com seus olhos impacientes e seu rosto adornado pelos raios de sol da manhã de inverno.

— Bom dia. Fiz café – anuncia Katniss.

— Você já está arrumada pra sair? – Estico os braços para os lados, depois que me sento na cama.

— Sim. Desisti de tentar dormir depois do último pesadelo.

— Eu sinto muito.

— Está tudo bem – fala Katniss e Buttercup se deita entre nós. — Acho que é a ansiedade.

— Então, não vou deixá-la ainda mais ansiosa. Vou me preparar rapidinho.

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Dito e feito, em pouco tempo, nós dois estamos a caminho da floresta, bem agasalhados, por causa do frio que faz.

— Assim como na Capital, ainda não nevou aqui no Distrito – comenta Katniss, entregando-me o arco, para cruzar a tira da aljava de flechas de um lado a outro do seu tronco.

— Acho que falta pouco. – Avalio as nuvens espessas que pairam sobre a cidade. — Espero que aconteça antes do casamento. Delly adora a neve.

— Será que o Gale vem para a festa? – Katniss questiona. — Ele e o Thom sempre foram amigos.

— Não sei. Talvez Gale esteja muito ocupado. Pensei que fôssemos encontrá-lo durante essa temporada na Capital, mas não tivemos nem notícia dele.

— Eu também tinha esperanças de vê-lo. Gale salvou nossas vidas e eu sequer agradeci a ele de modo decente.

— Você gostaria de fazer isso pessoalmente, Katniss?

— Sim. Quando Gale foi à nossa casa para se despedir, depois da Turnê Presidencial, eu não consegui dizer uma palavra sequer e me sinto péssima por isso.

— Gale sabe que não fez por mal. Caso contrário, você acha que ele estaria ali, esperando para acompanhar a sua incursão à floresta?

— O quê? – Katniss pergunta, abrindo um sorriso.

Logo adiante, próximos à cerca, Gale e Rory estão sentados no chão. Ambos se erguem quando veem nossa aproximação.

Katniss corre até eles e segura Rory nos braços com carinho. Em seguida, dá um longo abraço em Gale.

Observo que ele entende o quão delicada é a situação e o motivo pelo qual eu pedi sua ajuda, tanto é que veio sem sua farda de comandante, além de estar acompanhado de seu irmão.

— Você vai ficar em ótima companhia, Katniss – digo, quando eu os alcanço.

— Você não vem? – indaga ela.

— Não agora. Esperarei por você na casa do lago, ao pôr do sol.

— Vamos nos despedir do Peeta, então, Rory. Acho que nossa presença não faz parte dos planos dele para mais tarde. – Gale estende sua mão para mim e Rory repete o gesto, enquanto Katniss fita o chão, enrubescida.

— Cuidem bem dela – peço.

— Pode deixar! – Rory me garante e segue Gale pelo alambrado.

Antes de ir também, Katniss entrelaça seus dedos aos meus e somente os solta depois que atravessa os arames da cerca, ainda que um pouco desajeitada por não poder usar as duas mãos.

— Você conseguiu, meu amor! – exclamo antes que ela se firme de pé. — Era assim que aquele dia deveria ter começado. Com você, Gale e Rory na floresta.

— Obrigada – sussurra Katniss, olhando em meus olhos, enquanto passo o arco para ela através de uma das aberturas da cerca.

Congelo no lugar para ver Katniss, ladeada por Gale e Rory, costurando um caminho entre as árvores. Antes de desaparecer do meu campo de visão, ela se vira, sorri lindamente para mim e faz tudo valer a pena.

Respiro profundamente e sigo até a padaria. Sei que tudo está em ordem, pois, mesmo longe, estava sempre em contato com a equipe. No entanto, é importante demonstrar meu apoio e confiança pessoalmente, ainda mais com a proximidade de um evento tão importante quanto o casamento da minha melhor amiga.

Greasy Sae já está a postos trabalhando. Converso rapidamente com ela e me certifico de que está tudo bem com sua família, especialmente com Daisy.

Na padaria, finalmente conheço minha nova funcionária, Amelie. Ela é alguns anos mais velha que Violet, mas a aparência angelical que lhe proporcionam seus olhos verdes e cabelos cor de mel faz com que as duas pareçam ter a mesma idade.

Ela se distrai com minha presença e se atrapalha um pouco em seus afazeres, porém logo volta ao ritmo normal de suas atividades.

A visita é rápida e, antes de sair, prometo a todos que, em breve, retomarei as minhas tarefas diárias na padaria e tudo voltará aos eixos, como na época da inauguração.

Passo em casa apenas para buscar minha mochila e as bolsas que deixei arrumadas desde ontem e parto para a casa do lago.

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O fim da manhã e a tarde se desenrolam tranquilos como sempre, e eu trabalho incansavelmente para concretizar o que planejei para uma noite romântica.

Aproveito minhas parcas habilidades como eletricista para fazer funcionar dois geradores portáteis, movidos à energia solar.

Subo e desço com dificuldade o salgueiro frondoso à beira do lago para instalar pequenas luzes por sua copa e seus galhos.

Empilho as caixas de madeira que já estavam no interior da casa para servirem de escada e penduro mais das minúsculas lâmpadas ao redor do telhado.

Certamente, o sol fraco, típico dessa estação do ano, não permitirá que se gere energia para que fiquem acesas por muito tempo. Pelo menos, o impacto do acionamento das luzes está garantido.

A luz solar, mesmo tímida, flutua atrás das árvores, transformando o céu em um tom alaranjado brilhante. No entanto, falta um pouco ainda para que alcance a linha do horizonte.

É o tempo que tenho de me lavar, trocar de roupa, acender a lareira e dar o toque final da decoração ao ar livre.

A passagem do dia para a noite durante o inverno é muito mais cedo. Então, logo o céu começa a adquirir as tonalidades de violeta e azul-marinho que antecedem a aparição do véu negro do anoitecer.

Antes que isso aconteça, por diversos pontos da estreita faixa de terra à beira do lago, espalho pequenas velas, que tremeluzem com a brisa leve.

Por fim, acendo as últimas, que são velas flutuantes, e as deixo boiando por sobre as ondas suaves das águas. Felizmente, não está ventando muito e as flamas estão resistindo bravamente.

Empurro um pouco mais para a parte funda as velas que teimam em permanecer junto à margem e, quando me levanto, Katniss surge na clareira próxima ao lago. Sua silhueta completa o cenário pitoresco.

Dou alguns passos à frente para que ela possa me ver.

— Peeta! – Ela me chama antes de visualizar onde estou. — Cadê você?

Sua voz calorosa e animada me traz um intenso alívio. Seu semblante, iluminado como está agora, aquece mais do que qualquer fogo.

Quando ela pousa os olhos em mim, fico de pé com as mãos estendidas de cada lado do corpo, esperando por um abraço.

Ela acha graça, balançando a cabeça, e faz uma parada estratégica em sua caminhada, segurando o sorriso que entregaria que a sua ansiedade é tão grande quanto a minha.

— Não ganho um abraço? – indago, tentando fazer um olhar sedutor.

Katniss tira a aljava de flechas do ombro e a coloca no chão, mas mantém o arco em punho. Ela me espreita, como se eu fosse sua presa.

Então, faz o movimento para lançar uma flecha imaginária em minha direção e completo a encenação ao fingir que ela me acerta no coração, colocando minhas mãos sobre o lado esquerdo do peito.

Ela ri da minha atuação e me observa ainda por alguns segundos antes de correr os olhos pelo que está à minha volta, parecendo absorver o carinho que depositei em cada detalhe que adorna a paisagem.

Katniss não corre até mim num rompante. No entanto, isso não me decepciona. Ela faz melhor, permitindo que eu a admire por inteiro e por tempo suficiente até que assisto, hipnotizado, enquanto os dez metros que nos separam se transformam em cinco, depois em dois e, logo, em nenhuma distância.

Katniss joga os braços ao meu redor. Ela está linda como sempre, sorrindo docemente para mim.

— Como foi o seu primeiro dia de volta? – questiono antes de me entregar ao seu abraço.

— Estou me sentindo agradecida e… feliz! – Katniss continua me puxando para junto dela e eu resisto. — Vem aqui. Estou precisando me sentir aquecida também. Está muito frio!

— Não sei se consigo. Fui alvejado por uma flecha em meu coração e estou morrendo… de amor.

— Assim eu terei que tomar medidas drásticas. – Ela põe suas mãos geladas sob as várias camadas de roupa que estou usando e eu salto para trás num ato reflexo, fazendo uma careta, o que provoca sua risada. — Deu certo o tratamento de choque.

— Choque térmico… Você quis dizer, não é? – resmungo para, em seguida, apertá-la contra mim e pegá-la no colo, levando-a para a beira do lago.

A luz bruxuleante das velas projeta-se nos troncos, nas copas das árvores e nos olhos dela.

Enquanto retiro algumas pequenas folhas presas em seu cabelo, um vento suave corre por entre nós, dando ao início da noite certa serenidade. A calmaria antes da tempestade.

No entanto, a tempestade que se anuncia não é nenhuma outra a não ser a que vejo em seus olhos.

Um olhar expressivo que se prende no meu e, depois, contempla tentadoramente a minha boca, que não permanece por muito tempo longe da sua. Nossos lábios se roçam de leve a princípio, mas esse jeito terno de tocá-la logo se transforma em algo mais cálido.

— Eu também senti saudades das suas vindas à floresta – sussurro.

— Por quê? – Ela afasta o rosto do meu para olhar pra mim.

— Adoro o seu cheiro depois de passear por aqui… – Meu nariz traceja seu pescoço, sentindo a fragrância de sua pele. — E o gosto das frutas silvestres que fica na sua boca. – Meus lábios procuram os dela avidamente e se deliciam com o sabor doce que se desprende deles. — O tom corado do seu rosto… Minha morena linda.

Nós nos beijamos intensamente mais uma vez, enquanto as velas se consomem. Quando o vento sopra mais forte, elas se apagam, uma a uma.

— Que pena… Meu plano inicial falhou – lamento e vejo como ela ergue uma sobrancelha, curiosa. — Ainda bem que tenho um plano B.

As velas se foram, mas a principal chama continua a arder. Levo-a pela mão até o salgueiro e faço um sinal para que ela espere.

Na base do tronco da árvore, aciono os interruptores ligados aos geradores e as microlâmpadas brancas penduradas no telhado da casa e nos galhos acima de nossas cabeças piscam um pouco até se firmarem, iluminando tudo ao redor como cascatas de pontos cintilantes, balançando ao sabor do vento.

Katniss olha para a casa e para o alto e, em seguida, leva as mãos à boca.

— Peeta, isso é incrível…

— Tenho que ir direto ao ponto, pois as luzes não ficarão acesas por muito tempo – digo e ela me olha sorrindo, mas confusa. — Então…

Seguro uma de suas mãos e, com a outra, puxo dos bolsos de trás da calça alguns papéis e uma caneta e os estendo para ela, observando-a afetuosamente.

— Katniss, você quer se casar comigo oficialmente?

Seus olhos se enchem de lágrimas e de surpresa.

— Sim!

— Trouxe os formulários que peguei há um tempo no Palácio da Justiça. Já preenchi alguns campos, mas faltou uma informação… O seu nome de casada.

Katniss pega a caneta da minha mão e, no espaço reservado para isso, escreve cuidadosamente, usando meu peito como apoio:

Katniss Everdeen Mellark.

Logo abaixo, pela primeira vez, ela assina seu novo nome. Quando me devolve os formulários, transpirando emoção, as luzes das lâmpadas oscilam algumas vezes. Ambos rimos e olhamos para cima, depois um para o outro.

— Você é uma Mellark. Verdadeiro ou falso?

— Verdadeiro. Eu sou e serei uma Mellark… Sempre.

Nossos lábios se unem e, quando nos separamos, toda a iluminação se apaga de uma vez.

É então que, desbancando todo o trabalho que tive com a decoração da casa do lago e do seu entorno, a natureza nos brinda com um de seus mais belos espetáculos, derramando minúsculos flocos de neve, que caem suavemente sobre nós.

Beijo a ponta do nariz de Katniss, fazendo derreter um dos pequenos cristais de gelo que pousou graciosamente ali.

Saber que a garota que sempre teve o meu amor terá a partir de agora o meu nome me faz ainda mais apaixonado.

Nós já estamos completamente salpicados de pontinhos brancos, quando Katniss me conduz para dentro da casa. Depois de fechar a porta, ela sacode os flocos dos meus cabelos e, mirando bem no fundo dos meus olhos, ela começa a desenrolar o cachecol em meu pescoço. A lã macia desliza suavemente por minha nuca, até cair de sua mão.

Eu amo quando ela toma a iniciativa e assume o controle da situação. Por outro lado, é extremamente desafiador ser obrigado a me deter para, só depois, também começar a despi-la.

Chega a ser divertido vê-la tão impaciente diante de tantos tecidos separando sua pele da minha. Suas mãos pequenas e ávidas se atrapalham ao tentar arrancar de mim várias peças de uma só vez. Até que ela consegue. Então, é a minha vez de desnudá-la também, de forma provocante.

À medida que nossos beijos ficam mais intensos, deitamos desajeitadamente sobre o colchão improvisado.

Finalmente, não há mais entre nós nenhum obstáculo. A única coisa que cobre o frágil corpo dela é o meu próprio corpo.

Desfaço sua trança e os cabelos dela se espalham em toda parte, emoldurando seu rosto. Retiro os fios da sua testa e ali deposito um beijo.

Sua pele escapa inesperadamente dos meus lábios, quando ela, entre sorrisos travessos, morde o meu pescoço e sobe sua boca até o lóbulo da minha orelha, incendiando-me ainda mais.

Depois que ela torna a recostar a cabeça, recomeço com carícias suaves, usando as pontas dos dedos. Inicio por seu couro cabeludo e contorno seu rosto e seu queixo. Em seguida, escorrego as mãos para seu pescoço e percorro as linhas da sua clavícula.

De olhos fechados, Katniss se remexe inquieta quando meus lábios deslizam pelo vão entre os seus seios até o umbigo, ao mesmo tempo em que meus dedos traçam caminhos paralelos em sua carne.

Ela se arrepia antes mesmo de o ar gélido entrar pelas frestas da porta e das janelas e soprar sobre o rastro úmido que deixo em sua pele nua.

O frio que vem do lado de fora não pode competir com o calor que emana de dentro dessas quatro paredes.

Katniss acaricia meus ombros e move seus dedos, perfilando meu torso, descendo pouco a pouco. Ela corre a mão por minhas costas, arranhando e apertando, na mesma intensidade dos meus movimentos.

Cada pedaço da minha pele que ela alcança é acariciado e beijado, o que aguça o doce anseio de tê-la por inteiro.

De repente, ela espalma as mãos em meu peito e se vira de barriga para baixo. Katniss leva seus cabelos para o lado, num pedido implícito por carinhos na região de seu pescoço, o que atendo imediatamente, afundando meu nariz em sua pele sensível.

Não me contento enquanto não avanço por toda a extensão de suas costas e nádegas.

Seus suspiros invadem meus ouvidos e, sem poder mais me refrear, faço meu caminho dentro dela.

Nossos gemidos se misturam no ar e nossos fôlegos rasos seguem o mesmo compasso.

Deixo de lado a prudência e isso realmente não importa, pois Katniss também não quer ser prudente. Como eu, ela simplesmente deseja e faz, oferece e recebe. Ela se realiza e me realiza de igual maneira.

Ainda ofegante, eu me deito de lado perto dela, apoiando-me no cotovelo e fitando seus olhos cinzentos. Ela fecha suas pálpebras devagar. Percorro os polegares pelas maçãs do rosto dela, delineando-as levemente.

— Estou muito feliz de estar de volta à nossa vida de sempre – declara Katniss.

— A vida de sempre será somente por enquanto… – Eu me deito de barriga para cima, analisando o teto.

Por enquanto? Por que você está dizendo isso? – Ela se apoia no meu peito para ver meu rosto.

— Porque você falou isso uma vez. – Desvio o olhar para ela e me permito um sorriso enorme e radiante. — Não pra mim, mas falou.

— Eu não me lembro. – Katniss franze a testa, forçando a memória, e boceja logo depois.

Ela descansa sua bochecha no meu tórax e sua respiração vai se nivelando calmamente até o seu completo adormecimento.

— Você não precisa se lembrar, pois eu não vou me esquecer de que é só por enquanto, meu amor – sussurro, depois de beijar levemente seus cabelos. — Por enquanto

 


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Notas finais do capítulo

Oi de novo!

Feliz aniversário para mim!

Espero voltar logo...

Beijos!

Isabela