A Redenção do Tordo escrita por IsabelaThorntonDarcyMellark


Capítulo 29
Um dia atípico




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Por Katniss

Acordo cedo, depois da segunda noite longe de Peeta. Uma vez mais, sem pesadelos. Tomo um banho e me arrumo rapidamente.

Essa é a manhã em que Effie chegará ao Distrito 12. O aerodeslizador que a está trazendo pousará no descampado próximo à Aldeia dos Vitoriosos daqui a uma hora.

Greasy Sae não virá hoje para a minha casa, pois vai preparar o café da manhã na casa de Haymitch, onde vamos todos nos reunir. Só vai faltar o Peeta.

Pensando nele, pego o regador de Daisy para molhar as flores. Quando termino, percebo que os tordos fazem aquele estranho silêncio que precede a aproximação de uma aeronave e esse sinal é infalível, assim como os gansos do Haymitch correndo pela rua, só que dessa vez ele não vem atrás deles. Haymitch deve estar se preparando para receber Effie e os gansos ficarão por conta própria hoje.

Sem dúvida, algum aerodeslizador passou pelo espaço aéreo do Distrito 12. No entanto, ainda está muito cedo para a chegada de Effie.

Quando o momento se aproxima, vou até a casa de Haymitch e encontro o meu mentor andando inquieto pela sala. Ele está bem-vestido e perfumado.

— Algo errado? – pergunto.

— Greasy Sae ainda não terminou de preparar tudo o que eu pedi.

— Estou ouvindo, hein, Haymitch! – A velha senhora logo se manifesta.

— Ah, que bom! Pois seria ótimo que estivesse tudo pronto antes de Effie chegar, concorda? – grita ele de volta para Greasy Sae e, depois, vira-se para mim, apontando para a mesa. — Assim eu não tenho como competir com a Capital.

— Hey, calma! Eu ajudo Greasy Sae a terminar tudo a tempo. – Tento apaziguar os ânimos. — E lembre-se, Haymitch, se Effie está vindo pra cá, tenho certeza de que ela não está preocupada em ser júri de uma competição com a Capital.

— Boa garota – diz ele com a voz mais mansa e, quando olho em sua direção, está com um sorriso torto estampado no rosto.

Haymitch vai até Greasy Sae e põe a mão em seu ombro:

— Acho que ela vai gostar dos seus quitutes.

— Mas é claro! Se Effie gosta de você, é porque deve ser uma pessoa fácil de agradar. – Ela o instiga.

— Ao contrário. Ela é muito exigente. – Haymitch alisa o terno que está vestindo. — Não é verdade, docinho?

— Muito exigente – concordo. — Mas gosto não se discute.

— Engraçado… Eu disse a mesma coisa ao Peeta um dia desses, queridinha – revida ele.

— Já está quase na hora, Haymitch! – Greasy Sae o alerta e ele vai esperar o aerodeslizador aterrissar.

Greasy Sae demora um pouco até terminar todos os pratos. Eu a auxilio na arrumação e caprichamos nos detalhes, enfeitando a sala com flores e dispondo sobre a mesa a bela louça que Haymitch tem em casa e nunca usou.

Deve ter havido algum atraso, pois ainda leva um tempo até Effie e Haymitch assomarem na porta da casa dele.

Effie traz uma pequena bolsa e uma caixa branca em seus braços, enquanto Haymitch luta para carregar diversas malas. Ele parece cansado, mas o seu ar de felicidade não tem preço.

— Havia outro aerodeslizador no local de pouso – diz ofegante. — A aeronave da Effie teve que aterrissar perto da Campina.

— Katniss! – Effie exclama quando me vê.

Para vir me cumprimentar, ela consegue a proeza de fazer Haymitch equilibrar também a caixa que está segurando, antes mesmo de ele colocar as malas no chão. Effie ladeia o meu rosto com suas mãos e me olha admirada.

— Tão diferente da menina que eu conheci, mas o rostinho continua o mesmo.

Effie me beija nas duas bochechas e eu a abraço rapidamente, para poder resgatar Haymitch do sufoco que está passando, retirando a caixa das mãos dele.

— Obrigado, lindinha!

— Ora! Você adivinhou que esse é um presente pra você? – Effie me pergunta.

— Não. Eu não fazia ideia.

— Venha aqui, Katniss. – ela me leva até o sofá e me indica o local para eu me sentar ao lado dela, fazendo um ar grave. — Este é um presente do Cinna. Está comigo desde pouco antes do Massacre Quaternário. Ele disse para entregá-lo a você depois de tudo. De alguma forma, Cinna sabia que você sobreviveria.

Ergo a tampa da caixa e a primeira coisa que vejo é um bilhete sobre o papel fino que embrulha uma roupa, que imagino ter sido feita por Cinna. Ao abrir o envelope, leio a seguinte mensagem:

Katniss,

Se está recebendo este presente, é porque eu estava certo em continuar apostando em você.

Eu quero que você seja feliz, mais do que eu desejei que você fosse a Garota em Chamas e o Tordo.

P.S. Se for feliz usando esse vestido, minha missão estará completa!

Com carinho, Cinna.”

Emocionada, retiro o embrulho que está dentro da caixa e encontro um dos mais lindos vestidos que já vi, exatamente por sua simplicidade.

— É um vestido de noiva! – Effie exclama admirada.

Sim, mas é muito diferente de todos aqueles em que fui fotografada logo depois da Turnê da Vitória. É o extremo oposto do vestido que usei na entrevista antes do Massacre Quaternário.

É um vestido branco, levemente rodado, que deve cobrir até pouco abaixo dos meus joelhos, com bordados delicados no corpete e uma fina faixa na cintura, enfeitada com ramos de folhas e flores feitas de tecido, que lembram o formato da planta que leva o meu nome.

Cinna, um artista e um conspirador, que fazia poesia e protesto através de seu ofício. Ele via além, muito além dos fatos que estavam diante de seus olhos. Se ele me imaginou nesse lindo vestido de noiva, é porque ele acreditava não só que eu seria capaz de sobreviver, mas também de me redimir comigo mesma.

Effie percebe que as palavras estão engasgadas em minha garganta.

— Não precisa dizer nada, Katniss – prossegue ela. — Eu realmente espero que você um dia encontre a vida de uma vitoriosa. Se eu tiver a chance de vê-la nesse vestido, vou saber que esse dia chegou.

— Por enquanto, sou apenas uma sobrevivente.

Effie me abraça, demonstrando um carinho genuíno por mim. Ficamos assim por uns instantes, até que Haymitch vem chamá-la para conhecer Greasy Sae. Eles me deixam um pouco sozinha, tempo que aproveito para admirar uma vez mais o vestido, para depois guardá-lo cuidadosamente.

Vou até eles com a caixa nos braços. Aceno para Greasy Sae, que está de saída. O televisor está ligado, porém não me interesso em ver o que está passando.

Depois do fim das transmissões a que éramos obrigados a assistir, não tenho o costume de acompanhar a programação da televisão. No entanto, Effie não vive sem notícias da Capital e do que está acontecendo com a Presidente. Não estou prestando atenção ao que o apresentador do programa está falando, mas ouço uma chamada que me deixa alerta:

Daqui a pouco, reportagem exclusiva sobre o mais novo casal de Panem. Para aumentar a curiosidade de vocês, eu adianto: é um casal de Vitoriosos. Não percam!”

— Quem serão esses? – Effie pergunta.

— Tenho um palpite! – Haymitch diz e aponta para mim. — O garoto deve ter sido cercado por repórteres no Distrito 4 e acabou contando sobre vocês dois.

— Ele não faria isso – discordo.

— Então, eu aposto em… Beetee e Enobaria!?! – Nem ele parece crer nessa possibilidade.

— Ora, não diga bobagens, Haymitch! – Effie exclama, apoiando as mãos nos ombros dele.

— Pense bem! Pelas minhas contas, se é mesmo um casal de Vitoriosos, eles só podem estar falando de Peeta e Katniss ou Beetee e Enobaria… A não ser que a reportagem esteja considerando você uma vitoriosa, Effie, e as notícias sejam sobre nós dois. – Ele a abraça pela cintura.

— Isso é bem possível. Vocês devem ter sido vistos juntos no Distrito 7 e descobriram que você viria pra cá, Effie – afirmo.

Toda essa conversa me deixa curiosa para assistir à reportagem. E me deixa também distraída. Não tenho tempo de raciocinar ou de imaginar ninguém além de Effie e Haymitch aparecendo na tela.

Por isso, não cogito e não me preparo minimamente para o que está diante dos meus olhos agora. Uma sucessão de imagens de Peeta e Annie juntos.

Peeta acariciando o rosto de Annie. Annie retribuindo o carinho. Peeta colocando um chapéu em Annie, olhando em seus olhos, enquanto ambos compartilham sorrisos lindos e… apaixonados?

É isso mesmo que estou vendo? Ou estou imaginando coisas? Não, não estou, pois há mais fotos.

Peeta ajoelhado diante de Annie, na posição em que os homens mais românticos fazem seus pedidos de namoro ou de casamento. Peeta carregando Annie no colo pela areia da praia, o cabelo ruivo e esvoaçante dela se emaranhando aos cachos dourados dele. Em outras fotos, os dois estão de costas, enquanto contemplam o mar.

A insinuação e as evidências de um romance entre Peeta e Annie me tiram o chão. E, como se não bastasse, há algo que me impressiona ainda mais. O rosto límpido dele, livre de qualquer apreensão. Não há um só resquício de preocupação, não há sombra do Peeta que foi telessequestrado e, por essa razão, age cautelosamente quando estou por perto.

Tudo isso me atinge como o peso do mundo desabando sobre minha cabeça. Perco as forças dos meus membros.

Não sou só eu que fico sem reação, pois o único som que escuto é o da caixa que estou segurando cair estrondosamente no chão. Por sorte, ela não se abre.

Imediatamente, começo a ladainha em minha cabeça:

Meu nome é Katniss Everdeen. Tenho dezoito anos. Meu lar é o Distrito 12. Peeta está no Distrito 4. Peeta está bem e feliz… Longe de mim.”

Não consigo formular pensamentos coerentes depois dessa frase. As mãos pesadas de Haymitch oprimem meus braços.

— Katniss, tenho certeza de que há uma explicação. – A voz dele me desperta do transe.

— Peeta pode mesmo ajudar você a entender o que aconteceu – acrescenta Effie de modo encorajador.

— As fotos são autoexplicativas – balbucio, enquanto as imagens se repetem em minha cabeça, com detalhes torturantes se avivando cada vez que fecho os olhos.

— Vá para sua casa, Katniss. Peeta deve estar desesperado, tentando falar com você! – Haymitch me orienta. — Cuidado com o que você vai dizer. Nós sabemos como você o afeta. Peeta está longe de casa e seria terrível para ele viver um daqueles episódios diante de Annie e de outras pessoas.

Estou chocada com sua urgência em me fazer acudir o Peeta e, mais ainda, com a falta de consideração com os meus sentimentos.

— Vou tentar ser cuidadosa. – Não estou muito certa do que falo, mas consigo ser irônica. — Sinto muito por deixá-los tão preocupados comigo.

— Espere um minuto! Você não acredita que isso seja verdade, não é mesmo? – Effie se espanta.

— Eu não sei em que acreditar. Afinal, é o Peeta quem aparece sorridente e satisfeito no Distrito 4… – Alcanço a caixa caída no chão, disfarçando meus olhos cheios de lágrimas.

— Katniss, quando se trata da mídia, você deve ter em mente o conselho que eu dei antes de entrar na segunda arena. Basta se lembrar de quem é o inimigo.

Eu não digo nada e saio segurando a caixa, tropeçando em degraus e pedras pelo caminho. Como Haymitch previu, meu telefone está tocando incessantemente. Recupero o fôlego para atender.

— Alô? – Minha voz sai embargada, contra a minha vontade.

Katniss, você viu…— Peeta diz suavemente e eu o corto, antes que ele me fragilize ainda mais.

— Eu vi a reportagem, se é esse o motivo do telefonema.

Então, já sabe sobre as falsidades que estão divulgando?

— Aquelas fotos são montagens, Peeta? – Uma cortina de esperança se abre pra mim ante essa possibilidade.

Não, as imagens não foram manipuladas – nega ele, num tom de voz baixo. — Eu entendo o seu lado ao ver aquelas fotos sem saber exatamente o que se passou. No seu lugar, eu também ficaria mortificado, mas apenas com o que a imprensa tentou transparecer, não com o que, de fato, aconteceu. Não ofendi a memória de Finnick. Não desrespeitei a Annie e, muito menos, você.

— E o que se passou, então? O que eu vi, a princípio, não precisa de muita explicação.

Você já formou uma ideia equivocada na sua cabeça. Assim fica difícil tornar as coisas claras.

— Difícil? Pra mim, difícil foi enfrentar a verdade. Mas esse momento chegou pra nós dois. Ia chegar, cedo ou tarde.

Achei mesmo que você ficaria chateada pela divulgação das fotos e pela fofoca que inventaram, mas, sinceramente, não imaginei que ficaria aborrecida comigo. Eu pensei que você confiasse em mim. Como você pode ter tantas dúvidas?

— Agora você quer fazer parecer que eu sou a vilã da história! – O rumo da conversa deixa meu estômago revirado.

Não é isso que estou dizendo! Todos somos vítimas desses boatos. Estou decepcionado por você não enxergar isso.

— Mas é claro! Você é o superior da relação, Peeta, não eu – falo duramente. — Isso foi bom, por um lado. Você abriu seus olhos e viu quem eu realmente sou, e não quem você gostaria que eu fosse. Eu também sou capaz de decepcioná-lo.

Katniss, eu telefonei pra tentar amenizar as coisas, acabar com qualquer mal entendido, e não pra piorar tudo – diz com voz firme. — Então, não vou continuar com isso. Por que você sempre busca um motivo para não acreditar que eu amo você?

— Eu queria que você também acreditasse, de verdade, e não apenas reproduzisse essa história bonitinha de que você me ama desde os cinco anos.

Não é só uma história bonitinha. Não é justo você chamar assim, logo agora que estamos longe um do outro, quando não posso olhar em seus olhos e afastar esse seu modo de pensar.

— E você acha justo que eu fique aqui no Distrito 12, tendo que conviver com todas essas pessoas que sabem que nós estivemos juntos até o dia da sua viagem…

Estivemos juntos? – Ele não me deixa terminar minha frase, exigindo implicitamente uma explicação para o meu desabafo repleto de mágoa.

— Sim, não estamos mais. Você está livre, Peeta.

Eu queria sentir alívio ao falar isso, mas o que me preenche é algo totalmente diverso. É uma angústia sufocante. Seu silêncio como resposta é pesado, denso, sentido. Essa mudez dele ao telefone dura um tempo e me deixa em pânico, pensando no que se passa com ele do outro lado da linha. Haymitch tem razão ao ficar preocupado com o que eu poderia dizer a Peeta.

Você confessou os seus sentimentos há poucos dias e…— Ele tenta argumentar, mas não é necessário. Não vou retirar o que disse, o amor que eu declarei pessoalmente e na carta que escrevi.

— Os meus sentimentos ainda estão aqui, Peeta. Infelizmente. – Um nó aperta a minha garganta, porém continuo. — É uma pena que tudo isso tenha acontecido logo depois que eu finalmente reconheci que amo você… E eu o amo tanto que não posso permitir que você insista em ficar aqui comigo. Eu o deixo livre, porque não quero que seja para sempre refém do seu telessequestro, por mais que eu queira ter você por perto.

Katniss, não quero ter de novo essa conversa. Não por causa de uma reportagem maldosa e inverídica.

— Eu sei que existe esse lado negativo da mídia, mas não é isso o que mais dói em mim, Peeta.

O que pode ser mais doloroso que essa mentira?

— Algo que a imprensa não poderia simplesmente inventar. Você parece estar tão bem nas fotos. Despreocupado, descontraído, feliz – admito. — Foi apenas vendo como você se comporta longe de mim que eu percebi como que, ao meu lado, você fica tenso e angustiado, sempre se esforçando pra se controlar, sempre pensando em não me machucar.

Como você pode enxergar tudo isso em algumas fotos?

— Não sei como, mas eu notei. Você não pode me desmentir.

Eu preciso ter certos cuidados quando estou perto de você, mas…

— Certos cuidados? Você está se policiando sempre, ou se ferindo, já que a dor costuma ajudá-lo a retomar o foco. Estou convencida de que, quanto menos tempo eu passar com você, mais você pode se aproximar da sua cura.

Katniss, não vamos voltar a esse ponto em que você se afasta de mim, porque acha que estou melhor sem você. Isso não é verdade, isso nunca vai ser verdade.

— No entanto, eu voltei a enxergar as coisas desta maneira.

Sabe? É desgastante esse ciclo em nossa relação. Dar alguns passos e retroceder. Avançar um pouco e voltar à estaca zero. E por algo que não foi culpa minha.

— Não foi culpa sua? Era você naquelas fotos!

Eu me certifiquei de que não havia ninguém na praia nos observando.

— E você tinha algo a esconder?

Não. Não tinha e não tenho nada a esconder de você. Eu faria tudo o que fiz, mesmo na sua presença. Não houve nada de mais… Estava somente atendendo a um pedido da Annie para levá-la até o mar. Porém, se eu tivesse sido mais prudente, evitaria essas invenções dos repórteres.

Ao ouvi-lo dizer isso, logo penso que, se Peeta tivesse sido mais prudente, não teria agido como ele mesmo, como o Peeta que eu amo.

— Eu acredito em você – declaro por fim a minha descrença quanto à veracidade da notícia, porém esse não é o ponto que mais me aflige. — Mas ainda há muitos acontecimentos pela frente. Antes de definirmos qualquer coisa, precisamos conversar… pessoalmente.

Nós resistimos a tantas provações. Espero que possamos continuar assim. Eu só sei que… Não quero ser livre, se isso significa ficar sem você.

Peeta tenta me acalmar, mas eu o sinto escapando, de qualquer modo. Ele está no Distrito 4 há apenas dois dias e eu já tenho essa sensação de perda, de distanciamento, que eu tanto temia.

Katniss?

— Até algum dia, Peeta. – Eu me despeço e desligo o telefone.

Olho para a caixa que ainda está em meus braços, cada vez menos confiante na possibilidade de um dia usar o vestido que está dentro dela.

Subo até o meu quarto e empurro a caixa para o lugar mais escondido do meu armário. Olho para a minha cama e já me desespero só de imaginar a carga de horrores que vou enfrentar nas próximas noites, quando eu for tentar dormir. Apenas tentar, eu sei.

Desço as escadas e saio pela porta dos fundos. Não consigo – e não quero –, encarar ninguém. Sigo desnorteada, sem pensar para onde minhas pernas estão me levando.

Quando me dou conta, estou diante das ruínas da minha antiga casa na Costura. Como fui tola ao pensar que algum dia alguém pudesse reproduzir comigo a vida em família que meu pai proporcionou à minha mãe. Compartilhar comigo aquela felicidade que não precisa de muito, apenas de duas pessoas que se amam.

Não culpo ninguém. Só a mim mesma. Eu mesma afastei essa possibilidade, quando afrontei Snow a ponto de ele enxergar em Peeta uma arma contra mim.

Além disso, eu também neguei uma família a Peeta. Ele tem o direito de buscá-la com uma mulher corajosa como Annie, que engravidou no momento em que o futuro era o mais incerto possível. Annie é forte. Eu sou um arremedo de coragem.

Não posso evitar sentir ciúme. Eu me sinto ferida toda vez que imagino os dois juntos. Peeta abraçado a ela como esteve comigo. Beijando-a, como um dia me beijou.

Eu não o mereço mesmo. Ela sim. Annie é uma ótima pessoa. Ao contrário de mim, ela tem tudo a ver com Peeta. Os dois são gentis com todos. E são doces. E belos.

Com esses pensamentos martelando em minha cabeça, continuo caminhando até alcançar a antiga cerca eletrificada. Adentro a floresta e logo algo me chama a atenção. Alguém mais está aqui. Alguém que conhece este lugar tão bem quanto eu e que conhece a mim também. Gale. 

Na abertura da cerca por onde costumo passar, avisto três galhos de árvore caídos no chão, apontando na direção do nosso antigo ponto de encontro.

Como da primeira vez em que Greasy Sae mencionou o nome dele depois que voltei para casa, busco dentro de mim algum sentimento como raiva e ódio, mas encontro apenas alívio e, devo reconhecer, expectativa pela possibilidade de revê-lo. Até eu me lembrar de que ele pode estar aqui justamente por saber o que foi divulgado mais cedo sobre Peeta e Annie. No entanto, não quero acreditar que ele tenha vindo até a floresta do Distrito 12 para jogar na minha cara o alto preço que estou pagando pela escolha que fiz.

Sigo em frente e, na rocha onde Cressida nos filmou, de fato, encontro a única pessoa com quem, antes dos Jogos, eu costumava ser eu mesma. Posso sentir os músculos do meu rosto relaxando, enquanto subo a colina para o nosso lugar especial, uma plataforma de pedra com vista para o vale.

A visão dele me esperando lá não me trouxe lágrimas ou tremores de fúria. Ao contrário, como costumava acontecer, a sua presença me trouxe um pequeno sorriso, logo para ele, que dizia que eu nunca sorria, exceto na floresta.

— Hey, Catnip! – Gale pronuncia o nome que se tornou o apelido oficial dele para mim. — Não sei se tenho o direito de lhe chamar assim ainda. Ao menos pra mim, é uma forma de manter vivas as boas recordações.

Não respondo à sua pergunta de imediato, apenas me aproximo, olhando a paisagem diante de nós.

— Aquela Catnip não existe mais. Mas as memórias permaneceram… Infelizmente, não só as boas.

— Eu esperava que fosse mesmo assim. Mas posso continuar usando seu apelido preferido? – pergunta ele e eu sinto seus olhos em mim, ainda sem olhar diretamente em sua direção, enquanto concordo com a cabeça. — Nada de Tordo ou Garota em Chamas?

Torço o nariz ante a sugestão e ele ri, estendendo a mão para eu subir na rocha.

— Apesar de esse ser o nosso ponto de encontro, não imaginava vê-lo aqui tão cedo. – Sento-me a seu lado. — Eu costumo ficar aqui, mas acho o espaço muito amplo sem você por perto. Por várias vezes, já fechei meus olhos e contei até dez, pensando que, quando eu os abrisse, você se materializaria silenciosamente, como tantas vezes fez. Aí eu me lembro de que você está no Distrito 2, com um trabalho legal…

— Hoje eu expandi um pouco a minha ronda, pois pressenti que havia uma pessoa em perigo, precisando de um ombro amigo.

— Pressentiu?

— Ok. Cressida ficou sabendo da divulgação daquelas fotos na noite passada. Ela tentou interferir, falando com Plutarch, mas as imagens do Peeta e da Annie são a mina de ouro do momento – diz ele, examinando meu rosto com atenção. — Não se preocupe. Não vim aqui colocar o dedo na ferida…

— Então, veio fazer o quê?

— Devolver um favor.

— Você pode ser mais claro?

— Tudo bem… Quando Peeta estava hospitalizado, eu pedi que me fizesse um favor. Ele me atendeu e veio cuidar de você. Acho que ele viria de qualquer jeito, mas me sinto em dívida com ele mesmo assim.

— Você não nega suas origens. Nós da Costura não conseguimos ficar devendo nada a ninguém.

— Não mesmo. Na época em que vocês mal estavam se falando, foi a vez de Peeta me pedir que viesse vê-la. – Gale busca em meus olhos alguma emoção diferente, mas tento permanecer impassível. — Eu queria ter vindo antes, mas não sabia se você gostaria de me ver. No entanto, quando soube da reportagem sobre Peeta e Annie no Distrito 4, resolvi que a hora havia chegado.

— Então, você sabe sobre mim e Peeta?

— Sei e, sinceramente, ficaria feliz se vocês estivessem bem.

— Gale, você pode até rir de mim, mas, antes de Peeta viajar, eu ficava perturbada só de imaginar algo como as imagens que foram divulgadas. Então, ver aquelas fotos foi… Eu não sei nem nomear o que senti quando a reportagem passou na televisão!

— Você acabou de me lembrar que vim aqui também para refrescar sua memória quanto ao fato de que algumas produções da televisão não têm compromisso com a verdade, apenas com o que lhes convém.

— Quem controla esses meios de comunicação sabe que as pessoas acompanham esse tipo de notícias, mesmo sendo falsas. Eu sei.

— Você mesma já foi objeto da manipulação da mídia. Num primeiro momento, foi exaltada como a queridinha da Capital e, poucos meses depois, sua fama passou a ser a de inimiga número um.

— Você está muito crítico, Gale. Nem parece que vive participando da programação da TV agora. Mas, é claro… A culpa é sua, por ficar tão bem diante das câmeras. – Lembro-me da frase que disse a ele durante a rebelião.

— Eu faço um serviço de utilidade pública. A fama de galã é mera consequência. Mas tenho que reconhecer que Cressida se esforça pra pegar meus melhores ângulos. – Ele movimenta a face até parar para me olhar de lado, sorrindo.

— Já é a segunda vez que você menciona a Cressida. Isso significa alguma coisa?

— Peeta não contou? – Gale pergunta e eu nego com a cabeça. — Ele deve ter achado melhor que eu mesmo lhe dissesse que eu e Cressida estamos juntos.

Embora eu já esperasse essa resposta, não consigo esconder meu espanto com a confirmação dada por ele.

— Isso explica o tanto de vezes que você aparece na TV – digo, quando finalmente minha surpresa inicial é substituída por um grande alívio.

— Eu ainda amo você, por tudo o que vivemos, por tudo o que você sempre foi pra mim, mas encontrei nela a minha outra metade, alguém que compartilha comigo alguns dos meus sonhos. – A sempre presente dureza de seus olhos cinzentos dá lugar a um brilho diferente.

— Eu sempre a admirei, por ter abandonado a vida estável que tinha na Capital para lutar com os rebeldes – reconheço.

— Isso é verdade. Cressida renunciou a muito mais do que qualquer um de nós do Distrito 12… O que eu tinha a perder? Apenas a vida miserável de um mineiro, a vida que eu odiava com todas as minhas forças. – Gale ergue os ombros. — Ela abriu mão de muito mais para lutar pelos mesmos ideais que eu tenho.

— E onde ela está? Por que não veio com você?

— Digamos que, se ela viesse participar desse reencontro, estaria aqui com Pollux a tiracolo, filmando e dirigindo nossos passos, registrando a reaproximação de Katniss e Gale. – Ele gesticula como se estivesse sublinhando no ar o título de uma manchete de jornal.

— A imprensa sempre sendo a imprensa, mesmo em se tratando da imprensa do bem. – Apoio minha mão sobre seu ombro. — Fico feliz por ter seguido em frente, ainda mais por ser com uma pessoa que parece realmente completar você.

Gale põe sua mão sobre a minha e dá um leve aperto. Eu desço o meu braço e entrelaço meus dedos para abraçar meus joelhos.

— E você e o Peeta? Como estão? Vocês se falaram depois da reportagem? – pergunta ele interessado.

— Eu disse a Peeta que ele estava livre. Só assim pra eu conseguir sobreviver a essa história. – Fecho os olhos e sacudo a cabeça.

— Você e suas táticas de sobrevivência suicidas. Nada mais complicado.

— Quando alguma coisa foi simples pra mim? – pergunto, a princípio, séria, mas ao vê-lo segurando uma risada, sorrio também.

O papo flui levemente, porém nós dois sabemos que falta um assunto a ser abordado. Nossos sorrisos vão sumindo aos poucos.

— Eu sinto a falta de Prim, Gale. Sinto tanto, mas não posso trazê-la de volta. Não posso fazer mais nada – digo e ele olha para o chão, sem dúvida lembrando-se da sua participação na morte dela. — Eu sinto sua falta também, mas a diferença é que nossa amizade pode ser reparada. Eu gostaria de tentar.

Ele não diz nada, apenas desce da rocha e rapidamente arranca algumas amoras silvestres dos arbustos que nos rodeiam.

— Só me resta desejar que a sorte… – Como nos velhos tempos, Gale lança uma amora em um alto arco em minha direção e eu a capturo com a minha boca. –, esteja sempre a nosso favor!

Ando até onde ele foi. Agora que sua figura alta e imponente está de pé à minha frente, posso ver que veste um uniforme idêntico ao que usávamos durante a rebelião. As únicas diferenças são o distintivo com o símbolo da Nova Panem e os broches que indicam as condecorações que Gale recebeu.

— E como está o trabalho como um dos chefes da Guarda Nacional? – indago, enquanto descemos a colina, retornando ao distrito.

— Por incrível que pareça, é preciso lutar ainda mais para manter o atual regime. Exige o treinamento de muitas equipes e, principalmente, um trabalho árduo de mudança de mentalidade da população. Talvez você pudesse nos ajudar nisso.

— Gale, eu gostaria muito de ajudar, mas não quero voltar a fazer pontoprops com Plutarch. Muito menos pegar em armas.

— Você não teria que fazer isso. A demonstração do seu apoio publicamente ou a sua presença em alguns eventos já fariam uma grande diferença. – Ele segura o arame da cerca para que eu passe com mais facilidade. — Mas isso é assunto para uma próxima visita. Voltarei em breve para uma caçada em dupla. Que tal?

— Não é a mesma coisa caçar sem você por perto. – Eu me animo.

— Enquanto isso, você estuda a minha proposta – diz antes de me dar um abraço e se dirigir ao aerodeslizador que o espera.

— Vou pensar a respeito! – grito por sobre o som das turbinas que acabam de ser acionadas.

Volto pra casa, pensando nesse dia atípico. Ao abrir a porta, o som do telefone interrompe meus pensamentos. Decido deixá-lo tocar até a pessoa desistir e entro na sala vagarosamente.

No entanto, a insistência do toque faz com que eu atenda.

— Alô?

Katniss, aqui é a Annie.

— A-Annie, e-eu… – gaguejo sem saber o que dizer exatamente.

Talvez eu seja a última pessoa com quem você queira falar hoje. Mas eu precisava fazer isso por você e pelo Peeta também.

— Falar com Peeta hoje não foi uma boa ideia. Como ele está?

Arrasado. A Johanna acabou de arrastá-lo até a casa dela para que eles possam conversar. – Annie suspira. — Eles pensam que estão escondendo as notícias de mim, para me preservar, mas eu sabia que havia algo de errado no momento em que vi o Peeta pela manhã. Não sosseguei até descobrir tudo.

— Então, você soube do que foi divulgado e deve ter visto as fotos.

Eu vi as fotos… Vi um amigo bondoso me ajudar a ir até o mar, algo que eu queria muito. Vi um amigo atencioso limpar o excesso de filtro solar do meu rosto, pois estava tão ansiosa pra ir à praia que não espalhei o creme direito. Vi um amigo cuidadoso descalçar os meus pés e me carregar até a beira da água, já que minha barriga enorme dificulta um pouco essas atividades. – Annie respira profundamente. — Por isso, não se espante, Katniss, mas… Eu gostei muito das fotos, pois retratam alguns dos momentos mais felizes da minha gestação, que eu vivi graças à gentileza de um bom amigo como o Peeta.

— Um bom amigo… Annie, eu me sinto tão envergonhada. Eu já reconheci até mesmo para o Peeta que eu não deveria precisar de nenhuma explicação.

É isso que eu queria que você enxergasse, que o Peeta daquelas fotos é o mesmo que você conhece tão bem e que é completamente apaixonado por você.

— Eu tirei conclusões precipitadas, enquanto deveria ser a última pessoa a fazer isso. Peeta tem toda a razão em ficar chateado comigo. Como ele disse, não há culpados, todos nós somos vítimas.

Entendo o que você sentiu ao ouvir aquele boato, pois sei bem o que é perder a pessoa que a gente ama.

— Sinto muito, Annie. É que eu estava… quer dizer, estou ainda muito insegura. Peeta está tão feliz nas fotos. Ele parece ficar melhor quando está longe de mim.

E por que você acha que ele está tão confiante e feliz? Tenho certeza de que o Peeta que você viu nas fotos já estava assim desde antes de sair do Distrito 12. Ele está mesmo muito diferente de quando eu o vi pela última vez – confirma Annie. — Essa confiança e felicidade foram construídas por ele, mas também por você. Por vocês dois juntos.

— E, pra variar, eu estraguei tudo quando falei com ele mais cedo.

Katniss, só me responde uma coisa. Peeta me falou brevemente sobre os textos que vocês escreveram um para o outro. Eu queria saber se você escreveria a carta novamente, se fosse agora?

— Eu repetiria cada palavra.

Peeta vai gostar de saber disso. Não tenho dúvidas de que ele não retiraria nada do que escreveu também.

— Obrigada, Annie, e cuida do seu bom amigo por mim, por favor.

Claro que sim.

— E desejo uma boa hora pra você… Que dê tudo certo no nascimento do seu bebê.

Prometo não segurar o Peeta aqui muito depois que o Finnick nascer… E, quando ele voltar pra casa, por favor, façam as pazes e peça o Peeta em casamento, se ele mesmo não fizer isso antes.

Sorrio ante a sugestão pouco comum dela e nós nos despedimos depois de mais algumas palavras carinhosas de Annie.

O meu primeiro impulso após desligar o telefone é voltar ao meu quarto e correr até o armário. Pego a caixa que eu havia entocado num lugar longe da minha visão. Retiro o vestido de dentro dela e procuro um cabide vazio para pendurá-lo num espaço destacado do guarda-roupa.

Esse vestido representa algo que eu nunca imaginei desejar. Um sonho recente, é verdade, que passou a fazer parte de mim desde quando admiti para mim mesma que sou capaz de amar.

Durante o dia de hoje, minhas dúvidas e inseguranças quase se sobrepuseram à vontade de que esse sonho se realizasse, mas agora o que toma conta do meu coração é a certeza de que quero e posso um dia usar o vestido branco, lindamente confeccionado por Cinna. Meu vestido de noiva.

 


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Notas finais do capítulo

Olá, pessoal!
Acho que todo mundo adivinhou qual seria a treta! Aí está ela!
Já, já se resolve...
Beijos!
Isabela