A Redenção do Tordo escrita por IsabelaThorntonDarcyMellark


Capítulo 20
20. Tudo o que me importa


Notas iniciais do capítulo

Olá, pessoal!

Só um alerta antes de lerem: eu terminei de escrever com o coração despedaçado. Então, há risco de lágrimas... :''(



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/696420/chapter/20

 

Por Peeta

No percurso de volta pra casa, depois de deixarmos a floresta, encontramos Haymitch.

— Pela cara de vocês, o dia de caça não foi proveitoso.

— Não mesmo. Só conseguimos um coelho para o almoço de amanhã — reclama Katniss. — Peeta espantou todos os animais com o barulho que faz quando caminha...

— Mas nem fiquei com você o tempo todo! — Eu a corto e ela nem se dá ao trabalho de rebater.

Katniss aperta o passo em direção à sua casa e sigo em seu encalço. Nem me despeço de Haymitch e só escuto sua última frase quando já estou a uma boa distância:

— Que a sorte esteja a seu favor, garoto!

Ela entra rapidamente em casa, mas eu a alcanço antes que feche a porta.

— Simplesmente não consigo andar de modo silencioso. Não sou o Gale — afirmo de modo impaciente.

Katniss vira-se imediatamente ao ouvir o que eu disse.

— Você toca no nome dele como se fosse a coisa mais natural do mundo.

— Porque é assim que deve ser. Natural. Gale é seu amigo.

— Já que faz tanta questão de se lembrar dele, ponha-se no meu lugar e imagine como se sentiria se eu convidasse o Gale para morar comigo.

— É difícil imaginar algo assim, pois você não quer nem mesmo ouvir falar dele. Acho que a própria Prim não gostaria de saber que você ainda o culpa pela morte dela.

— Não ouse falar de Primrose como se a conhecesse melhor do que eu. — Sua ira transborda através de sua voz.

— Apenas penso que essa seria a opinião dela — digo pausadamente, o que parece enfurecê-la ainda mais.

— Já disse tudo o que pensa? Agora faça o favor de me deixar em paz.

Katniss corre até o banheiro e tranca-se lá dentro. Consigo escutá-la soluçando e bato na porta suavemente.

— Quero ficar sozinha — implora ela.

— Não vou embora antes de se acalmar — aviso. — Mesmo que isso signifique ficar aqui fora até amanhã.

— Não vou sair enquanto você estiver aí. — Ouço seu murmúrio.

— Se a minha intenção ao falar de Prim fosse ofender você, atenderia seu pedido e deixaria a sua casa sem que precisasse mandar. No entanto, não foi o caso. Então, não vou largá-la sozinha com seus pesadelos.

— Você é teimoso demais.

— Estou aprendendo com você, que é a teimosia em pessoa. — Tenho a impressão de que ela ri por uma fração de segundos.

Após uns instantes de silêncio, dou mais algumas batidas na porta e digo:

— Não quero que fique trancada no banheiro por minha causa. Você deve estar com fome, pois não comeu nada desde cedo. Vou sair daqui, mas não pra ir embora. Estarei no quarto de hóspedes, se precisar de algo.

Não obtenho resposta. Subo as escadas e caminho até o último cômodo do corredor, do lado oposto ao quarto dela. Apesar de nunca haver dormido neste quarto, é aqui que guardo alguns objetos pessoais, já que é na casa dela que tenho passado as noites.

Não demora muito, começo a distinguir sons de portas abrindo e fechando, de talheres e, finalmente, de passos subindo as escadas.

Recolho o que preciso e desço para usar o banheiro social. Na cozinha, vejo que ela deixou alguma louça no escorredor de pratos, sinal de que se alimentou. Sirvo-me de um pouco de leite, lavo os objetos que utilizei e vou até o banheiro para me preparar para dormir, com um bom banho.

Volto ao quarto de hóspedes, abro as janelas e sento-me à beira da cama. Com os cotovelos apoiados em minhas pernas, afundo o rosto em minhas mãos, preocupado.

Se Katniss reagiu mal desse jeito pelo simples fato de saber que Delly e Blaine ficarão em minha casa por um tempo, como ela receberá as outras péssimas notícias que tenho pra dar e não tive coragem de contar na floresta?

Apago as luzes e, na penumbra, oscilo entre alguns breves cochilos e momentos de vigília, em que fico pensando em como vou dizer tudo a ela. Num desses instantes em que estou acordado, alguém entra no quarto com passos cautelosos e fecha as janelas, tentando não fazer barulho.

Deitado de costas, com o antebraço apoiado sobre meus olhos, sinto um ligeiro movimento à minha direita. Katniss se aproxima, levantando o cobertor com cautela, e se aconchega ao meu lado.

Seus cabelos sedosos deslizam pelo meu ombro. Quando uma de suas mãos repousa sobre o meu peito, seguro seus dedos com minha mão livre e ela suspira discretamente.

Passo o braço que cobria meu rosto por seus ombros e dou um beijo carinhoso em sua testa. Katniss respira aliviada e pressiona seus lábios macios na mão que está junto da sua.

— Tentei ficar distante... — diz ela timidamente. — Mas não funcionou.

— E tentei de todas as maneiras não magoar você. Mas não funcionou. — Deixo transparecer certa insegurança por trás do meu tom tranquilo.

— Minha reação foi exagerada. Afinal, você está apenas sendo gentil e atencioso com a Delly, como sempre é com todos, não só com ela.

— Não precisa ter ciúme da Delly — asseguro–lhe. — E de mais ninguém

Katniss assente, porém logo questiona:

— Você acha a Delly bonita?

— Sinceramente? Acho sim — respondo sem hesitar.

— Ela é também muito sorridente e comunicativa. — Katniss faz uma afirmação, mas seu jeito de falar indica que ela quer minha opinião a respeito.

— Não há quem supere a Delly nesses quesitos. Lembra-se daqueles concursos de Miss Simpatia que aconteciam na escola? Você perderia para ela com muitos pontos de diferença — enfatizo, rindo por dentro. — E, antes que pergunte, Delly tem um senso de humor que aprecio muito, ela sempre me faz rir e ver o lado bom das coisas e, o que é mais importante, ela me conhece como ninguém.

— E qual é o motivo mesmo para não ter ciúme dela? — Katniss pergunta.

— A razão é simples, Srta. Everdeen. Delly não é você. — Afago seus cabelos e aspiro profundamente o aroma deles. — Já lhe falei sobre o efeito que você causa, especialmente sobre mim, desde quando eu só poderia compará-la com as meninas daqui do Distrito 12. Porém, mesmo depois de conhecer garotas de todos os Distritos e da Capital, uma coisa é certa: você não tem concorrência em lugar nenhum.

Quando sinto o coração dela acelerar, pergunto em seu ouvido:

— Por que você sempre fecha as janelas?

— Pra deixar meus fantasmas do lado de fora e me sentir um pouco mais segura.

— Você é a pessoa com quem mais me importo nesse mundo. Gostaria que se sentisse em segurança comigo e com as decisões que precisei tomar.

— Você fez a coisa certa, Peeta.

Quero congelar esse momento em que, após um breve desentendimento, ambos cedemos e reencontramos nosso ponto de equilíbrio. No entanto, não estaria sendo honesto com ela, se passasse a fingir que nada mais me aflige.

— Katniss, não lhe contei sobre tudo o que está me preocupando. Não sei nem como começar. A parte mais difícil para nós dois ainda não lhe falei... Sei que já é tarde da noite, mas poderíamos conversar um pouco?

Seu coração bate ainda mais apressado. Ela ergue metade do corpo para olhar pra mim, até que concorda.

— Sim, podemos. Não conseguiria mesmo dormir depois de você me dizer isso.

— Sinto muito. — Balanço a cabeça.

Nós nos sentamos de frente um para o outro. Como se lesse meus pensamentos, Katniss indaga:

— Isso tem a ver com uma conversa que você teve há alguns dias com o Dr. Aurelius sobre a minha ordem de restrição? Eu ouvi sem querer.

— Exatamente — começo a explicar o motivo da pergunta que fiz ao nosso médico. — Prometi à Annie que estarei com ela no Distrito 4, quando o bebê nascer. Então, consultei o Dr. Aurelius sobre como liberar sua saída daqui do nosso distrito, caso você quisesse me acompanhar.

— Pela decepção em seu rosto, não deve ser algo fácil.

— O Dr. Aurelius não soube me explicar os trâmites, mas me garantiu que dará um parecer médico favorável, se solicitarem a ele. Quem me orientou sobre o que fazer foi o Artorius, um dos rapazes da Capital que estava naquela reunião sobre a reconstrução do Distrito 12.

— Então, será que consigo essa autorização a tempo de ir com você? — pergunta ela, esperançosa.

— Ao que tudo indica... Não. — Meu semblante desmorona de tristeza, porém não mais que os olhos de Katniss.

Ela fica de pé, recua um passo e me observa por alguns instantes. Seus lábios tremem. Consigo sentir o desespero que vem de dentro dela como uma tempestade, enquanto tento inutilmente encontrar um jeito de tranquilizá-la.

— Estou revivendo alguns dos meus piores pesadelos... Meu amigo Finnick dando sua vida por mim diante dos meus olhos, numa morte horrenda. A família dele desfeita precocemente por culpa minha. Um bebê inocente nascendo sem pai. Você longe de mim. Eu perdendo você mais uma vez. — Ela mal contém as lágrimas. — Só que não são pesadelos. São a realidade.

— Você não vai me perder!

Posso ver uma onda de dor se alastrar em seu peito ofegante. Meu coração também dói. Eu me aproximo dela e pouso as mãos em sua cintura. Para meu alívio, Katniss não se afasta.

Ela assente, em silêncio. No entanto, logo depois, sacode a cabeça em negativa, limpando as lágrimas que agora descem por sua face. Envolvo seu rosto com minhas mãos.

— Não existe a menor chance de você me perder.

— Peeta, estou com o mesmo mau pressentimento que tive quando me separei de você na arena-relógio — confessa ela.

Mergulhando num estranho torpor, com o olhar perdido, Katniss repete as últimas frases que me disse antes da minha captura pela Capital:

— Não se preocupe. A gente se vê à meia-noite. — Ela encolhe os braços à frente de seu corpo. — Foi o que falei pra você, mas nada disso aconteceu.

Finalmente, para minha absoluta desolação, Katniss sai pelo corredor e tranca-se em seu quarto, antes que eu ache as palavras certas para impedir que ela novamente se afaste de mim.

Não consigo dormir. A preocupação e os gritos de Katniss com seus sonhos ruins me mantêm acordado.

¸.•*'¨'*•.¸¸.•*'¨'*•.¸¸.•*'¨'*•.¸

Nos dias que se seguem ao nosso triste diálogo, Katniss mais uma vez se distancia, ao menos de mim.

Ela tem ido visitar Haymitch e recebe Greasy Sae em sua casa normalmente. Katniss sai bem cedo para a floresta e retorna depois de anoitecer.

Todas as manhãs desde então, deixo alguns pães com Greasy Sae para que leve para Katniss e esta, por sua vez, entrega algumas de suas presas para Haymitch trazer pra mim.

— Que evolução, hein? Vocês passaram de namorados a fornecedores de alimentos um para o outro — comenta Haymitch de modo sarcástico, ao deixar um esquilo abatido por Katniss sobre a pia.

— Não zombe, Haymitch. É o mínimo que posso fazer por ela.

— Vocês têm se falado?

— Por duas vezes, encontrei a porta dela aberta depois que ela voltou da floresta, mas Katniss se apressou em se trancar no quarto. Então, foi mais um monólogo da minha parte do que uma conversa propriamente dita. Passei essas duas noites no quarto de hóspedes. Avisei a ela. Estes foram os únicos dias em que ela não desceu para tomar café da manhã. Katniss não saiu do quarto, enquanto não deixei a casa dela. Acho que entendi o recado.

— E, por isso, você não voltou mais lá — conclui ele. — Vou interceptar nossa queridinha um dia desses e trazê-la aqui, mesmo contra a vontade dela.

— Não faça isso, Haymitch. Tudo o que não preciso é enfrentar a fúria de Katniss.

— Vocês não me convidaram para ajudar com o livro? — Ele bate no balcão da cozinha com firmeza. — Pois chegou a hora da minha colaboração.

— Boa sorte, então. Tenha cuidado, pois Katniss tem andado por aí munida de arco e flecha — alerto, enquanto observo-o sair, balançando a mão no ar, como se dispensasse meu comentário.

Não satisfeito com a proposta de Haymitch, resolvo pedir ajuda a quem um dia também me procurou para isso. Gale.

Sou franco com ele sobre tudo o que houve entre nós e o que está acontecendo agora.

— Gale, ela está se isolando novamente e se refugia na floresta. Lá é o seu território. Seu e dela. — Limpo a garganta. — Acho que é a oportunidade de sabermos se o coração dela é seu território também.

— Peeta, agradeço a honestidade, mas já segui em frente. Com alguém que você conhece, a Cressida.

— Fico feliz por vocês. — Não consigo esconder a surpresa em minha voz.

— Obrigado. Quanto à Katniss, acho pouco provável que esse afastamento de vocês seja por minha causa. Na minha opinião, ela está com ciúme.

— Mas já conversamos sobre a Delly e ficamos bem.

— Não é da Delly que estou falando. É da Annie.

— Da Annie? Nunca dei motivos pra isso!

— Você pode não se lembrar, mas já deu motivos. Na primeira vez em que foi fazer uma refeição conosco no Distrito 13, você ameaçou roubar a Annie do Finnick.

Caio sentado na cadeira com a lembrança do meu comportamento altamente reprovável naquele dia.

— Não é possível! Ela deve saber que só queria provocá-la naquele meu estado perturbado! — exclamo.

— É possível, sim. Katniss ficou transtornada na época e deve imaginar que havia um fundo de verdade na sua provocação — supõe Gale. — Mas fique tranquilo. Vou dar um jeito de encontrá-la na floresta um dia desses. Resta saber se ela vai querer falar comigo.

— Obrigado por me ouvir e por fazer isso por ela, Gale. Ah! Mande um abraço para a Cressida.

— Farei isso.

Fico tentando encaixar as peças desse quebra-cabeças e o que Gale explicou parece fazer sentido.

A reação de Katniss à minha ida ao Distrito 4 estava me parecendo desproporcionada, mas é resultado, na verdade, de algumas marcas que ficaram daquele período obscuro de nossas vidas.

No dia seguinte, logo cedo, sou surpreendido com Haymitch e Katniss caminhando juntos pela rua, no sentido oposto ao da floresta.

Ela está visivelmente contrariada, enquanto ele a conduz, segurando seu cotovelo. Os dois param em frente à minha porta e Haymitch me convida:

— Venha conosco. Está na hora de voltar a escrever o livro de memórias.

— Vocês tem certeza de que querem fazer isso? — pergunto, antes de ir buscar o material de pintura, vendo a expressão fechada de Katniss, que mal olha pra mim.

— Sim, nossa caçadora predileta concordou em ir à floresta mais tarde.

Vamos os três para a casa dela, onde preparo a mesa para começarmos a trabalhar juntos.

— Sua animação com a nossa companhia é contagiante, docinho.

— E sua capacidade de falar asneiras é irritante — retruca ela, que continua arredia por um bom tempo.

No entanto, sua irritação vai se abrandando, até estarmos todos entretidos e emocionados com as histórias de Haymitch como tributo e mentor.

Finalmente, então, damos início a mais um capítulo do livro, que trata da 74ª edição dos Jogos Vorazes. Haymitch nos ajuda até certo ponto, quando decide voltar pra sua casa. No entanto, a intervenção dele foi valiosa para que Katniss novamente permitisse que eu entrasse em sua casa depois de tanto tempo sem sequer nos vermos.

Como bom mentor que é — e nunca deixará de ser —, ele conduziu muito bem o seu trabalho. Nesse capítulo especialmente, sua participação foi fundamental para nos dar a ideia de como era atuar como um instrutor nos Jogos Vorazes. Passamos a conhecer também algumas coisas com as quais ele tinha que lidar.

Para ter sucesso, ele deveria ser hábil em reconhecer os pontos fortes dos seus tributos e os pontos fracos dos adversários e explorá-los para conquistar patrocinadores. Tinha que aguentar gente vaidosa e gananciosa. Fazer promessas e politicagem para que nenhum patrocinador se sentisse desprestigiado.

Haymitch contava com que seus tributos fossem bem-sucedidos para não sofrer cobranças e retaliações em caso de fracasso. A partir daí, conseguimos entender melhor sua abordagem inicial em relação a nós, de indiferença e irresponsabilidade.

Afinal, sobreviver ao Segundo Massacre Quaternário e vivenciar essa tortura psicológica por mais de vinte anos, somada à morte de todos os tributos sob a sua guarda, exceto por mim e por Katniss, é algo avassalador.

Eu e Katniss estamos exauridos pelo peso das lembranças que esse capítulo nos trouxe. Preparo um chá para nós dois.

Quanto volto, Katniss está debruçada sobre o livro, escrevendo mais algumas linhas.

— Faltou algum detalhe? — pergunto.

— Só queria registrar que, quando acabaram os primeiros Jogos, a Capital eliminou todas as nossas cicatrizes, inclusive as que já tínhamos há anos, apagando uma parte da nossa história também.

— É verdade. Não só as cicatrizes da arena, como também aquelas que foram acumuladas ao longo da nossa infância e adolescência sumiram sem deixar rastro.

— Estou listando as marcas que tinha e das quais não gostaria de me esquecer.

— Quais?

— As que adquiri nas minhas incursões pela floresta com meu pai e... — Ela faz uma pausa.

— E Gale — completo a frase.

— Sim, com Gale também. — Ela vira o rosto para o outro lado. — E nas vezes em que me machuquei para proteger Prim. Você tem alguma em mente para anotar também?

— Talvez as queimaduras nas mãos e braços da época em que trabalhava na padaria com minha família... As outras prefiro esquecer. Minha mãe às vezes exagerava nas suas punições.

— Sinto muito fazer você se lembrar disso. Não tenho recordações desse tipo. Meus pais nunca me castigaram.

— Está tudo bem, Katniss. Essas cicatrizes já se foram mesmo, graças à Capital.

— Só tenho agora as marcas dos ferimentos da segunda arena e da rebelião.

— Não posso dizer o mesmo, infelizmente. Minha perna esquerda...

— Você se incomoda de me mostrar? — Katniss me interrompe.

— Tenho receio de que se culpe.

— Eu me culpo, Peeta.

— Você salvou a minha vida. Não há motivos pra se arrepender. E, se quer mesmo que eu mostre… Só não é nada bonito de se ver.

Katniss dá de ombros. Suspendo a barra da calça e retiro a perna artificial. Ela estende a mão antes de perguntar:

— Posso tocar?

Assinto com a cabeça e ela se aproxima, acariciando suavemente a parte mutilada.

— Esse sou eu. Ou o que restou de mim — afirmo.

— Você não precisa dessa perna para ser um homem inteiro, Peeta. Perfeito, completo...

— Não mesmo. Preciso de você pra isso.

Ficamos nos contemplando em silêncio por alguns segundos.

— Ainda dói? — Katniss desconversa, analisando as feias cicatrizes da amputação e as marcas que a perna artificial deixa na minha pele.

Seguro suas duas mãos e as trago ao lado esquerdo do meu peito, onde meu coração bate fortemente:

— É aqui que dói de verdade, quando estou distante de você.

Nossas faces estão muito próximas e ela hesita, mas encosta seus lábios nos meus levemente. Nosso primeiro beijo desde aquela conversa no quarto de hóspedes. Sem me conter, seguro seu rosto para fazer com que seja prolongado e intenso. Uma alegria imensa me invade e mal posso me segurar. Quando nos separamos, sorrio e ela abaixa os olhos.

— Katniss, esse beijo... — começo a dizer, porém ela não me deixa continuar.

— Não sei o que significou. Ainda estou muito confusa! — fala exasperada.

Essas palavras me atingem como um golpe repentino. Os meus sentimentos vão da extrema felicidade à máxima tristeza.

Sentimentos contraditórios provocados por Katniss.

Minha confusão mental tem início.

Alcanço uma caneta e finco a ponta dela em meu pulso esquerdo.

A dor me auxilia a recuperar o senso de realidade. Meus braços estão ocultos debaixo da mesa e dirijo meu olhar para um ponto na direção oposta à Katniss.

Ela folheia o livro e mal olha pra mim, provavelmente ainda envergonhada e arrependida pelo que fez. Então, não percebe que estou quase perdendo o controle diante dela.

Ela é uma bestante — diz uma voz sombria dentro da minha cabeça.

O livro de memórias está aberto nas páginas em que há um desenho do pai dela à esquerda e uma imagem do meu pai à direita.

Eu finalmente me acalmo com a visão da figura do meu pai. Lembro-me da sua voz serena e imagino como me tranquilizaria em momentos como esse. Alguns minutos se passam e os espasmos em minhas mãos desaparecem por completo.

Katniss também parece refletir sobre o pai dela. De repente, ela me pergunta:

— Você quer ter filhos, Peeta?

Estranho a pergunta aparentemente fora de contexto, mas respondo prontamente:

— Sim. Quero muito. Se conseguir ser metade do que o meu pai foi pra mim, já me sentiria realizado.

— Também penso assim em relação ao meu pai — balbucia Katniss, acariciando a gravura do pai dela.

— Isso significa que você também quer ter filhos? É algo com o que você sempre sonhou?

Ela se remexe na cadeira, um tanto ansiosa.

— Venho de uma família feliz, apesar das dificuldades. Meus pais se amavam muito e, enquanto meu pai era vivo, ele e minha mãe faziam de tudo por mim e por Primrose. No entanto, ter filhos é algo que nunca foi parte dos meus planos. Nunca pensei que esse tipo de coisa pudesse funcionar para mim.

A princípio, fico calado, assimilando aquela revelação. Katniss, então, continua:

— Logo, a minha resposta é não, eu nunca quis filhos. E nem posso tê-los. Um dos remédios que o Dr. Aurelius manda que tome tem efeito contraceptivo. Acho que não querem mesmo que o Tordo se reproduza.

Eu a encaro, pasmo, e ela ergue os ombros, afastando o olhar.

— Eles não podem controlar sua vida dessa forma! — Eu me revolto.

— Não quero mesmo engravidar! E é indiferente o efeito do medicamento. Eu nem tenho uma vida sexual ativa...

— Mas pode vir a ter! — Eu a interrompo sem pensar.

Katniss arregala os olhos e fico corado por haver insinuado a possibilidade de um dia vir a fazer amor com ela.

— Não necessariamente comigo! — Ergo as mãos na defensiva, mas acabo por tapar meu rosto com elas. — Vou ficar quieto, pois só estou me complicando ao discutir esses assuntos.

Ela finalmente ri.

— O que quero dizer é que as circunstâncias podem mudar. Você pode vir a ter um companheiro que queira ter filhos... Com você — explico.

— Eu entendi.

— Você não precisa tomar esse remédio pelo resto da vida, precisa?

— Não sei. Se o Dr. Aurelius alguma vez disse isso, eu não estava prestando atenção.

— Quer que eu pergunte a ele?

— Você está mesmo preocupado com essa situação! Pode deixar que tomo conta das minhas decisões.

— Desculpa. Não queria parecer invasivo. — Coloco a perna mecânica depressa no lugar e levanto-me para sair.

— Ei, espera. Não precisa ir embora por causa disso.

— Realmente tenho que ir.

Preciso processar a informação de que nunca terei filhos com Katniss. Minha ideia de uma vida plena e feliz sempre esteve associada a esses elementos: eu, Katniss, filhos, família.

Sinto aquela conhecida dor aguda em minha cabeça e prevejo que estou próximo de perder a consciência. Preciso sair daqui!

Katniss é um monstro. Ela se diverte em causar sofrimento. — Tento lutar contra esses pensamentos, mas estou tão desnorteado que me faltam forças.

Cambaleio em direção à porta, pois minha mente já está sendo dominada pelo veneno das teleguiadas. Tenho que correr!

Katniss tenta segurar meu braço, porém eu a empurro para longe de mim. Ela consegue ver meus olhos se escurecendo e grita de pavor.

— Peeta, não fique assim... Não!

Salto em direção à saída, atravesso a rua e me apresso para entrar em casa. Só tenho tempo mesmo de fechar a porta e jogar longe a chave, prendendo-me para que não consiga escapar para atacar Katniss.

Essa é a vontade que toma conta de mim. No entanto, já não preciso mais me controlar, pois estou preso em casa. Ela está fora de perigo. E a minha lucidez se esvai completamente.

Chuto a porta com brutalidade e esmurro a grade. As quinas pontiagudas ferem meus braços e punhos.

Paro apenas quando escuto a voz de Katniss do outro lado da porta.

— Peeta, escuta. O fato de não querer filhos era uma questão que eu já tinha como resolvida antes, muito antes de conhecer você. Gale é testemunha.

— Mas é claro que ele é testemunha! É lógico que vocês já conversaram sobre a possibilidade de terem filhos! Os queridos primos que passavam os dias caçando juntos... Caçando? Sei!

— Nunca mais repita isso ou... — Ouço-a espalmar a mão na porta.

— Ou o quê? Vai partir meu coração em pedacinhos? Isso você já fez muitas e muitas vezes!

— E você parte o meu, fazendo essas suposições que sabe que não são verdadeiras!

— Não posso culpar você. Quem no mundo ia querer como pai de seus filhos um descontrolado, um telessequestrado?

— Não! Não quero filhos com ninguém... Nunca quis. A culpa é minha, não é sua. Se conheço alguém que seria um pai maravilhoso, esse alguém é você. Se pudesse escolher um pai para os meus filhos, escolheria você.

— Grande consolo! Você não se cansa de destruir meus sonhos? Vá embora!

— Não vou deixar você assim.

— Sai de perto de mim!

— Você não sabe o quanto foi difícil me reaproximar de você, Peeta, sabendo que nunca poderia fazer você feliz... — Ela chora. — Mas é mais difícil ainda me afastar.

— Quer saber? Isso que você está me dizendo faria diferença há cinco minutos. Porém, agora, não me importo mais.

— Só cabe a você decidir se devo ficar ou não. Se é o que você quer, eu vou.

— Já disse que não me importo mais!

Não há barulho de passos se afastando. Katniss ainda está na soleira da porta.

Estico os braços para golpear a grade e os cortes se aprofundam. Sinto a forte dor e me lembro de quando Katniss quis liberar meus pulsos no porão da loja de Tigris, durante a rebelião.

Katniss cuidou dos meus ferimentos. Ela não queria me ver sofrer. Ela não é uma mutante assassina.

Meu esforço para vencer as imagens distorcidas em minha mente é extremo.

Escuto seus fortes soluços aos poucos diminuindo de volume, enquanto ela caminha para longe.

Ouvi-la assim tão fragilizada reverte em mim o efeito das palavras que foram o gatilho da minha insanidade. Aos poucos, recobro meus sentidos, mas não as forças para lhe dizer uma palavra sequer, quanto mais para abrir a porta para alcançá-la, dar-lhe um abraço e confortá-la, como gostaria de ter feito.

Depois de um tempo — não sei se minutos ou horas —, consigo abrir minha boca e falar, porém ela já está longe e fora do alcance da minha voz:

— Katniss, não chore. Não tenho o direito de lhe cobrar nada. Eu me importo sim. Você é tudo o que me importa.

Quando termino de dizer essas palavras, desfaleço.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Olá, pessoal!
Preciso de um transplante de coração depois de escrever esse capítulo.
:'(
Vou me apressar em postar os próximos, para amenizar o sofrimento...
Posso pedir uma opinião? Os capítulos estão ficando muito longos?
Beijos!