A Redenção do Tordo escrita por IsabelaThorntonDarcyMellark


Capítulo 19
19. Tarde demais




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Por Katniss

— Então, que cores devo usar para pintar o vestido de Prim e o cobertor? — Peeta pergunta, quando me sento à mesa da minha sala de estar.

— O cobertor era cinza e o vestido que ela usava era... Azul-claro!

Eu e Peeta estamos ocupando as nossas manhãs, trabalhando no livro de memórias, há três semanas. Neste instante, ele está desenhando a cena em que Lady, a cabra que dei de presente à Prim em seu aniversário de dez anos, lambeu a bochecha dela, antes de ambas adormecerem sobre um cobertor, próximo à lareira da casa onde morávamos.

Uma das tarefas mais difíceis para Peeta é desenhar as situações que tenho de descrever pormenorizadamente, por ele não tê-las presenciado. Peeta faz dezenas de rabiscos no papel de rascunho até eu ficar satisfeita com o resultado e, somente após minha aprovação, ele desenha a gravura definitiva.

Não existe melhor parceiro para ilustrar o livro. A cada dia, eu o admiro mais como um artista. Para mim, é crucial que as figuras sejam feitas com detalhes exatos e Peeta é paciente para ouvir a minha descrição minuciosa de como quero cada imagem e é talentoso para traçá-las com perfeição.

Enquanto ele desenha, cuidadosamente escrevo tudo que gostaríamos de lembrar sobre a pessoa ou sobre os fatos que estamos narrando.

As circunstâncias são completamente diferentes agora, mas posso afirmar que está sendo tão bom fazer o livro de memórias nesses dias quanto foi completar o livro de plantas da minha família, antes do Massacre Quaternário. Naquela época, apesar de não sermos livres e de estarmos vivendo tantas injustiças no Distrito 12, eu tinha Prim comigo, assim como minha mãe e Gale.

Como imaginava, esta atividade está funcionando muito bem para mim e para Peeta, embora seja muito mais difícil do que trabalhar no livro de plantas.

O efeito da saudade e das lembranças, por vezes, é devastador, mesmo que, até agora, eu e ele apenas tenhamos reproduzido alguns dos momentos felizes que passamos com as pessoas que já partiram. Ao menos nesse estágio inicial dessa terapia em dupla, ainda não nos aventuramos em retratar acontecimentos mais sombrios. Haymitch prometeu que irá nos ajudar, quando formos escrever sobre os Jogos e a rebelião.

Por incrível que pareça, nossa maior incentivadora é a Daisy. Como acontece desde que voltei para casa, ela acompanha sua avó até aqui em alguns dias da semana. No entanto, desde quando começamos a escrever o livro, Daisy chega e aguarda pacientemente que Peeta prepare para ela um cantinho ao nosso lado com o seu material de pintura. Ela prefere ficar sentada no chão mesmo e agora usa telas de verdade para suas pinceladas, e não mais os braços de Peeta.

Na única vez em que Peeta ainda não havia despertado antes de sua chegada, Daisy foi acordá-lo, sem que a avó percebesse. Peeta, é claro, achou a maior graça ao encontrá-la à beira da cama, puxando a manga de sua camisa, enquanto olhava atenta para a porta do quarto, como se estivesse preocupada com a reação de Greasy Sae, se sua avó descobrisse o que estava fazendo.

Nem é preciso dizer que Daisy passou a ser nossa companhia constante nas manhãs. Ela, porém, não se envolve nos desenhos do livro de memórias. Seu interesse é em fazer figuras abstratas, sempre com muitas cores vivas e contrastantes. A única interferência que Daisy considera aceitável é a de Buttercup, que por vezes passeia despreocupadamente pela sala, marcando suas patas nas pinturas dela e no chão, o que a deixa fascinada.

Peeta certa vez explicou que Daisy não enxerga o mundo com a nossa visão limitada e, por isso, seus desenhos fogem à simples cópia do que ela vê à sua volta. Ele disse também que a menina é dona de uma alma sensível e prefere se expressar através de sua arte, e não por meio de palavras.

Greasy Sae escutou as explicações de Peeta com ar cético, como se ele estivesse falando outra língua, mas não deixou de trazer a neta para passar as manhãs conosco, sempre que possível.

Durante as tardes, em regra, vou à floresta caçar, enquanto Peeta e Haymitch participam de várias atividades ligadas à reconstrução da cidade, especialmente das reuniões, que passaram a acontecer sempre na casa de um dos dois.

Nessas poucas semanas, pude confirmar o quanto é difícil para Peeta lidar com certas memórias, sejam elas verdadeiras ou falsas. Em mais de uma ocasião, eu o flagrei com a respiração pesada e os olhos nublados, fincando algum objeto pontiagudo — a ponta de um lápis ou de um pincel —, com toda a força, nas cicatrizes que as algemas deixaram em seus pulsos. Na única vez em que percebeu meu olhar preocupado sobre ele, Peeta explicou, após se acalmar:

— Isso ainda funciona. Quando sinto que estou começando a delirar, a dor me ajuda a retomar o foco.

Felizmente, na maior parte do tempo, nós nos absorvemos no trabalho e isso nos ajuda a amenizar nossas angústias.

Continuo gostando de observar suas mãos trabalhando calmamente e seu rosto concentrado.

De igual modo, recriei a minha fixação pelos seus cílios, que normalmente são imperceptíveis, por serem muito claros. No entanto, de perto, com o reflexo da luz do sol que invade a sala, posso ver como são dourados e tão longos que não sei como não se embaraçam quando fecha os olhos.

Descobri também que adoro as sardas dele. Peeta sempre se senta perto o bastante para alcançar minhas mãos de vez em quando e para trocar alguns beijos furtivos comigo. Então, as pequenas manchas em seu nariz perfeito e abaixo de seus olhos ficam bem nítidas a essa pouca distância.

E aqui estou eu, tão próxima dele que poderia contar cada uma das suas minúsculas sardas, se quisesse. E é o que faço incansavelmente.

No entanto, não sou a única observadora. Em alguns momentos, percebo que Peeta para de desenhar e fica à espreita enquanto escrevo. Em geral, não atrapalho a sua contemplação. Hoje, porém, eu o pego em flagrante e o surpreendo quando ergo meu olhar.

— O que foi? — pergunto.

— Estou buscando inspiração.

— Aqui? — aponto para o texto que estou escrevendo, fazendo-me de desentendida.

— Sim. Você escreve muito bem... — diz ele e se aproxima para colocar uma mecha de cabelo atrás da minha orelha. — Sua caligrafia é perfeita... — Ele desliza seus dedos pelo meu pescoço. — Seu estilo de escrita é fascinante...

Peeta me lança um sorriso sedutor, chegando bem perto de mim, sem tirar os olhos da minha boca.

Levanto a caneta que estou usando e a seguro entre o meu rosto e o dele:

— Quer dizer que essa caneta é minha mais nova arma de sedução?

Ele não consegue segurar uma gargalhada e todo seu esforço de conquistador vai por água abaixo. No entanto, continua sendo adorável.

— Pode apostar que sim! Ainda bem que esse livro está só começando e vou poder admirar você escrevendo por muitos e muitos dias — comenta ele, retomando sua postura de galanteador, roubando um beijo no meio do meu sorriso.

Peeta se ergue da cadeira, ainda olhando intensamente pra mim, porém seu ar de felicidade desaparece aos poucos.

— Aconteceu alguma coisa? — indago.

— Não há nada de errado. Só estou preocupado. Greasy Sae não é de se atrasar e, até agora, não chegou.

Isso é o que ele fala e sei que Peeta não está mentindo, mas tenho certeza de que ele não me contou tudo o que o está afligindo.

Há dois dias, eu estava prestes a entrar em sua casa, quando entreouvi uma conversa dele com o Dr. Aurelius ao telefone. Peeta não estava falando sobre seu tratamento ou seus remédios. Na verdade, ele estava perguntando sobre o meu julgamento pela morte de Coin e o que é preciso fazer para eu conseguir permissão para sair do Distrito 12.

Outra coisa estranha foi o fato de ele ter passado uma semana inteira tentando falar com Delly no Distrito 13, o que rendeu bastante expectativa e virou um assunto recorrente, até que seus comentários, ora preocupados, ora animados, simplesmente desaparecerem de nossos diálogos depois que ele conseguiu contatá-la. Por outro lado, após isso, Peeta falou com Delly mais de uma vez, pois ele próprio comentou com Thom a respeito, porém preferiu não me atualizar com as novidades.

Minha curiosidade está me dominando e, quando já estou a ponto de perguntar o que, de fato, está acontecendo com ele, Greasy Sae chega, mais uma vez desacompanhada.

Peeta pergunta por Daisy, pois há dois dias que não a vemos, e Greasy Sae informa que ela está adoentada. Então, Peeta a bombardeia de questionamentos sobre a saúde da menina e, por fim, promete fazer uma visita a ela à tarde.

Depois, não conversamos muito enquanto trabalhamos em nossas respectivas atividades e, sem a Daisy para dividir nossa atenção, noto que Peeta está um pouco inquieto. Observo seus músculos tensos quando ele folheia os rascunhos e há uma leve agitação enquanto gira o lápis com uma expressão pensativa. Os tendões das suas mãos estão flexionados no momento em que corre os dedos distraidamente pelo tampo da mesa.

— Você topa visitar a Daisy comigo? — Peeta me pergunta de repente.

— Só se você concordar em me acompanhar até a floresta depois.

— Você quer caçar? Comigo? — Ele faz uma expressão incrédula. — Você teria que me ensinar suas técnicas. Acho que me sairia bem nas aulas, mas depende muito da professora... — Peeta começa a falar em tom descontraído, mas o interrompo, antes que perca a coragem de lhe pedir uma explicação sobre sua inquietude.

— Na verdade, gostaria de conversar com você em um lugar tranquilo, onde não pudéssemos ser interrompidos. Quero saber o que está acontecendo pra você estar tão aflito.

Peeta nem tenta disfarçar.

— É mesmo difícil esconder qualquer coisa de você — reconhece, afagando minha mão. — Que o nosso destino seja a floresta, então!

Assim, quando Greasy Sae volta para sua casa no final da manhã, eu e Peeta a acompanhamos, levando biscoitos e alguns papéis e lápis coloridos para Daisy se ocupar enquanto se restabelece da doença. Vamos também preparados para passar o restante do dia na floresta.

Pelo caminho, Greasy Sae e Peeta, que gostam muito de conversar um com o outro, estranhamente andam calados. Parece que cada um está remoendo suas próprias preocupações. Simplesmente os acompanho, apenas observando.

Chegando lá, deixo o arco e a aljava de flechas na porta da casa de Greasy Sae. Daisy está em seu quarto, acamada e bastante abatida. Sua mãe está numa cadeira ao seu lado.

— Como ela está? — Greasy Sae pergunta preocupada.

— Está sem forças para nada e, ainda por cima, não quer tomar a medicação.

Daisy abre os olhinhos e eles brilham quando ela vê a mim e a Peeta ao pé da cama. Ela bate a mão na lateral do colchão, pedindo para eu me sentar, o que faço em seguida. Peeta abaixa-se para ficar na altura dos olhos dela e pergunta:

— Por que você não quer tomar o remédio, pequena?

Daisy leva a mão à sua garganta, fazendo uma expressão de dor.

— Você precisa ficar boa logo, pra poder ir à minha casa fazer as pinturas de que tanto gosta! — Eu a incentivo.

Ela aperta o meu braço e aponta o frasco do remédio. Coloco-a em meu colo e, quando sua avó se aproxima com a colher cheia do medicamento, Daisy não recusa, somente faz uma careta engraçada.

— Poderíamos fazer uma compressa fria. Ela está febril — sugiro.

Greasy Sae providencia algumas toalhas umedecidas, que deposito na testa da menina. Quando a temperatura corporal dela diminui um pouco, Peeta lhe entrega o que trouxemos para distraí-la pelos próximos dias de recuperação e Daisy fica radiante. Logo depois, nós nos despedimos, beijando o topo da cabeça da criança.

A filha de Greasy Sae nos leva até a porta e, antes de sairmos, ela agradece:

— Sou muito grata pelo carinho que vocês têm por ela e, Katniss, o modo como você tratou a Daisy me lembrou de sua mãe... E de Prim também.

— Alguma coisa eu tinha que aprender, convivendo com... — digo com a voz embargada e me calo de repente, sem conseguir terminar a frase.

Peeta pousa as mãos em meus ombros com carinho e recolho o arco e a aljava que havia deixado na entrada da casa.

— Você se saiu bem mesmo. Foi como ver sua mãe e sua irmã em ação. — Ele sorri fracamente.

Andamos em silêncio até a antiga cerca que circunda a floresta e, antes de atravessá-la, entrego uma faca para Peeta, a qual ele desliza em seu cinto.

— Só por precaução — explico.

— Você é quem manda. Apenas me diga o que preciso fazer — pede ele. — Além de silêncio... Tenho certeza de que foi essa a palavra que acabou de cruzar a sua mente.

Eu balanço a cabeça, esboçando um sorriso, sem conseguir esconder que ele está certo, pois foi exatamente o que pensei.

— Apenas fique de olhos abertos e ouvidos atentos ao que acontece à sua volta — ensino em tom sério.

À medida que adentramos mais e mais na floresta, os sons que produzimos ficam mais evidentes. É natural que façamos algum som. No entanto, mesmo sobre o chão de folhas macias, Peeta continua muito barulhento.

Devo aceitar esse fato: por mais que se esforce, Peeta não consegue caminhar silenciosamente. Preciso também me lembrar de que ele não está acostumado com esse lugar, que sempre foi tido por ele como assustador e proibido. No entanto, mesmo considerando tudo isso, o ruído exagerado ao caminhar ainda me irrita bastante. Respiro fundo, antes de me virar e olhar para seus pés.

— O quê? — pergunta Peeta.

— Ainda bem que não viemos com a intenção apenas de caçar. Você está espantando qualquer chance de conseguirmos carne fresca.

Estou acostumada a andar sozinha por aqui, ou com Gale, que sempre me impressionou com o pouco som que produz ao se locomover.

No entanto, hoje não estou só e não estou com Gale. É o garoto com o pão que está caminhando comigo. Sinto seus braços ao meu redor.

— Desculpe-me se sou tão barulhento como você diz. — Ele espera eu girar meu corpo e olhar em seus olhos para continuar. — Você está chateada comigo? Preciso que esteja tranquila para que possamos conversar.

— Sei que não é de propósito. Não parece justo de forma alguma acusá-lo de não conseguir nada para caçar. — Tento ser gentil e o abraço.

— Sinto muito, Katniss.

Nesse momento, não me importo mesmo que os passos de Peeta façam os roedores correrem muito antes que possamos vê-los e os pássaros voarem para longe. Estou preocupada é com o que ele quer me dizer.

Embora o dia esteja ensolarado e quente, sinto um frio na barriga que se espalha por todo o meu corpo.

Ficamos ali por uns instantes, perdidos no abraço, sentindo um ao outro, a luz do sol, o sopro do vento. Então, sem uma palavra, nós nos separamos e Peeta me segue pelo percurso que faço. Ruidosamente, é claro.

Paramos para descansar sob uma árvore frondosa. Planejo fazer algo que vai amenizar o clima entre nós e encorajar Peeta a se abrir comigo.

Nas árvores ao redor, vejo os tordos se movimentando entre os galhos, brincando com diversas canções uns com os outros. Cantarolo um trecho da música que Rue me ensinou e percebo que os pássaros param curiosos ao som da minha voz.

— Eles se calaram para prestar atenção, como acontecia com seu pai — comenta Peeta.

Repito as notas durante o silêncio que eles fazem. Primeiro, um tordo espalha a melodia, depois outro reproduz o canto, e assim por diante. Então, tudo à nossa volta se torna mais vivo com a sinfonia que produzem.

O cântico dos pássaros aumenta de volume e, apesar de as notas se sobreporem, elas não se atropelam. Ao contrário, uma complementa a outra, como se fossem vários instrumentos numa orquestra, tocando em harmonia.

Por um momento, apenas fechamos nossos olhos e escutamos, envolvidos pela beleza da música.

Quando abro os olhos, Peeta está me encarando com uma expressão mais leve. Ele se aproxima e me beija profundamente:

— Não é a primeira vez que vejo os tordos repetindo seu canto. Você fez isso pouco antes de reencontrarmos Cato na primeira arena. No entanto, aqui, nesse momento, foi simplesmente fantástico.

Depois, ele respira fundo e anuncia:

— Chegou a hora de conversarmos. — Peeta fica de pé e me puxa para nos colocarmos frente a frente.

— Então, o que está deixando você assim angustiado? — pergunto, olhando em seus olhos.

Peeta hesita um pouco, antes de dizer:

— Você sabe que consegui falar com a Delly, depois de muito custo.

— Sim, mas não soube por você. Ouvi uma conversa sua com o Thom a respeito.

— Pois é. Ela me contou sobre alguns acontecimentos no Distrito 13 que tive receio de que deixariam você triste, se soubesse deles. Então, preferi não tocar no assunto. No entanto, depois surgiram outras complicações com relação à vinda dela para o Distrito 12 e isso eu não quero esconder de você. E nem posso.

— Peeta, diga logo o que está havendo. Já estou ficando nervosa! — Eu o repreendo.

— Por favor, fique calma. Isso é difícil pra mim também. É um tema que já está resolvido na minha cabeça, mas que nunca quis abordar com você. É sobre o que aconteceu no Distrito 13 depois que você... — Ele para de falar subitamente, dando alguns passos na direção contrária.

— Depois que eu... — Eu o instigo a continuar.

— Depois que você assassinou a Coin. — Ele abaixa seu tom e volta-se novamente para mim. — Perdão. Não fico bem quando lembro daquele dia, em que você quis se matar. É também complicado verbalizar esse tipo de coisa... Pensar que você deliberadamente matou alguém.

Peeta cruza o espaço entre nós e segura meus braços. É quando percebo o quanto estou tremendo. Fito o chão.

— E o que aconteceu no Distrito 13 depois do que fiz? — pergunto com voz fraca.

— Os antigos habitantes daqui passaram a ser hostilizados pelas pessoas do 13. Confirmei isso com Greasy Sae. Ela disse que aquele povo tinha verdadeira adoração pela Coin e a convivência não foi fácil pra quem ficou por lá.

— Nunca pensei nas outras pessoas... — Quase sufoco com o pensamento que me ocorre. — Como sou egoísta!

— Não fale assim. Os ânimos já se acalmaram e, depois que descobriram toda a trama que envolveu as mortes das crianças da Capital, de Prim e de toda a equipe de resgate, quase todos se revoltaram contra a presidente Coin e, de certa forma, entenderam a sua decisão de matá-la no lugar de Snow.

— Mas houve esse período em que as pessoas daqui passaram dificuldades. — Meu coração dói tanto que mal consigo respirar.

— Katniss, você está bem? — Peeta pergunta, porém não tenho forças para responder. — Katniss?

— Eu... Estou bem — respondo mecanicamente, enquanto Peeta limpa uma lágrima do meu rosto. — Você disse também que ocorreram outras complicações em relação ao retorno da Delly para o nosso Distrito.

— Ah! Isso não tem nada a ver com a morte da Coin.

— Então, qual é o problema?

— Tomei uma decisão e estou preocupado com a sua reação. — Peeta recupera o fôlego antes de continuar. — Falei com a Delly sobre a possibilidade de ela e seu irmão Blaine refazerem a vida no Distrito 12. Ela ficou muito empolgada com a ideia de reerguer a loja dos pais deles e de voltar a morar aqui.

— Então, Delly e Blaine vão voltar?

— Sim. A pedido de Delly, segui todo o procedimento para reservar pra eles uma das casas que já estão prontas na área residencial. Estava tudo certo para a chave da única casa disponível ser entregue a Delly e a Blaine daqui a três semanas. Eles dois já haviam providenciado seu desligamento das atividades do Distrito 13 e, por isso, foi fixada uma data para deixarem o alojamento que ocupam.

— Você disse que estava tudo certo... O que houve?

— Surgiu uma família interessada em voltar também. Um casal com dois filhos pequenos. Por uma falha de comunicação, reservaram para eles a mesma casa que eu havia garantido para Delly e Blaine. Os dois estavam sem ter onde ficar e, por isso, eu os convidei para morarem comigo, enquanto tudo se ajeita.

Peeta envolve seus braços em mim, porém eu o empurro, tentando entender meus sentimentos, que estão bastante confusos com toda essa conversa e, agora, com essa notícia de que Peeta vai morar com Delly.

— Eles são meus amigos desde a minha infância. Não poderia abandoná-los assim.

— É claro que não. Não estou aborrecida com você. Só preciso andar um pouco. Vou ver se consigo caçar alguma coisa. — É a única coisa que digo.

Peeta estica o braço e toca minha mão, mas eu a tiro de seu alcance. A dor em seus olhos é quase insuportável.

— O que você pensa que está fazendo? — Minha indignação sai de minhas palavras como ira.

— Posso ir com você? — indaga ele, claramente confuso com a minha explosão.

— Não! — Fujo para longe.

Assim que saio do seu campo de visão, recosto-me numa árvore e deixo o arco cair no chão. Eu me sinto fraca e vulnerável. Uma angústia me invade e, só então, começo a refletir que não devo ter ciúme de Delly. Afinal, em várias oportunidades, ela me defendeu, inclusive quando o próprio Peeta me atacava verbalmente no Distrito 13, na época em que o telessequestro ainda era recente.

Eu devo também a ela boa parte da recuperação dele. Delly o ajudou muito, quando ele mais precisava, enquanto eu não podia fazer muita coisa.

Mesmo que Peeta pedisse a minha opinião a respeito da decisão dele, eu não poderia exigir nada de diferente. Respiro profundamente por vários minutos, até que os sinais do meu nervosismo se dissipam.

No entanto, ainda resta um grande peso em meu peito, com o qual não estou sabendo como lidar. Não tenho ciúme de Delly. Tenho é medo da comparação. Delly é uma pessoa simpática, risonha, comunicativa e cheia de positividade, enquanto eu sou... Introvertida, séria, quieta e propensa à depressão.

Esse momento de reflexão serviu para afastar os motivos da minha raiva inicial com as revelações de Peeta, mas aquela pontinha de amargura ainda não se dissolveu, sem contar o remorso por tudo o que aconteceu no Distrito 13.

Além disso, estou triste por ele ter demorado tanto a falar comigo sobre os problemas pelos quais estava passando.

Volto ao local onde o deixei sozinho. Peeta segura a minha mão para se erguer do chão e estende um desenho que estava fazendo para que eu veja. Mesmo sabendo que não estou certa e que minhas ações são reflexo de tudo de ruim que estou sentindo momentaneamente, estou tão disposta a magoá-lo que sequer comento a respeito de como ficou bonito. Simplesmente finjo ignorar tudo o que ele está fazendo para tentar confirmar que está tudo bem entre nós.

— Temos que voltar. Já está escurecendo — digo secamente.

— O que me importa? Tenho você para me proteger. — Peeta me puxa até ele.

— Anda logo — ordeno exasperada, livrando-me do seu abraço, mas não antes que ele deixe um beijo em meu pescoço.

— Trouxe alguma caça?

— Nada. Não vi nem sinal dos animais nesta área.

No caminho de volta, verifico as armadilhas que montei ontem e recolho apenas um coelho.

— Vamos depressa pra casa. Graças a seus passos nada sutis, somente conseguimos um coelho hoje — resmungo e Peeta não discute.

Sei que estou exagerando. Realmente não ligo se não consegui abater nenhum outro animal. Quero apenas uma razão pela qual ficar brava.

— Lanchei quando você saiu. Você quer comer alguma coisa? — Peeta oferece e nego com a cabeça.

De fato, estou com fome, porém não quero ceder tão cedo às tentativas de reaproximação dele. Finalmente, Peeta parece entender e fica calado pelo restante do trajeto.

Andando de volta para a Aldeia dos Vitoriosos, arrependo-me por ter ficado tão irritada, a ponto de não parar para admirar ao lado de Peeta o céu pintado de tons alaranjados, enquanto o sol recua até dar lugar à lua e às estrelas.

Tarde demais.


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Notas finais do capítulo

Olá, pessoal!

A Katniss exagerou, né? Eu não a culpo... às vezes, reajo assim como ela.

Quanto aos novos rumos que a fic está tomando, só peço paciência para alguns capítulos de separação dos nossos queridos. Garanto que a continuação/reconciliação está ficando muito fofa na minha imaginação.

Não desistam da fic! Meu coração é Peetniss/Everlark! ♥ ♥

Beijos!