A Redenção do Tordo escrita por IsabelaThorntonDarcyMellark


Capítulo 10
10. O canteiro de prímulas




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Por Peeta

Não durmo direito. Minha imaginação fica vagando entre possíveis estratégias para tentar retirar Katniss do estado em que se encontra. Infelizmente, acho que estão todas fadadas ao fracasso. A guerra transformou a nós todos. Não a conheço mais e não faço ideia do que se passa com ela. Como saber a melhor maneira de ajudá-la?

Falta pouco para o amanhecer. A minha ansiedade para rever e falar com Katniss se sobrepõe ao meu cansaço, de modo que logo levanto e me ponho a procurar as ferramentas de jardinagem e o carrinho de mão. Quando encontro tudo o que preciso num cômodo semelhante a uma oficina que fica no quintal, vou até a floresta. O caminho ainda está deserto, pois a cidade deve despertar apenas com os primeiros raios de sol.

Atravesso a cerca com muita cautela, por causa da ainda escassa iluminação natural. Desenterro cinco dos arbustos de prímulas noturnas e os levo até a casa de Katniss.

Espio em sua janela para constatar que ela permanece dormindo no sofá, vestida na jaqueta de caça de seu pai, a qual ela agarra firmemente.

A pálida luz da manhã que atravessa as bordas das persianas clareia fracamente sua face.

A expressão tensa de Katniss denuncia que seu sono não está sendo tranquilo. Cogito entrar em sua casa para confortá-la, porém me lembro em seguida de que Katniss ainda não está ciente de que estou no Distrito 12.

Trato logo de preparar a terra debaixo de suas janelas, pois prefiro que ela encontre todas as mudas já plantadas. Minha intenção é mostrar à Katniss este local quando estiver parecendo minimamente com um canteiro de flores.

No entanto, algum tempo depois de começar a escavar o chão, ouço alguns barulhos vindos de dentro de sua casa. Katniss deve ter despertado devido ao pesadelo que estava tendo.

Escuto passos apressados e a porta da frente é aberta.

As passadas se aproximam pela lateral da casa até quase chegarem à minha frente. Olho para cima para vê-la se deter repentinamente. Seu rosto mostra que está em completo choque com a minha presença.

Meu coração dispara e devo estar vermelho de vergonha, mas ela pode atribuir meu rubor ao esforço que fiz. Katniss examina o carrinho de mão, onde ainda estão os cinco arbustos descuidados que trouxe da floresta.

— Você voltou — diz ela.

— Dr. Aurelius só me deixou sair da Capital ontem — explico. — A propósito, ele disse para falar para você que ele não vai poder ficar fingindo para sempre que está te tratando. Você vai ter de atender o telefone alguma hora.

Seus olhos cinzentos estudam os meus com intensidade. Assim de pé, Katniss parece ainda mais magra. Sua pele cor de oliva está descorada e perdeu o ar saudável. Seu corpo está coberto com cicatrizes de queimaduras, como o meu.

Diante dela, recordo mais claramente o quanto ela é importante pra mim. As memórias distorcidas tornam-se mais distantes, ao mesmo tempo em que as lembranças do nosso tempo juntos ficam menos nebulosas. Estou começando a entender de onde vem a necessidade que sinto de ajudá-la.

Involuntariamente, franzo a testa enquanto a observo com atenção.

Incomodada com meu olhar fixo nela, Katniss tenta tirar alguns fios que caem sobre seus olhos, quando parece notar pela primeira vez que seu cabelo está emaranhado em tufos. De repente, ela assume uma postura defensiva.

— O que você está fazendo? — questiona.

— Fui até a floresta agora de manhã e colhi isso aqui. Para ela — digo. — Pensei que a gente podia de repente plantá-las ao longo da lateral da casa.

Ela olha para os arbustos, com os torrões de terra para fora de suas raízes, e recupera o fôlego. Vejo a raiva cruzar seu rosto e acho que está prestes a gritar insultos para mim, até que ela vislumbra o tipo de mudas que estou plantando.

Prímulas noturnas. As flores que deram o nome para a sua irmã. Subitamente, sua expressão se transforma em algo que realmente não posso descrever. Uma mistura de tristeza e saudade. Katniss acena para mim, talvez como sinal de concordância, e volta correndo para dentro da casa, fechando a porta atrás de si.

Escuto passos fortes subindo a escada e, em seguida, um som de queda. Levanto rapidamente para espreitar pelo vidro da janela e tentar ver se aconteceu algo grave.

— Katniss, está tudo bem? — Dou leves batidas no vidro, porém ela não está na sala, nem mesmo consigo ter certeza se ela caiu nos degraus.

Não demora muito, vejo que Katniss desce a escada com um vaso nas mãos. No recipiente, há flores secas e uma rosa branca, igual às que são cultivadas na estufa de Snow e que estavam sempre em sua lapela, exalando um cheiro insuportável de tão forte. Katniss anda tropegamente até a cozinha e ouço o vaso sendo estilhaçado no chão. Logo depois, ela volta a subir a escada. Fico mais tranquilo por verificar que não está machucada.

O rangido de dobradiças se movendo chama a minha atenção. Olho para cima da fachada e verifico que Katniss abriu as janelas do seu quarto.

Embora ela não tenha exatamente me autorizado a continuar, dou prosseguimento ao plantio das prímulas.

Quando estou quase terminando, Greasy Sae se acerca de mim e me cumprimenta:

— Bom dia! Já de pé, assim tão cedo! — Seu tom é de surpresa.

— Bom dia! Tive a ideia de plantar essas flores para Katniss quando cheguei ontem ao Distrito 12 — informo.

— Prímulas noturnas? — Ela reconhece as flores.

— Sim. Se Katniss permitir, vou plantar outras mudas ao redor da casa, como um memorial à sua irmã.

— Katniss deve gostar! — Greasy Sae arrisca um palpite.

— Ela já viu, mas não deu opinião. Simplesmente entrou de volta em casa... A senhora está indo até a casa dela preparar o café da manhã? — indago.

Greasy Sae confirma com a cabeça.

— Acho que ela sofreu uma queda e, depois, atirou um vaso de flores no chão. Veja se ela está bem, por favor — peço preocupado.

— Pode deixar que aviso se ela estiver precisando de ajuda — garante ela.

Observo Greasy Sae destrancar a porta da frente. Fico em vigilância em casa, aguardando que a senhora saia, para que eu possa lhe perguntar o que ocorreu.

No entanto, quem eu vejo deixar a casa é a própria Katniss, munida com arco e aljava de flechas, indo em direção à Campina.

Sou tomado pelas recordações de quando a encontrava por acaso a caminho do Prego para negociar sua caça ou quando ela surgia na área onde eu e meus irmãos recebíamos os carregamentos de farinha. O peso que eu levava nos braços parecia sumir. Aliás, tudo ao meu redor ficava em segundo plano, pois, ainda que eu raras vezes olhasse diretamente para Katniss, minha visão periférica tentava capturar todos os seus movimentos e meus ouvidos ficavam atentos para distinguir o som da sua voz. Enfim, meus sentidos estavam inteiramente voltados para ela.

Como naquela época, meu coração fica descompassado e, mesmo que Katniss não saiba que está sendo acompanhada por meu olhar, desvio meus olhos quando ela mira de relance a minha casa e segue seu caminho.

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Preparo o almoço e levo uma refeição quente para dividir com Haymitch, que não deve ver nada parecido há muito tempo. Tenho também que entregar os seus presentes e agradecer a ele por ter abastecido minha despensa.

Eu o encontro dormindo, estirado no sofá, e sua casa está num estado de total deterioração. A rebelião terminou, Snow morreu, porém o terror que ele infligiu continua entranhado nas pessoas que o vivenciaram. Haymitch é a prova viva disso. Bêbado, dorme durante o dia, pois não consegue pregar os olhos à noite, agarrado a uma faca, para se proteger de ataques imaginários, mas que um dia foram bem reais.

Tento despertá-lo de várias maneiras. Chamo seu nome, balanço seu corpo, mudo a sua posição, até que desisto.

Rio sozinho, lembrando-me do dia em que se iniciou a Turnê da Vitória, quando Katniss acordou Haymitch, jogando água gelada em sua cabeça, e disse a ele: "Se você queria ser tratado como um bebê era melhor ter pedido a Peeta".

Decido organizar minimamente a mesa de jantar, para que pelo menos eu possa almoçar. Por incrível que pareça, basta ele ouvir o tilintar dos cascos vazios que peguei para pôr no lixo para que acorde. Haymitch e sua audição seletiva.

— Quem está mexendo em minhas garrafas? — Sua voz rouca ecoa pela casa.

— Estou apenas liberando espaço na mesa, pra podermos ao menos apoiar nossos pratos nela — respondo.

— Boa sorte, ou melhor... que a sorte esteja sempre a seu favor! — Esse é o encorajamento que recebo de Haymitch.

— Venha almoçar. A comida ainda está quente — convido e ele se ergue com dificuldade do assento.

— Eu ouvi direito? — Ele puxa uma cadeira e desaba sobre ela. — Comida quente?

— Sim, graças à despensa cheia que você me deixou. Obrigado — agradeço.

Haymitch avança sobre a comida sem cerimônias.

— Só faltou a bebida pra acompanhar — comenta ele.

— Não faltou. — Ponho sobre a mesa a sacola com as garrafas que comprei de presente para ele no trem. — Estava devendo isso desde que derramei todos os seus licores no ralo antes do Massacre Quaternário. Agora vê se para de jogar isso na minha cara sempre que você tem oportunidade.

— Pelo visto, os meus lembretes a respeito da besteira que você fez surtiram o efeito esperado — rebate, já alcançando uma das garrafas para abri-la.

— Esse não é seu único presente. — Estendo a Haymitch o pacote colorido que Effie pediu para entregar a ele.

Ao desembrulhar e ver o conteúdo da embalagem, observo sua fisionomia se transformar, como se a imagem lhe provocasse as mais variadas emoções.

— Você já imaginou um casal mais inusitado? — Ele me mostra a foto dos dois juntos, abraçados e sorridentes.

— Talvez... eu e Katniss? — pergunto.

— Preciso arrumar tanta coisa pra deixar Effie realmente fazer parte da minha vida — murmura e olha a seu redor. — Só eu consigo viver nesse pardieiro, sem contar que a maior bagunça está aqui. — Haymitch aponta para a sua testa.

— De repente, é fazendo o caminho inverso que tudo vai se ajeitar — sugiro.

— Caminho inverso? — questiona meu antigo mentor.

— Primeiro, você permite que Effie realmente faça parte da sua vida e, depois, vocês dois juntos arrumam a bagunça — explico e ele fica pensativo. — Ou comece buscando algo a que se dedicar, ao menos pra parar de trocar o dia pela noite. Faça uma horta ou cuide de alguns animais.

Apesar de parecer improvável a ideia de ver Haymitch como um criador de seja lá o que for, ele considera minha sugestão.

— Talvez uns bichos que saibam se virar sozinhos — reflete ele.

— Pense nisso. Katniss parece ter uma ocupação novamente também. Hoje eu a vi sair para caçar — comento e fico aguardando a sua reação.

Haymitch quase se engasga com a comida ao escutar a novidade.

— Como assim? Ela mal se moveu desde que chegamos! Você já esteve com ela? — pergunta ele, surpreso.

— Trocamos algumas palavras depois que ela me viu plantando prímulas debaixo de suas janelas, mas não foi nada demais.

— Você pensa que não foi nada demais... já eu acho que esse primeiro encontro superou minhas expectativas — afirma Haymitch, parecendo aliviado.

Depois de um tempo, ouvimos o som de uma carroça passando pela rua. Vamos até a porta e ela está estacionada em frente à casa de Katniss.

Reconheço Thom, um morador da Costura, que estudava numa turma mais adiantada na escola. Ele está amparando Katniss para entrar em casa. Ela parece enjoada e tonta. Nenhum dos dois nota que estamos observando a cena de longe.

— A caçadora está meio fora de forma — pontua Haymitch.

— Katniss está muito fraca ainda — reparo. — Vou me esforçar para que ela se alimente melhor.

Não demoro muito mais junto de Haymitch e, logo que Thom deixa a Aldeia dos Vitoriosos, volto pra minha casa, caminhando devagar. Quando estou andando perto da residência de Katniss, escuto alguns miados, seguidos de gritos, sendo que compreendo apenas alguns deles:

— Ela está morta, seu gato idiota. Morta! — Katniss se enfurece.

Ouço mais miados. Depois, novos berros e o choro de desespero.

Não é difícil imaginar à morte de quem ela está se referindo. A dor pela perda de Prim escapa de sua voz e de seus soluços. Seu desconsolo me atinge profundamente e minha vontade é correr para abraçá-la.

No entanto, esse não parece ser um bom momento. De qualquer modo, prometo a mim mesmo não medir esforços para minimizar seu sofrimento.

Quem conhece superficialmente a história de Katniss pode pensar que Prim era seu ponto fraco.

Do meu ponto de vista, tenho certeza de que Prim era e é o seu ponto forte. É onde ela encontra o seu eixo, seu equilíbrio, sua essência. Foi nela que Katniss preservou seus maiores tesouros, sua inocência, sua pureza, sua alegria de viver.

Katniss perdeu muito mais que uma irmã a quem amava mais que tudo. Katniss perdeu o que talvez ela considere como a melhor parte dela mesma.

E, mesmo que Katniss não aceite a minha ajuda, permanecerei aqui. O que posso fazer se a melhor parte de mim está onde ela se encontra?


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Notas finais do capítulo

Olá, pessoal!

O capítulo foi tristinho, mas a história ainda terá muitos momentos alegres, pode deixar.

Fico muito feliz com as visualizações, os votos e comentários! Espero que continuem acompanhando.



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