Tempo Ruim escrita por helenabenett, Lyra Parry


Capítulo 21
Sobreviver


Notas iniciais do capítulo

Magali se esforça para retomar a rotina de treinos, um hábito que a faz se sentir bem consigo mesma. Aos poucos a menina recupera sua vivacidade, mas Cascão insiste em distraí-la de seu objetivo de seguir em frente. Quando ele lhe faz um convite ousado, Maga decide pôr um ponto final nessa história.



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It took all the strength I had not to fall apart

Kept trying hard to mend the pieces

Of my broken heart

And I spent, oh, so many nights

Just feeling sorry for myself

I used to cry, but now I hold my head up high

I will survive – Gloria Gaynor

 

Magali

Nos primeiros dias Maga sentia como se estivesse petrificada. Realizava as tarefas cotidianas como uma máquina, e os vagos pensamentos que lhe assomavam era apenas: “agora devo comer”, “hora de escovar os dentes”, ou coisas do tipo. Quando finalmente começou a reagir e a pensar racionalmente, começou a sentir uma dor e um luto fora do comum. Queria gritar com tudo e com todos, chorava quase a todo momento e se recusava a comer.

Uma semana se passou, e ela nem ao menos tinha notado que Cassio não ia mais as aulas. Tampouco tomou nota de como aos poucos ele deixava de tentar contatá-la. Durante aquele período a magrela só conseguia pensar em sua dor e no seu luto, e em como havia sido idiota por cometer o mesmo erro duas vezes: confiar cegamente em um rapaz que prometeu amá-la.

Depois de um tempo começou a redirecionar a culpa toda dos eventos do halloween para si, afinal o Cascão nunca havia traído Maria, mas fez isso com ambas depois de ficarem juntos. Quim, igualmente, parecia totalmente satisfeito com Sara. Diferente do modo como agia com Magali ele parecia orbitar em torno da namorada, suprindo todos os seus caprichos e deixando até mesmo as obrigações com a padaria de lado. Não que Maga estivesse perseguindo seu ex-namorado, mas quase todas as vezes que ia na padoca o pai de Quinzinho comentava como sentia falta de Maga e como Joaquim não cuidava mais de suas obrigações como antes. Era óbvio onde estava o problema: ela era o xis da questão.

No entanto, a época não era muito propicia para o luto, e apesar da magrela querer ficar em casa gastando seu tempo a se lamentar ela precisava se dedicar aos estudos. O ENEM estava próximo, e se ela quisesse entrar em uma boa faculdade de Medicina precisava se dedicar. Havia se decidido a pouco pela profissão. Após minuciosa análise, Magali decidiu que poderia ajudar muito mais outras pessoas sendo médica do que sendo nutricionista – apesar de considerar com o mesmo respeito ambas as profissões. Outro motivo crucial para a decisão é que o curso escolhido proporcionava a ela uma das coisas que mais queria: ficar longe do Limoeiro.

Para a sorte de Maga o ENEM veio e passou rapidamente. No entanto, depois que os exames passaram ela começou a se sentir verdadeiramente mal por não ter falado com Cassio. Ele não aparecia nas aulas há semanas, e Maga tentava imaginar a verdadeira razão. Será que ele tinha vergonha? Ela também se sentia envergonhada e exposta, mas nem por isso deixara de ir para a escola. Estaria ele triste? Talvez. Mas ela também não achava que isso fosse motivo suficiente; naquele ano Maga passara por muitas tristezas, mas isso não a fez deixar os estudos.

A dúvida e a preocupação a deixaram inquieta, e por fim ela decidiu entrar em contato com a mãe do rapaz. Não queria ligar, para não parecer preocupada demais, lembrou-se então que Dona Lurdinha ia ao mercadinho toda terça feira depois do almoço. Magali decidiu que seria o melhor dia e horário para ir fazer suas próprias compras. Não demorou muito para encontrar Lurdinha, ela parecia alegre e cantarolava uma música enquanto comprava as verduras que Magali sabia serem as preferidas de Cassio.

— Oi, tia! Como a senhora está?

— Oi, Maga! Que saudades, minha menina. Está tão pálida, querida. Anda se alimentando bem?

— Estou sim, também senti falta da senhora.

Maga falava sério. Dona Lurdinha sempre fora mais que mãe de seu amigo, ela era uma mulher sempre boa e alegre que a tratava como uma filha. Sentia falta do tempo em que ia ver o Cascão e acabava passando a maior parte do tempo tendo conversas de meninas com Lurdes. Naquele momento, no entanto, ela estava realmente tentando manter uma conversa decente. O problema é que a única coisa em que conseguia pensar era no Cassio.

— Dona Lurdinha, o Cascão não está indo às aulas, fiquei preocupada. Ele está doente? – Maga tinha vontade de vomitar, nunca em sua vida parecera tão dissimulada.

— Ele não tem se sentido muito bem ultimamente – respondeu Lurdes, de forma enigmática. – Mas está ótimo de saúde, não se preocupe. Acho que meu menino só está se sentindo pressionado. Talvez ele fique mais à vontade agora que o ENEM passou. Acredita que ele acertou 130 questões? Antenor e eu estamos tão orgulhosos!

— Verdade? Isso é ótimo! – respondeu Maga, com toda sinceridade. – Fico feliz por ele.

Dona Lurdinha observou atentamente a expressão da moça ao dar aquela resposta. Ela tinha suas suspeitas sobre os sentimentos de Cássio, mas naquele momento as coisas ficaram perfeitamente claras. Conhecia seu filho e sabia que ele não agiria daquela forma, se isolando do mundo, por uma desilusão amorosa qualquer. Além do mais, Magali parecia realmente estar sofrendo tanto quanto ele. Ela não entendera o que exatamente havia acontecido entre os dois, mas era óbvio que precisavam se entender.

— Sabe, o Cássio tem passado muito tempo sozinho – sugeriu Dona Lurdes, torcendo para que a menina mordesse a isca. – Uma visita dos amigos pode fazer bem para ele. Depois que ele e o Cebolinha pararam de se falar, você e a Mônica são as pessoas mais próximas do meu filho.

Magali arquejou. Um soco no estômago teria doído menos.

— É claro... – gaguejou Magali. – Vou combinar com a Mônica. Eu... eu preciso ir agora. Muito obrigada, Dona Lurdinha. Manda um abraço pro Cas.

— Mando sim, meu bem. E você mande lembranças para os seus pais – ela tocou carinhosamente no rosto de Magali, aquele rostinho bonito e intrigante que ela conhecia desde pequenina. – Se cuide, querida.

***

Maga voltou praticamente correndo para casa. Estava assustada com o que acabara de fazer: prometera à Dona Lurdes que iria visitar Cássio junto com Mônica! Onde ela estava com a cabeça? Fazia tanto tempo que não via Cas, e não estava certa de que conseguiria encará-lo. A bem da verdade, de certa forma foi um alívio para ela quando ele se afastou da escola. Vê-lo todos os dias com aquele olhar triste a deixava louca de raiva, e despertava nela sentimentos que não era capaz de nomear.

Detestava ficar assim confusa. Aconteceu a mesma coisa quando Quim a deixou, e passar por aquilo duas vezes no mesmo ano era simplesmente demais para suportar. Queria não pensar, não sentir, não estar perto das pessoas que evocavam esses sentimentos... Talvez estivesse começando a compreender a decisão de Cas. Ainda achava errado interromper os estudos, mas entendia porque ele queria ficar longe de tudo e de todos.

Imediatamente Maga se lembrou do que funcionou para ela da primeira vez: a academia. Na época, o esporte lhe serviu como válvula de escape e dera à sua vida um pouco de sentido quando tudo desmoronou sobre sua cabeça. Poderia dar certo outra vez. Desde que ela conseguisse lidar com Luke... Nunca mais o vira desde então.

Magali respirou fundo e decidiu ignorar as dúvidas sobre Luke, lidaria com isso quando fosse necessário. Ela resgatou suas roupas de ginástica, os tênis e o equipamento de luta e se vestiu para o treino, parando diante do espelho para se examinar. Como Dona Lurdinha dissera, ela parecia pálida e abatida. Mas vestir suas antigas roupas a deixou confiante. Ela se sentiu forte e animada pela primeira vez em dias. Sabia que precisava descarregar toda a energia negativa que acumulara, superar sua dor e seguir em frente. Havia conseguido uma vez, era perfeitamente capaz de fazer isso de novo. Com estes pensamentos revigorantes, Magali saiu de casa e tomou o caminho que conhecia bem.

Entrar na academia pareceu a ela bastante familiar, como se tivesse voltado no tempo. Parte dela se sentia como a mesma Magali de antes, embora Cas a tivesse ferido de uma maneira muito mais profunda do que Quim jamais atingira... Droga, ela não deveria estar pensando em Cássio! “Se concentre, Maga”. Ela esquadrinhou a sala de treino, procurando por um rosto familiar. Logo encontrou os colegas de ringue, que a receberam com a maior animação. Vários deles, meninos e meninas, disseram que ainda estavam tentando bater o recorde dela e que sentiram sua falta. Magali se sentiu querida e parte daquele grupo, como há muito não se sentia com a turminha... Talvez este fosse o seu lugar agora. Tinha que admitir que a ideia era ótima. Não teria dificuldade alguma para se adaptar.

Nos primeiros dias de volta à velha rotina, Maga não viu Luke. Os colegas disseram que ele estava viajando, que tinha ido visitar um parente em algum lugar da Europa. Magali não entendeu bem a história, mas não fez questão de perguntar. Seguiu seu treino normalmente, como se nunca tivesse interrompido, e logo reconquistou seu posto entre os melhores lutadores. Quando Luke voltou, ficou surpreso e contente por reencontrá-la ali.

— Quem é vivo sempre aparece – foi a primeira coisa que ele disse quando a viu no saguão. Luke se aproximou dela e lhe deu um afetuoso abraço. – Sentimos sua falta por aqui.

— Eu também senti – admitiu Maga. – Estar aqui me faz bem.

— Sei como é. Fiquei fora por duas semanas e já estava quase louco. Seja bem-vinda de volta.

— Obrigada.

— A gente pode sair pra tomar um café quando seu treino acabar.

Magali revirou os olhos e riu:

— Luke, você sabe que...

— Eu sei, eu sei – ele ergueu as mãos em sinal de rendição. – Apenas bons amigos. Pelos velhos tempos.

— Tudo bem, então.

— Te vejo mais tarde – Luke sorriu para ela e a deixou em seguida.

O tempo passou rápido e logo Maga estava no carro de Luke, exatamente como antes. Foi um encontro incrível: Luke falou para ela sobre Barcelona, a cidade onde estivera, com tanta riqueza de detalhes que foi quase como se ela própria tivesse feito a viagem. Ele também revelou que a mãe, Viviane, estava de mudança para lá porque iria se casar.

— Luke, isso é demais! Mas e você?

— Vou ficar aqui por enquanto, tenho a academia para tocar. Quando encontrar um bom sócio poderei me mudar, ou me dividir entre o Brasil e a Europa, não decidi ainda. Mas estou tranquilo, tenho bastante tempo para planejar.

 Os dois seguiram conversando sobre amenidades, falaram da vida e evitaram tocar em assuntos sensíveis. Cavalheiro como sempre, Luke a deixou em casa. Assim que ela se despediu, ignorando completamente o fato de que ela estava suada, exausta e bagunçada por causa dos exercícios, ele disse:

— Você está ótima.

Maga sorriu, sem graça, e entrou em casa. Ela foi correndo se olhar no espelho para ter certeza que não estava ridícula, e percebeu que Luke tinha razão: o aspecto abatido que Dona Lurdes notara havia desaparecido. Ela estava bem. Não estava bonita, é claro, porque ninguém fica apresentável depois de se exercitar. Mas seu semblante estava completamente diferente, parecia até outra pessoa. Se continuasse assim, poderia até acreditar que a Magali que sofreu por amor fosse um mero fruto de sua imaginação.

— Filha, que bom que chegou! – falou a mãe de Magali, enquanto passava pelo corredor carregando um cesto de roupas. – Dona Lurdinha ligou e te mandou um abraço.

O coração da magrela se apertou. Ela não pretendera ignorar o pedido de Lurdes, mas é que estava tão feliz, tão leve, tão ela mesma... Não queria reviver os sentimentos que a afligiam. Ainda não.

— Manda outro pra ela, mãe – foi o que Maga respondeu.

***

O ano letivo finalmente estava chegando ao fim.

Maga não percebera o quão ansiosa estava pela última semana de aulas até que ela chegou: finalmente aquele tempo ruim em sua vida iria terminar de uma vez por todas. Um novo ano estava por vir, e depois de tudo o que passou ela se sentia uma nova Maga, pronta para enfrentar o que quer que fosse.

Mônica e ela estudaram juntas para as provas e combinaram de comemorar na sexta-feira. A turma iria dar uma festinha de despedida à noite, mas elas queriam sair só as duas antes disso. O quarteto inseparável sempre comemorava junto o fim das aulas, mas desta vez seriam apenas a dona da rua e a comilona.

— Maga, não acha que podemos convidar os meninos? – sugeriu Mônica quando as duas se encontraram na escola.

— Eu não sei... – respondeu a moça. – A mãe do Cascão falou comigo esses dias. Disse que ele estava se sentindo sozinho e pressionado, e por isso não está vindo às aulas. Será que ele vai fazer as provas?

— Espero que ele venha, porque senão vai tomar bomba. – Mônica olhou bem para a amiga, que parecia bastante insegura. – Olha, se estiver tudo bem pra você, eu não me importo de chamar o Cascão. Mas eu não quero ver o Cebolinha de jeito nenhum!

— Por quê? O DC tá com ciúmes de novo?

— Não é isso, DC é um amorzinho, ele não liga pra esse tipo de coisa... É que eu não tô falando com ele.

— Ai, é sério que vocês brigaram de novo, amiga? Você nunca consegue estar bem com os dois ao mesmo tempo, já reparou?

Mônica estava com a resposta na ponta da língua quando viu sobre o ombro de Magali que Cascão acabara de chegar. A magrela percebeu o olhar espantado da amiga e virou-se para ver o que Mô estava vendo. Seu coração palpitou, a boca ficou seca e mil borboletas bateram asas dentro de sua barriga assim que ela olhou para Cássio. Quanta saudade ela sentiu! Nem sabia que sentira a falta do sujinho até olhar para ele. Cas, no entanto, não deu a mínima para ela nem para Mônica. Cumprimentou os outros garotos, abraçou Maria com afeto, mas sem paixão, e só entrou na sala quando o sinal tocou.

O professor Licurgo pediu que todos guardassem os materiais e fossem logo ao banheiro, pois não permitiria saídas durante a prova. O motivo dessa regra estúpida ninguém entendeu, mas eles nunca entendiam as manias daquele professor, mesmo. Maga foi lavar o rosto, bebeu água e voltou para seu lugar, duas mesas à frente de Cássio. O que ela não daria para saber o que ele estava fazendo, pensando, sentindo... Por que tinha que se sentar tão longe?

Foi difícil se concentrar para fazer a prova, de modo que ela acabou sendo uma das últimas a terminar. Ela entregou o exame ao professor e voltou para sua mesa para pegar a mochila. Surpreendeu-se ao ver que Cas ainda estava lá. Olhou na direção dele, e o sujinho, sentindo o olhar, ergueu a cabeça timidamente. Faíscas saíram pelos olhos de ambos quando o castanho dos olhos de Cássio encontrou o brilho amarelo dos de Magali. Foi como se o tempo parasse, o universo sumisse em uma névoa e apenas os dois restassem ali. Nem ele, nem ela eram capazes de descrever o que estavam sentindo. Desconcertada, Maga pegou suas coisas e foi embora.

Chegando em casa, Magali abriu a mochila para verificar sua agenda quando percebeu um objeto que não estava lá antes: uma caixinha de veludo azul amarrada com fita de cetim. Mingau estava aos seus pés, ronronando impacientemente porque queria seu almoço.

— Espere um pouco, menino levado! – ela lhe disse, enquanto desfazia delicadamente o laço de fita dourado para revelar o conteúdo da caixa. Encontrou ali a mais bela pulseira que já vira, e também um bilhete que dizia: “Isto é seu. Era para ter sido desde o halloween. Estarei hoje no nosso lugar de sempre. Se cuida, Maga”.

Mesmo que o papel não estivesse assinado, ela saberia que era de Cas pela letra, pelo conteúdo e pela originalidade do presente. A joia era delicada, discreta e tinha pingentes com significado para Maga: um gato, uma melancia, um par de luvas de boxe e um livro. Apenas a turminha sabia o quanto ela amava ler, e somente Cas entendia e gostava daquele seu lado rebelde.

Doeria muito recusar aquele presente, mas era o certo a se fazer. Por que ela aceitaria algo tão caro se nem mesmo era a namorada dele? E por que ele decidira entregar só agora? E como ele tinha a audácia de marcar um encontro daquela maneira, sem nem olhar em seus olhos, sem nem mesmo perguntar se ela poderia ir! Até parece que ele contava com a presença dela, como se achasse que ela sairia correndo atrás dele, saudosa e apaixonada...

Bem, ela se sentia exatamente assim. Mas o fato de ele ter a petulância de desvendar o que se passava em seu coração a deixou com raiva, e mais certa ainda de que ficar com a pulseira era um erro. Estaria às onze da noite debaixo da amoreira para dizer as poucas e boas que há muito tempo guardara para dizer a ele, e para devolver aquele presente cretino. Ele não tinha o direito de reaparecer assim em sua vida e perturbá-la com presentes, declarações de amor, nem nada do tipo. Lutara muito para esquecê-lo, e esqueceria.

De uma vez por todas.


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