O Legado de Pontmerci escrita por Ana Barbieri


Capítulo 23
Epílogo


Notas iniciais do capítulo

Boa Leitura!!



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Epílogo

20 de Outubro de 1921

“Querida Mamãe,

Quando esta carta estiver em suas mãos, faltarão somente dois dias até a minha visita; ao menos, assim espero... por mais que os tempos sejam outros, me custa a acreditar na efetividade do nosso serviço postal. Muito embora John insista para que eu seja menos crítica com ele. Em todo caso, minha querida, escrevo contente por saber que logo irei vê-los, e também para dizer que, ao contrário do que foi acertado, John não poderá comparecer comigo desta vez. Segundo meu caro irmãozinho, assuntos urgentes o prendem na cidade. Nós duas sabemos o que isso quer dizer. A Universidade está mantendo-o encarcerado a pão e água em sua bendita biblioteca e esperando grandes feitos de nosso pequeno Lavoisier. Imagino que papai entenderá de pronto e que a senhora demonstrará certa revolta, mas perdoe-o. Sabe que ele sempre os visita quando pode... Mais até do que eu.

A minha desculpa, pelo contrário, é verdadeiramente repreensível. Abandoná-los por meses, devido a turnês de apresentações, muito embora a senhora saiba o quanto me deixam feliz. Nunca há tempo para uma pessoa se sentir solitária quando está mergulhada em seu trabalho; e, antes que tire conclusões, mamãezinha, não me sinto solitária. Apenas me permito, por um segundo, ser a filósofa que tio Mycroft certa vez pensou que eu seria. Querido tio Mycroft... Há poucos dias, o visitei no Clube Diógenes. A velha piada de sempre: "Que honra, ter celebridade tão ilustre como minha companhia para o chá". É tão estranho estar sempre em contato com ele, tia Mary e Tio Watson, mas não com vocês dois... sinto-me uma péssima filha... apesar de ter o ego inflado o suficiente para reiterar comigo mesma que não sou. Senti falta de tia Martha outro dia. Eu saía de Baker Street em direção ao teatro e uma senhora me abordou, querendo saber se eu era a famosa senhora Holmes... Tio Watson ainda tem tirado bastante proveito de suas histórias... É engraçado viver na casa, na verdade estranho, sem que estejamos todos juntos. De fato, creio que Sussex Downs seja a nossa nova Baker Street... com uma vista muito melhor!

Enfim, John não irá! Mas me manda dizer que os visitará na quinzena seguinte. Sim, também achei um intervalo muito extenso, contudo, ele está empenhado. E quase mata William com suas divagações e perguntas, querendo que ele se inspire no trabalho tanto quanto ele. Tia Mary gosta de brincar sobre os dois. Diz que são os novos Sherlock e John. Rimos muito disso na semana passada, na saída do teatro. Foi minha última personificação de Isolda. Papai teria adorado tanto quanto durante minha estreia. No entanto, acredito que nós duas concordamos que meu alter ego será, para sempre, Titânia, a rainha das fadas! Como rimos naquela noite! William praticamente molhou as calças com a ideia de sua prima querida recitando versos tão românticos para uma cabeça de burro! Bem... eu esperava adiar esse assunto para minha chegada, mas, meu tom já deve expor meus sentimentos. Pois sim, mamãe querida, cheguei ao meu auge e creio que esteja na hora de abandonar o teatro. Desde os dezessete sem fazer outra coisa e agora chego praticamente aos trinta pronta para outra aventura. Qual ela será, não me atilho em antecipar... No entanto, estou decidida! E espero encontrar apoio e, claro, seus questionamentos de sempre a respeito de meus motivos - ao que responderei o mais filosófica possível - sobre o assunto. Por fim, avise papai para preparar minha velha roupa de proteção. Pretendo passar longas horas no apiário. E estou levando presentes! Sim! Presentes! Nada de recusar-se a aceitá-los! Se eu posso pagar por um automóvel, posso presentear meus pais!

 

Sempre sua,

 

Violet

 

P.S: Sinto deixar estes detalhes por último, mas... bem, durante minha última visita ao tio Mycroft, ele me disse que recebera uma carta da França. Louis escreveu para avisar que vovó Josephine faleceu na última quinzena. Piadas à parte, isso me partiu muito o coração, ainda mais pelo olhar de tio Myckie quando me contou... mas ela viveu muito, não concorda? Então, devemos ficar contentes... ela não sofreu e, segundo os relatos de Louis, em seu rosto havia um último sorriso desafiador. Cai bem, não? Quase um material bom o suficiente para compor uma peça...”

 

Concluindo a leitura da carta, Anne olhou para Holmes. A poucos metros do local onde sua chaise ficava posicionada no jardim, trabalhando em seu apiário. Josephine falecida. Por alguma razão, mesmo que seu tempo juntas não houvesse sido longo, aquela notícia lhe atingira e provocara um misto de compaixão por Louis e compreensão – que logo se transformaria em felicidade melancólica – por lembrar-se da alma que finalmente descansaria, após tantos erros. Naquela noite, provavelmente escreveria a Mycroft. Além disso, Violet anunciava sua aposentadoria dos palcos como se seus pais fossem interpretá-la como uma grande perda.

Notadamente, Anne nunca se importara com o rumo que a carreira de seus filhos tomara. Mais ainda, sentia-se orgulhosa de sua pequena. As habilidades de seus progenitores havia se divido entre eles, tendo Violet herdado a grande capacidade musical e artística. Quando ela primeiramente viera com a ideia de que gostaria de tomar aulas de teatro, Sherlock passou uma gloriosa tarde de reminiscências acerca de seus próprios anos com um grupo na América. E Anne, a ouvi-la declamar os versos de Titânia em sua primeira peça, não teve dúvidas de que se sairia bem. Aquele mundo engoliu-a e transformou-a na mulher confiante e magnânima que toda Londres conhecia. Contudo, para estes que só possuíam o prazer de ouvi-la declamar e cantar nos palcos, ela era Violette Bergerac.

Já John não viria. Só o veriam na próxima quinzena, ou seja, teriam os dois irmãos na casa, juntos, por pelo menos quatro dias. Todavia, a convivência fora da propriedade de Sussex Downs deixava-a tranquila a respeito da calorosa camaradagem entre os gêmeos Holmes. Como sempre, Violet escrevia a respeito do trabalho do irmão com zombaria, mas Anne aprendera há muito que não passava de mera piada interna entre eles. Ela desgostava dos acadêmicos, por certa vez tentarem impedi-la de chegar até o dormitório de John em Cambrigde. “As idióticas futuras grandes mentes do país”, foram os exatos termos que utilizara.

— Carta de Violet. – disse Anne, quando Holmes se aproximou dela, estendendo-lhe o papel para que ele pegasse. – Ventos tortuosos vindos do leste. – brincou enquanto observava sua expressão durante a leitura.

— Quais águas a nossa jovem Sarah Bernhardt tentará cruzar agora? – retorquiu ele, olhando de soslaio para Anne, que deu de ombros. – Talvez a Universidade venha a sugar mais um de nossa prole... – sugeriu ele.

— Não será Cambrigde, contudo. – observou a senhora Holmes, risonha. – Imagino que Oxford servirá melhor a ela...

— Deveras... – murmurou Holmes, tornando a analisar o conteúdo da carta de sua abelhinha. O auge do outono tornava a paisagem dos jardins do chalé do casal Holmes uma grande pincelada alaranjada; e Sherlock, com suas vestes de apicultor, viera passando seus dias a colher os frutos finais de suas fiéis amigas antes que estas descansassem pelo inverno. Independente do que soasse pela carta de Violet, assim que ambos os gêmeos pisassem naquele chão, não retornariam à Londres até depois do ano novo. Tê-los só para eles, sem precisar dividi-los com o mundo; aquele pensamento alegrava o espírito do velho senhor Holmes. – Ela deveria ter avisado que faria sua última apresentação de Tristão e Isolda... teríamos apanhado condução até a cidade...

— Violet não se sai melhor com despedidas do que nós, meu querido... tenho certeza de que foi mais fácil para ela assim. Se a conheço bem, deve ter admitido apenas a ida de Mary para o teatro... – consolou Anne, colocando-se de pé, afagando os braços do marido com carinho. Holmes continuava a mirar a carta. – Sherlock, meu amor, durante mais de dez anos, nós não perdemos nenhuma peça! Fizesse chuva ou sol, neve ou granizo, difteria ou febre! – insistiu, nervosa.

— Sim, sim... eu só gostaria de...

— Tê-la visto cantar o Liebestod. – concluiu Anne sorrindo de lado. Ele assentiu.

— E, sinto muito por Josephine... – acrescentou rapidamente, realmente sentido.

— É como Violet disse... ela viveu muito... talvez tenha finalmente encontrado a paz que procurava... vou sentir falta de suas cartas. E escreverei para Mycroft esta noite. – disse cabisbaixa. Sherlock lançou-lhe um sorriso encorajador, levantando o véu de seu chapéu para beijar-lhe a testa.

†††

O grande carro vermelho de Violet subiu a colina até o chalé nos dois dias combinados. Andava com velocidade, soprando o lenço de sua dona a toda força contra o vento. Respirava profundamente, como não se permitia ao andar dentro da cidade. Afinal, Londres andava populosa demais. Ela nem poderia ousar correr àquela altura e, na maioria das vezes, sequer achava viável usar o carro. Contudo, amava-o como muitas de suas amigas amavam seus cãezinhos ou seus namorados. Ao menos, pensava Violet, ela possuía algo que realmente acompanhava o passo de seu coração.

Dentro do pequeno condado, buzinou para todos que gritavam seu nome pelo caminho e agora simplesmente aproveitava a subida. Usava seu melhor par de calças e uma das camisas adquiridas nos últimos anos da guerra. Sua mãe a esperava na entrada, correndo porta afora para vê-la saltar do banco da frente. Abraçaram-se longamente, enquanto a governanta, senhora Oirdale retirava suas bagagens do porta malas.

— Senhorita Violet, - chamou ela, interrompendo mãe e filha, - e este pacote? – inquiriu apontando para um enorme pacote no banco de trás da garota.

— Ah sim, Olívia... onde está Michael? – perguntou retirando o lenço da cabeça.

— Eu o mandei descer até a cidade, buscar algumas coisas para o jantar. – respondeu Anne, poupando Olívia.

— Oh bem, ótimo, e agora? – queixou-se Violet, pulando até o pacote. – Não posso deixar aqui fora, é o...

— Precisando de reforços? – indagou Holmes, surgindo ao lado da esposa.

— Papai! – exclamou a senhorita Holmes indo até ele.

— Minha abelhinha. – murmurou Sherlock, abraçando-a. – Então, ajuda?

— É pesado demais para o senhor sozinho... – contornou Violet.

— E para os três? – sugeriu Anne tomando a dianteira. Filha e pai trocaram olhares divertidos e puseram-se a ajudá-la. Conseguiram erguê-lo até a mesa da sala de jantar, logo à entrada. – O que é isso, Violet?

A menina era só sorrisos com seus cabelos na altura das bochechas.

— Meu presente. – disse indo até a valise que Olívia deixara sobre o sofá, como de costume. – Para o papai. – acrescentou retirando um disco preto dali. Holmes e Anne trocaram um olhar duvidoso. – Mamãe, por que não vai checar se Olívia precisa de ajuda...?

— Que jeito mais sutil e delicado de me pedir um momento a sós com seu pai. – troçou a senhora Holmes, saindo de queixo erguido.

Ambos riram e permaneceram em silêncio por um minuto. Violet parecia nervosa com alguma coisa, mas Sherlock não conseguia deduzir sobre exatamente o quê. Mirou-a aproximar-se do pacote e abri-lo, revelando uma engenhoca fascinante: um gramofone. Encarando-o, ela suspirou profundamente, tomando coragem.

— Vovó Josephine morreu. – começou cautelosamente.

— Sim... recebemos a carta... – anuiu Sherlock, ainda confuso.

— Hoje faz dezessete anos desde... desde que a conhecemos... – continuou, pisando em pedras, fazendo seu pai entender. Dezessete anos desde o caso de Madam de Pontmerci. Dezessete anos desde... o incidente.

— Entendo. – sussurrou Sherlock, levando as mãos para trás do corpo. Mais dezessete anos poderiam ter passado e ele ainda se envergonharia do ocorrido. No entanto, o olhar de sua abelhinha era determinado.

— Eu sinto muito por não ter convidado você e a mamãe para minha última apresentação... e sou Holmes o bastante para acreditar que isso possa tê-lo feito pensar que foi devido ao... incidente. A possibilidade me irritou muito, mas, não pelo que aconteceu ou com o senhor, mas, comigo. Sinto muito se... após os primeiros meses desde que resolvemos o caso e mesmo anos depois, ajo como se ainda... Eu não...Eu perdoei o senhor. – disse rapidamente, por fim. – Há muito tempo, mesmo que em voz alta tenha sido há apenas alguns cinco ou quatro anos... E não os convidei por que...

— Violet... – interpelou Sherlock, compassivo.

— Deixe-me terminar. – retrucou ela, decidida. – Não os convidei porque precisava estar sozinha. Tia Mary só me encontrou na saída, após a apresentação... Eu estava me despedindo de dez anos... em uma noite; o senhor levou até mais do que isso para se despedir... Só precisava ter o meu momento. O último como Violette Bergerac. – disse com um sorriso delicado. Igual ao de sua mãe. Não havia pesar ou remorso em sua voz. Ao que Holmes entendeu que ela realmente queria deixar o teatro para trás. O virar de uma página; a última de um livro que lhe mantivera viva durante a guerra, o deslanchar de sua carreira. Quando muitos espíritos estavam destruídos, o anseio de Violet em atuar e cantar cativava-os para que se mantivessem acesos.

Sherlock gostaria de dizer o quanto se orgulhava dela. Como sempre se orgulhara, desde que Anne lhe contou que estava grávida e já começara a imaginar como seria a sua garotinha. A mulher diante dele superara todas as suas expectativas. Ela era, afinal, uma Bergerac.

— Sei que lamenta muito não ter estado lá para me ouvir, então, fiz isso para o senhor e para a mamãe. – falou assim que ele assentiu com cabeça, reconhecendo o desejo dela. Posicionou o disco preto e a agulha por cima de sua superfície, girando a manivela. O vestíbulo que antes estivera em silêncio se acendeu com a voz de Violet cantando o Liebestod.

Holmes riu. Uma gargalhada alta frente a engenhosidade da menina, tomando-a nos braços para outro abraço caloroso, fazendo sua abelhinha chorar. Anne chegou a tempo de vê-la secar seus olhos com o lenço de Sherlock, sorrindo sabiamente... como se soubesse, ou houvesse escutado tudo. O que a filha não duvidava de que tivesse feito. Durante o almoço, analisou os fios grisalhos em seu cabelo e as marcas de expressão em seu rosto, bem como as rugas no canto dos olhos provenientes de seus sorrisos. Nunca seria capaz de imaginá-la como uma velha matrona tal qual fora Josephine de Pontmerci; e tudo graças a Nikolai.

“É como olhar um quadro antigo e ilustre. Você sabe que ele está sofrendo as intempéries do tempo, mas aparentemente ele continua o mesmo.” E assim era. O mesmo sorriso, a mesma risada, as mesmas reações e a mesma alma. Ad aeternum a Difficile et Charmant Jeune Fille.

 

 

THE END


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Notas finais do capítulo

Há de ser isso e nada mais. Chegamos ao fim de mais uma história da nossa eterna Anne Bergerac Holmes. É com grande pesar que digo: esta foi a última. Acho que conseguimos fechar a ideia de como seriam as vidas de Sherlock e Anne, de modo que concluímos um ciclo... É claro que a minha dor será diferente daquela de vocês, meus amados leitores, que têm feito desta uma jornada maravilhosa! Os Holmes sempre povoarão a minha mente. Talvez, vez ou outra, eu poste alguma one shot, mas, long-fics, esta foi a última. Por quanto tempo esse adeus vai durar? Eu não sei... Quem sabe algum dia, se vocês quiserem, eu surja com as aventuras de Violet, Nikolai e William? Por enquanto, porém, deverei afastar-me de Baker Street.

Obrigada por tudo! Cada leitor que mandou review, cada leitor fantasma, cada leitor que favoritou ou recomendou! O meu carinho é o mesmo por todos vocês! Obrigada por amarem meus personagens e as minhas histórias!! Obrigada pelo carinho e paciência!! E até a próxima... como sempre, nos vemos em Baker Street.



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