Somos programados para cair escrita por Luna


Capítulo 7
Ariana Martini


Notas iniciais do capítulo

Ana
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Rafaela
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Era estranho imaginar que eu não era a única sofredora do planeta. De fato não era uma das mais felizardas, mas me senti mal por Judite. Ela havia sido transferida para a oncologia uma hora depois de terminar o procedimento e não teve um segundo sequer para digerir o último dia que mudou sua vida.

Senti-me mal por Gabriel também. Era tão pequeno e sem chance alguma. De uma forma ou de outra aprendi a respeitar mais Lucca naqueles dez minutos em que ficamos parados olhando o berço vazio. Pela primeira vez em muito tempo pensei que talvez, e só talvez, ele não estivesse em seu juízo perfeito quando me deixou.

_ Como foi? – Ana perguntou no momento em que nos esbarramos no elevador. Lucca estava comigo, mas não havíamos combinado um encontro. Percebi que precisava tirar ele daquele lugar e o arrastei até minha sala. Peguei minhas coisas e então descemos. Minha prima olhou de um lado para o outro no cubículo um pouco surpresa, o garoto mais odiado da minha vida recostado na parede fria.

_ Estranho. – Respondi. Ana virou-se e quase começou a cochichar, mas expliquei com os olhos que deveria esperar. E assim ela fez.

Descemos em silêncio até o segundo andar. Tampouco nos falamos quando entramos na sala de reuniões. Lucca havia desistido de me perturbar, pelo menos por um tempo. Mesmo que quisesse muito a permanência da calmaria, eu o conhecia bem e sabia que era só questão de tempo até se tornar novamente irritante. Não me importei. Percebi que não eram as palavras dele que me afetavam agora.

Não escutei nada que o senhor grisalho recitou naquele palanque particular dele. Hanna havia se sentado ao meu lado e pensando bem, todos os internos ali pareciam bastante abalados. Preparamo-nos por tanto tempo para lidar com a vida que nos esquecemos de como lidar com a morte. Isso me preocupava de verdade. Aquele havia sido apenas o primeiro dia e meu astral já estava pisoteado.

_ O que foi aquilo? – Ana perguntou no momento em que deixamos os garotos na casa do riquinho.

_ Um bebê morreu lá na UTI. Eu estava passando e vi tudo. Lucca estava sentado no chão e eu achei que ele precisava conversar alguém. Foi só. – Sussurrei.

_ Ficou com o caso da garota com câncer não é?

_ Sim. – Afirmei apenas. Como ela estaria agora? Sentada na sala de acolhimento só com a amiga, uma agulha fincada no braço e o ventre oco? Talvez estivesse muito preocupada em salvar a própria vida para perceber o absurdo que havia feito. Tentei esquecer que ela não teria tempo para isso. No fim das contas, não teria um fim muito melhor que o do filho.

_ Sinto muito.

_ Eu também.

Eu estava mais forte agora. Poderia pensar em coisas sérias pelas quais havia passado sem chorar. Não me sentia uma idiota perdedora. De alguma forma todo aquele dia havia feito bem para mim. Sinceramente, agora eu já não me sentiria tão retardada perdoando Lucca. Já era um começo e eu fiquei feliz por estar superando tudo, por mais que o processo todo fosse levar tempo.

_ Alguns internos combinaram de sair esta noite. Não sei quem vai. Posso tentar fazer algumas ligações se quiser, sabe, para saber se o Martini vai estar lá. – Eu tive a impressão de que Ana tentara planejar bem como me daria a notícia, tentando evitar novos pensamentos ruins. Senti-me péssima. Não era gentil de a minha parte obrigar minha prima a pensar em como diria as coisas quando estava na minha companhia.

_ Não precisa. Eu vou. – Pisquei, deixando de lado algumas frustrações. – Que tal irmos à praia? – Questionei. Como morávamos no Rio sempre levávamos o equipamento no carro e eu precisava do mar agora. Com um pouco de sorte as ondas levariam consigo a parte triste do meu dia, e então poderia me divertir com os outros.

Eu havia me acostumado com os mergulhos. Agora já conseguia manter os olhos abertos e via a imensidão azul à minha frente. Era incrível como os corais vermelhos cortavam a água clara como flashes, ainda na parte rasa.

Acabei voltando para a areia com o cabelo todo desgrenhado, mas com certeza por uma boa causa. Ana me esperava com dois sorvetes na mão. Peguei o de morango, coloquei os óculos de sol e me deitei na areia, mesmo sem toalha. A praia não estava tão apinhada como de costume e agradeci por isso. Por mais que gostasse dos lugares cheios era irritante de verdade quando alguém mal intencionado tapava o sol. Respirei a brisa fresca. Seria com certeza o ponto alto do meu dia.

Chegamos em casa pingando água salgada e pinicando de areia. Corri ao meu quarto quando percebi que já estava escurecendo e quase trombei em todos os móveis graças às mudanças do dia da festa de iniciação. Eu havia me acostumado com meu quarto do outro jeito e minha cabeça quase havia sido decepada pela borda do espelho de corpo inteiro. Ri enquanto caminhava, agora mais cautelosa, para o banheiro. Já estava pensando em qual roupa usaria enquanto ensaboava meu corpo inteiro.

_ Aonde vamos? – Perguntei por uma fresta da porta do quarto ao lado. Ana abrira o guarda-roupa e ficara lá parada esperando alguma ajuda divina.

_ Uma boate do centro. – Explicou quando entrei e apontei para um vestido estampado. – É uma boa. – Tirou a peça do cabide.

_ Mitchell vai estar lá? – Ela corou. – Claro que sim. – Revirei os olhos.

_ Use o azul. – Mudou de assunto. Bufei e voltei ao meu quarto. Não era má ideia afinal.

Vesti-me rápido, plenamente ciente de que Ana já me esperava na sala. Joguei os saltos no banco de trás para que pudesse dirigir e liguei o GPS. Marquei o ponto de destino e acelerei na noite.

_ O que vai fazer se ele estiver lá? – Perguntou enquanto eu fazia uma curva e desviava de um buraco fundo.

_ O que eu poderia fazer? – Ergui a sobrancelha enquanto freava frente a um sinaleiro.

_ Eu não sei. Ficar com outro? – Seu rosto se pintou de vermelho, vingativo.

_ Credo, Ana. Muito adolescente. – Revirei os olhos enquanto minha prima gargalhava, a janela aberta. – Essas ruas estão cada vez piores. – Reclamei quando me desviei de um cone florescente. Girei o volante e entrei derrapando na rua da boate.

_ Tem ideia de quando seus pais vão se mudar? – Eles haviam embarcado na ideia de aposentadoria calma. Iriam se mudar para a Europa e agora estávamos procurando um apartamento menor.

_ Acho que em seis meses. Mas é bem melhor nos mudarmos antes. Quando acharmos algum lugar legal. – Suspirei. Tudo era muito caro no Rio de Janeiro e procurar um apartamento perto do hospital não era fácil.

_ Verdade. – Concordou enquanto tirava o cinto de segurança. Desliguei o motor e peguei o ticket do estacionamento. Era muito perigoso estacionar na rua. Caminhamos rapidamente até a entrada e pagamos o preço estipulado ao segurança. Procurei os rostos conhecidos pela pista de dança, mas estava quase convencida de que havíamos chegado primeiro apesar de toda a correria quando Ana apontou para um lado mais escuro e calmo da boate. Duas mesas grandes estavam amontoadas perto da parede e os internos haviam se acomodado ali.

_ Olá. – Sorri plenamente ciente de que Lucca estava no outro extremo. Hanna havia percebido nossa marra e como uma boa recém-amiga, guardou meu lugar bem longe dele. Ana sentara-se ao lado de Mitchell, que agora beijava o canto da boca dela e acariciava seus cabelos. Pedi refrigerante ao garçom e Bran bufou.

_ O que foi Maluca da Chuva? Com medo de perder a linha? – Ri.

_ Sou muito melhor nisso do que você, Muniz. – Revirei os olhos enquanto comia um dos salgadinhos. O loiro estava prestes a me desafiar, mas pareceu muito entretido em ver Ana beijando Mitchell ao seu lado.

_ Disso eu não sabia. – Reclamou. – Por que não me contam as coisas interessantes? Hoje mais cedo, quando pensei que Alana fosse me dizer alguma coisa legal, me pediu para ajudar a analisar algumas amostras de urina. Qual é o problema de vocês? – Bebeu o resto do seu copo de uma vez e quase engasgou.

_ Achou que ela fosse contar o que, Bran? – Lucca riu. – O fim da novela?

_ Ora, cale a boca. E falando nisso, - Completou depois de um tempo. – Louise vai focar com o Toddy? – Olhou para todas as garotas individualmente exceto para Ana que estava muito ocupada e não sabia do que estávamos falando.

_ Existe um Toddy na novela? – Bufei enquanto ele esperava por uma resposta. Martini começou a rir e eu quase pensei que ele fosse puxar assunto comigo. Por uma fração de segundo foi o que ele pretendia, mas pareceu perceber quem era eu e engoliu a frase. Meu refrigerante chegou e bebi agradecida, tendo finalmente uma desculpa para desviar o olhar do dele.

_ Então é isso? Vocês estão achando que eu vou ser o palhaço da turma?

_ Não, Bran. Não estamos mais no Ensino Médio. – Ri. – Obrigada. – Agradeci ao garçom. Conversamos por mais alguns minutos até que Caio, o plantonista da noite, recebeu uma ligação.

_ O que foi? – Bran perguntou quando ele se levantou rápido.

_ Acidente. Dois adultos e uma criança. Pediram para que viessem também. Sabem, para ver como funciona a emergência. – Explicou. Levantamo-nos a contragosto, pagamos as contas e corremos para o hospital. Demos graças a Deus que nenhum de nós tivesse bebido muito.

Pela segunda vez no dia vi as cores verdes desbotadas das paredes. Peguei o jaleco no porta-malas e entrei ainda colocando o crachá. Era muito cômico na verdade, ver dez pessoas emergindo na sala de emergência usando roupa social e sapatos de salto alto. A família em questão estava imobilizada em uma das camas mais afastadas, o homem inconsciente e a mulher a base de calmantes. Eu não entendia por que, mas alguma coisa fazia parecer que ela não me era estranha. Eu não sabia o que, mas foi o bastante para que me dirigisse a ela.

Minha espinha gelou antes de chegar à maca. Imobilizada a menos de dois metros de distância estava Virgínea Moraes, a mulher que havia adotado minha filha dois dias depois do nascimento. Ela pareceu me reconhecer também, mas estava tão sedada que não pôde falar coisa alguma.

Corri os olhos pelo galpão que era a emergência. Quatro, cinco, seis bebês berravam a todo vapor, mas pelo menos estavam vivos. Mas eu não vira até aquele momento uma menina de quatro anos com o rosto de Lucca Martini. Gelei. Ele também não poderia vê-la ou tudo iria para o espaço. Respirei fundo. Talvez a garota não estivesse envolvida no acidente, mas eram esperanças vazias: Caio dissera muito bem que os passageiros do carro eram dois adultos e uma criança.

Procurei por Ana. Ela estava ajudando um dos enfermeiros a entubar o homem que eu sabia ser o pai de criação da minha filha. Ela também. Apesar de fazer muito bem o seu trabalho, nunca esteve tão aterrorizada na vida, a não ser quando soube que eu estava grávida. Comunicamo-nos com o olhar. Percorremos a extensão da sala agora em pânico geral procurando por uma cama pequena que acomodava uma menininha que mais se parecia com uma réplica geral da mãe e do pai, que estavam inevitavelmente naquele mesmo lugar. Perto da parede havia um berço grande. Um pouco maior que o convencional, e muito pequeno para uma criança de seis anos. Ao seu redor, apinhavam-se vários médicos, entubando e avaliando seja lá quem fosse.

Não havia mais nenhuma criança de quatro anos ali. Eu já tinha certeza depois de vasculhar todo o galpão três vezes. Ana também parecia saber quem estava no berço, mas estava muito mais nervosa que eu. Eu ainda estava digerindo o choque de estar cara a cara com a minha filha depois de quatro anos, mas ela já parecia desfrutar de um estágio mais avançado, que eu comecei a entrar no momento em que o soro foi instalado ao lado da cama.

Ariana, como eu costumava chamar, estava mal de verdade. Vi de relance um dos enfermeiros se afastando com as mãos manchadas de sangue. Conectada a máquinas muito maiores que o seu corpinho frágil, estava muito pálida. Se não recebesse tanto apoio, eu desconfiaria de que já estivesse morta.

Era incrível como o tempo parecia parar a cada passo que eu dava em sua direção. Eu corria, mas não havia percebido. Eu não ouvia ninguém, só os saltos batendo no piso em câmera lenta e ecoando nos meus ouvidos.

Os enfermeiros pareciam ter desistido quando a parada cardíaca veio. Nem tentaram reanimá-la. Corri mais rápido, os sons mais altos à minha volta. Ana foi ao meu encontro e quando cheguei ao berço, sem conseguir controlar a velocidade e me debruçando sobre a criança moribunda, ela ligou os aparelhos que mediam os sinais vitais. Bipes infernais ecoaram pelo lugar, um som contínuo e desesperador dominando tudo. Comecei massagem cardíaca e graças a Deus as marcações reapareceram na tela. Mas a glória não duraria muito tempo mais: Ariana não ia aguentar sem minha ajuda e eu não poderia ficar ao lado de sua cama o dia todo.

_ Precisamos desfibrilar. – Lucca gritou enquanto retirava as grades do berço. Eu não vira o garoto chegando e tampouco sabia onde estava Ana. – Me deixa fazer um pouco. – Me afastou quando comecei a ficar cansada. Abri a blusa da garota e encostei o material frio no seu peito.

_ Afasta. – Gritei e ele imediatamente largou Ariana. Nada aconteceu.

_ De novo. – Sussurrou.

_ Afasta. – Minha voz tremeu. – Nada.

_ Vamos colocar nos aparelhos. Segundo andar. Agora.

Subi na maca e continuei fazendo massagem cardíaca enquanto Lucca Martini empurrava o berço até o elevador. Os segundos pareceram passar tão devagar que até minha respiração se tornou sufocante. Demos de cara com o corredor iluminado e alguns enfermeiros vieram em nosso encontro, mas seria perda de tempo parar agora. Lucca continuou nos empurrando até o fim do corredor. Ligou os aparelhos e conectou-os à criança do berço. Não precisei mais continuar a massagem, mas fiquei parada ali, em cima dela.

Lucca me pegou no colo e me sentou em uma das poltronas ao lado da cama. Eu não sabia se ele tinha percebido a semelhança entre os três naquele quarto, mas não me importava agora. Minha filha estava ligada a aparelhos e o pai dela estava ao meu lado sem saber que o era.

_ Preciso sair daqui. – Sussurrei. Lucca me olhava aturdido, mas eu não prestei atenção. Corri em direção ao elevador seguindo as setas luminosas e tentando esquecer a imagem horrível da minha filha presa a aparelhos em uma cama de hospital. Eu nunca pensei que a veria de novo, mas se fosse para acontecer, não deveria ser assim.

Passei pelas pessoas na emergência plenamente ciente de que Ana gritava meu nome, mas eu não queria parar. Não podia parar.

Entrei no carro desabalada, as lágrimas caindo sem interrupções. Girei a chave e saí da vaga derrapando. Segui pelas ruas iluminadas pelas estrelas dando graças a Deus que estivessem vazias. Queria ir à praia e confiava nos meus instintos para chegar lá, mas haviam muitos obstáculos no meio do caminho.

Acabei me esquecendo do cone no meio da rua e mais ninguém parecia saber o que estava acontecendo ali. Num dé-jà-vu horrendo, repeti o acidente de mais cedo, agora sozinha e encenando no lugar daquela família.


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