Somos programados para cair escrita por Luna


Capítulo 8
A carta




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/667173/chapter/8

Caro Lucca,

Há algum tempo venho torcendo para que não precisássemos ter essa conversa, mas com o coma prolongado da Rafaela, não vejo outra opção. Escrevo porque não conseguiria falar cara-a-cara, até porque essa não era a minha função. Mas há coisas das quais você ignora e não deve mais viver nessa felicidade fictícia.

Então aqui vai.

Eu já sabia. E acho que há algum tempo você também. Lúcia, a criança que vive agora a base de máquinas é filha adotiva daqueles que dizer ser seus pais biológicos. Ela é conhecida em nossa família por outro nome, mas essa é uma informação que você deve trocar com Rafa. Acontece, que como você mesmo constatou, Lúcia precisa de cirurgia cardíaca, o que pode reverter seu quadro crítico, mas para que seja realizada, é extremamente necessário que haja sangue reserva, que ela certamente precisará no processo. Seus pais adotivos não têm o mesmo tipo sanguíneo e não é muito fácil encontrar alguém disposto a doar tanto.

Então é muito importante que encontremos os pais biológicos da garota, pois há uma grande probabilidade de que uma das partes, pai ou mãe, tenha o mesmo tipo sanguíneo que ela.

Eu sei das suas acusações. Sei o motivo pelo qual tem tanto ódio da Rafaela, mas não é verdade. Talvez a história toda não seja totalmente heroica e sem altos e baixos, mas o final é o que importa, mas se você vai saber do principal, precisa entender começo, meio e fim.

Era uma tarde quente e Rafa estava na cama, se contorcendo de enjoo. Disse a ela para que tomasse algum remédio, mas ela não me ouviu. Disse que se suas suspeitas se confirmassem era melhor que não tomasse nada por ora. Mais tarde pensei que talvez em algum universo paralelo exista sim intuição materna, sexto sentido ou como queira chamar. Não importa. Eu estava preocupada, e ela também: era uma daquelas épocas de gripes loucas que matam em dias e ela não queria contar nada para ninguém. Então dois dias depois ela me disse que precisava ir à farmácia.

Você estava ligando o tempo todo querendo sair, mas ela sempre arranjava alguma desculpa. Mais tarde me disse que tinha medo de que a suposta gravidez estivesse estampada na testa dela. Vocês se viam tanto que eu não duvido de que você percebesse a preocupação que emanava da garota. Fomos à farmácia, então. Meus pais haviam saído com o carro e eu disse que esperássemos, mas Rafa estava pálida e não queria conversa: ela queria ir a pé, debaixo daquele sol dos infernos.

Eu disse a ela que era loucura e que deveríamos esperar, mas ela arrematou-me explicando que eu não precisava ir se não quisesse. Ela estava mal. Dava para ver no olhar dela. Então eu fui.

A primeira farmácia estava fechada. Claro, era feriado. Implorei para que me contasse o que estava acontecendo e ela estava tão sobrecarregada que acabou soltando tudo. Fiquei sabendo de sua suspeita sentada em um meio-fio imundo. Pela primeira vez a vi chorar. Era a primeira de muitas desde aquela tarde.

Então andamos mais. Acabamos encontrando uma boutique meio suspeita perto da periferia, mas era o que estava aberto, então entramos. Tinham alguns testes em uma prateleira enferrujada, mas como estavam lacrados, não havia problema algum. Escolhemos uma marca confiável e compramos dois deles.

Corremos até nossa casa e Rafa entrou no banheiro sem dar explicações para ninguém, mas estava tudo vazio. Nossos pais haviam saído e talvez tenha sido a melhor coisa que poderia acontecer em um momento daqueles. Os momentos de espera forma os piores desde a pré-história.

Sentamo-nos na beirada da cama e colocamos um despertador no celular dela. Então esperamos. E esperamos. Os minutos passavam tão devagar que eu quase achava que eram horas. Quando a coisa apitou corremos as duas para o banheiro, mas quando cheguei Rafaela já estava sentada no chão, olhando para o teste positivo. Abracei-a. Não havia muito o que fazer além disso.

“O que vai fazer agora?” perguntei.

“Vou ligar para ele.” sussurrou. Eu nunca me esqueci do tom de voz dela quando disse isso. Jorrava calma e confiança, mas eu sabia que ela não estava assim. Então ela ligou. Marcou um encontro para o mesmo dia e se arrumou o mais rápido que podia.

Você foi cruel. Era melhor que tivesse ido embora ao momento em que ela te contou, mas você a iludiu. Disse que estava preocupado, mas que amaria a criança tanto quanto a amava. Ela acreditou. E você ficou por mais uma semana. Rafa estava quase achando que você a pediria em casamento, mas não foi o que aconteceu. Era noite de Natal quando ela não te encontrou.

Rafaela entrou em pânico. Ela tinha dezessete e você tinha partido sem dar explicações. Ela começou a desviar as minhas perguntas e depois de uns cinco dias pareceu tão calma e decidida que eu me assustei. Entrei no seu quarto em um dia que estava na biblioteca decidida a encontrar o que ela estava me escondendo. Procurei a tarde toda, mas quando já estava quase desistindo deixei um dos seus livros da escola cair. Ele se abriu no meio e dali saiu um panfleto explicativo sobre garotas jovens grávidas e aborto.

Quando ela voltou a interroguei. Disse que não concordava com aquilo tudo, mas ela não me deu ouvidos. A ideia tinha lhe subido à cabeça e parecia muito convencida do que queria. Expliquei então que ela deveria fazer o que achava certo, mas deixei claro que se decidisse por continuar iria se arrepender pelo resto da vida.

Não me meti mais. Ela tinha que escolher sozinha, então deixei a história de lado.

Estava esperando por ela na festa de ano novo, mas seguindo o seu exemplo, me deixou plantada lá na portaria. Entrei em pânico de novo. Eu não queria pensar, mas tinha medo de que ela seguisse em frente por mais que tivesse aconselhado a fazer o contrário.

Era minha única pista, então dirigi mesmo sem carteira até a clínica de aborto. Estava deserta, exceto por uma garota frágil e chorosa sentada em um dos cantos, tão encolhida que parecia não querer se contaminar com as barbaridades do lugar.

Corri ao seu encontro ao mesmo tempo em que uma enfermeira suspeita chamava seu nome e entrava de novo no consultório, com um cigarro enfiado na boca.

“Vamos embora.” Sussurrei enquanto segurava sua mão. Ela não resistiu. Saiu correndo junto comigo, implorando desculpas a todo o custo.

Chegamos a tempo de ver os fogos, e eu soube que ela não deixaria aquela criança de lado outra vez.

Tudo correu bem durantes os oito meses que se seguiram. Nos últimos, ela teve algumas recaídas e chorava quase todos os dias. Tinha pesadelos e acordava chamando por você, mas era sempre eu que a acalmava. Ela te amava de verdade e eu suspeito que muito desse sentimento ainda está preso dentro dela.

Sentei-me ao seu lado na hora do parto. Foi normal. Ela não queria ter lembrança nenhuma do acontecido porque já estava decidida a colocar a criança na adoção. Ironicamente, Rafaela guarda as imagens de ultrassom até hoje e tirou várias fotos enquanto estava grávida, uma por mês. Estou enviando-as para você junto com essa carta porque de uns tempos para cá se mostrou muito preocupado com ela, sentado na cabeceira de sua cama no hospital.

O bebê foi entregue aos pais adotivos um dia depois do nascimento. Rafaela não o amamentou nenhuma vez, com medo de se sentir mais culpada. Eles vieram com um ursinho e balões grandes. Eram as mesmas pessoas que se acidentaram algumas semanas atrás. Levaram a garotinha embora enquanto Rafa olhava pela janelinha do quarto. Pela segunda vez a vi encolhida naquela cama, sem saber o que fazer. E eu também não sabia.

Nunca mais os vimos até aquela noite, mas minha prima os reconheceu. Tanto reconheceu que foi acidentada quando não aguentou a visão da filha nos aparelhos. O resto da história você já sabe.

Acontece que Rafa não está em condições de doar sangue. Mesmo que ela quisesse, o que eu sei que faria, eu não poderia simplesmente espetar uma agulha nela e retirar alguns litros de sangue enquanto está em coma. Mas você tem o mesmo tipo sanguíneo que Lúcia.

Pode ser um pedido desesperado, mas talvez você consiga recompensar todos os seus pecados se doar um pouco da sengue para a cirurgia. É muita informação de uma vez só. Eu sei, mas estou contando com você para salvar a vida da menina.

Ela tem os seus olhos. Talvez devesse levar isso em consideração.

Esperando que faça a coisa certa,

Ana.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Somos programados para cair" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.