Somos programados para cair escrita por Luna


Capítulo 6
Judite




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_ Caucasiana, vinte e nove anos. Grávida de dois meses e cinco dias, chegou ao hospital reclamando de fortes dores de cabeça e sonhos muito vívidos, quase como se fossem alucinações. A amiga que divide a casa disse que a garota não se lembrava de nada quando acordava e recobrava as lembranças depois de alguns minutos. No começo pensavam que a dor poderia ser algum sintoma relacionado à gravidez, mas ela não parou. Ela começou a tomar analgésicos e mesmo quando aumentou a dose, a dor não parou, porém o produto prejudicou o desenvolvimento normal do feto. – Téo leu a ficha, retirou os óculos, jogou-os sobre a mesa e levou os dedos às pálpebras. – Sugestões?

_ Fator externo? – Perguntei quando nenhum dos médicos pareceu pensar em algo. Olharam-me e Manuela me incentivou a continuar. – Talvez tenha passado por algum momento de pressão no início da gravidez. Explicaria as dores de cabeça e os sonhos. – Poderei. – A falta de sono pode ter prejudicado a memória, mas essa parte pode ser provocada por alguma influência cerebral. Mas acho mais provável que cansaço e excesso de afazeres tenham tensionado o sistema nervoso.

_ Faz sentido. Mas depois dos medicamentos não deveria ter persistido. – Valentina bebericou o café. – Situação do feto?

_ Permanente. Mas os pediatras têm esperanças de que os danos não sejam muitos. Uma ressonância seria o melhor, mas precisamos usar o mínimo possível de radiologia. A gravidez já é crítica. – Téo narrou. – Por isso, precisamos ter certeza de que faremos o mínimo de exames possível.

_ Exame de sangue? – Optei. – Muitas doenças prejudicam a irrigação cerebral. Pode explicar a falta de memória e as dores de cabeça. A maioria é detectada pelo sangue.

_ Ótimo. Rafaela faça os exames de sangue. Três ou quatro ampolas devem dar. Bruna vai com você. Manu e Val podem marcar a ressonância. Vou ver se descubro mais coisas com os pediatras.

Todas concordamos e saímos. Bruna seguiu-me até o elevador e juntas descemos ao segundo andar, onde além da sala de reuniões era também a enfermaria. A mulher era bonita e decididamente não parecia ter a idade que constava no laudo. A amiga, Lauren, sentava-se ao seu lado e levantou-se no momento em que entramos no quarto.

_ Olá, sou a doutra Allison. Essa é Cástter. – Apontei para Bruna. – Precisamos colher um pouco do seu sangue, senhora Louro.

_ É senhorita. – Afirmou. A garota parecia muito bem, exceto que repousara uma das mãos sobre a cabeça, quase como se estivesse acostumada com o movimento.

_ Sei. – Sorri para ela. Colhi o sangue enquanto Bruna fazia as perguntas.

_ Passou por algum tipo de trauma recente que possa ter te afetado psicologicamente? – Questionou.

_ Bem, sim. Meu namorado me deixou quando descobriu que estava grávida. – Olhei-a. não parecia verdade. Ela estava impassível demais e eu sabia por experiência própria que todo o fato era muito recente para que agisse dessa forma.

_ Tem certeza? – Ergui a sobrancelha. A amiga, Lauren, interveio.

_ Não foi exatamente assim, não é, Judite? – Suspirou timidamente. Ela quase parecia querer se fundir com o papel de parede floral. Judite não respondeu, apenas abriu e fechou a boca várias vezes até se sentir segura para falar.

_ É. Talvez eu tenha facilitado um pouco as coisas. – Corou.

_ Sabe Judite, não vamos poder ajudar você se não nos contar a verdade. – Bruna sentou-se na cama, gentil.

_ Bem... – Ela começou a suar. Os batimentos aceleraram e Lauren mirou a amiga.

_ Doutora. – Chamou-me. Acompanhei-a até a saída e deixei Bruna sentada na cama, tentando controlar o nervosismo da paciente.

_ Ela não tinha namorado, sabe. – A garota suspirou. Ela estalava os dedos e brincava com as mãos. Percebi que se sentia culpada por revelar o que acontecera de verdade. Lauren olhava o tempo todo para a parede de vidro que dava para o quarto, com medo de receber olhares acusadores.

_ Foi coisa de uma noite? – Ela negou. – Lauren, Judite foi estuprada? – Temi a resposta.

_ Sim. – Concordou. – Ela ficou triste de verdade, mas não pareceu deixar muitos danos físicos segundo o médico da emergência. não sabíamos da gravidez até que os enjoos começaram, mas as dores vieram depois. não acho que tenham relação com o acontecido.

_ É. Parece difícil que tenha. – Concordei. – Fizeram testes para DST’s?

_ Sim. Graças aos céus ela não tem nenhuma. Trouxe os exames. – Puxou um envelope da bolsa grande que trouxera. Agradeci e coloquei dentro da pasta que trazia com os dados de Judite.

_ Vamos fazer alguns exames. Será de grande valia. – Apontei os exames. – Enquanto isso tentaremos acalmá-la. Mandarei um psicólogo vê-la. – Afirmei. – Enquanto isso, não comente sobre o ocorrido, pode deixá-la nervosa. Mais do que já está, pelos menos.

Entramos na sala do sexto andar bastante abatidas. Aquilo não parecia psicológico, seja lá o que fosse. Pelo que nos relataram, os desconfortos surgiram um tempo depois que Judite havia descoberto a gravidez. Contamos a versão aos médicos e Valentina suspirou.

_ Estive pensando, crianças. – Era assim que a senhora nos chamava. – Um tumor pode ter acarretado tudo. a dor não despareceria com facilidade por mais que a mulher fizesse uso de medicamentos.

_ É uma opção, mas com certeza a pior de todas. – Téo segurou a mão da idosa, consolando-a. se Judite tem um tumor não poderá começar o tratamento porque está grávida. – Ponderou. – A quimioterapia afetaria ainda mais o feto e ele bloquearia a eficácia do medicamento.

_ Tem outra coisa. – Manuela batia a caneta na mesa. – Foi estupro. Estamos velados pela lei se a paciente decidir abortar. Ao que parece o feto já está prejudicado, e se for mesmo tumor, a vida dela não vai durar o resto do período gestacional sem o tratamento. – Concordei.

_ De qualquer modo a ressonância já está marcada para daqui dez minutos. – Valentina informou enquanto avaliava os testes clínicos contra DST’s.

_ Certo. Três pessoa devem acompanhá-la. Bruna, Valentina e eu? – Perguntou. – Vocês podem visitar a pediatria. Os casos não são mandados para cá até o fim do dia e se já tiver algum lá poderemos trabalhar mutuamente com os dois casos. E perguntem pelo feto. Ao que parece o caso era crítico e estão monitorando na UTI infantil, ainda dentro da mãe. Parece que tem outro interno lá.

_ É. – Respondi apenas isso. Eu não poderia ter tanto azar assim, mas já estava quase acostumada com os encontros nada revigorantes.

_ O que acha da ideia do aborto? – Manuela perguntou assim que entramos no elevador.

_ Não sei. Estamos prejudicando uma vida para salvar outra que talvez não dure muito. Nada justo. Por outro lado o feto já está prejudicado, mas se a mãe morrer no fim da gestação poderemos salvá-lo. Ao que parece vai viver uma vida quase normal. – Ponderei.

_ Mas foi estupro. – Suspirou. – Não gosto da ideia de sacrificar algum dos dois. Não é humanamente médico.

_ Não. – Concordei enquanto entrávamos na ala infantil. Ouvi o choro imediatamente. Lucca Martini estava curvado em uma das camas e trocava a frauda de um bebê que respirava por aparelhos. Parecia realmente querer fazer direito, mas obviamente não tinha prática nenhuma no assunto. Ele implorava aos sussurros para que o bebê do lado parasse de chorar e apesar de amador, quase achei fofo.

_ Já parou para pensar que ele está com fome? – Perguntei quando li na ficha que ele havia comido há quase duas horas. Lucca deixou o talco cair, mas apanhou-o imediatamente.

_ Sei. Vou dar comida, mas o que quer aqui, Allison? – Ele parecia às portas de me atacar. É, não parecia muito calmo ali.

_ Notícias do bebê da Judite. A garota com alucinações.

_ Está com o caso? – Ergueu as sobrancelhas. Concordei enquanto ajeitava uma menininha no berço que estava deitada sobre um travesseiro dobrado. –Mas não temos como saber quais serão os danos, na verdade. O desenvolvimento está mais lento que o normal, mas pode se recuperar.

_ Sabe que isso é um adesivo não é? – Perguntei enquanto Lucca tentava colar a frauda sem retirar a película protetora.

_ É claro que eu sei. – Imediatamente seguiu meu conselho. – E o que a mãe tem? – Perguntou. Procurei por Manuela mas ela estava na porta da ala conversando com um dos médicos que passava.

_ Não sabemos. Suspeitamos que tenha um tumor no cérebro. – Suspirei.

_ Então ela não vai poder fazer tratamento.

_ Não. – Concordei, sentindo meu rosto ficar verde. Por um segundo vi seu olhar recaindo sobre minhas bochechas e se preocupando, mas logo reinstalou os tubos no nariz da criança em seus braços e ocupou-se em arrumar a cama.

_ O que foi? – Perguntou quando já não pareceria interessado.

_ Foi estupro. – Sussurrei. – Se ela decidir pode fazer o tratamento e tirar o bebê. – Sussurrei. – A lei permitiria. E de qualquer forma, se o cérebro não se desenvolver, teria sido uma perda de tempo esperar. É uma chance? – Questionei. Ele parecia novamente absorto em pensamentos e ainda mais distante do que antes.

_ Bem, sim. Há um risco grande. Ela quer?

_ Não sei. Estão fazendo os exames, e se tiver um tumor lá, vamos perguntar.

_ Certo. – Ele se virou e continuou a cuidar das crianças, dando um copo de água a uma delas. Obviamente havia me dispensado então caminhei até a porta, mas não antes de avisá-lo.

_ Tem de mantê-los no colo depois de comer. Os bebês. Está quase sufocando aquele ali. – Apontei para o menininho de azul, com a boquinha aberta. Lucca correu até o berço e parecia querer me agradecer, mas eu já havia saído porta afora.

_ Positivo. – Bruna jogou o exame na mesa, ressentida. – Temos de falar com ela. – Sussurrou.

Acabamos indo todos até o quarto quase vazio. Lauren fora até a cantina comprar mais café e Judite estava sozinha no quarto, lendo um livro intitulado “Cuidado de bebês sem mistérios”, o que decididamente não facilitava as coisas. Téo, como chefe do grupo aproximou-se, retirou o exemplar de suas mãos e começou a falar.

Lauren chegou para o massacre um pouco depois. Correu quando viu a amiga chorando e colocou o copo descartável de qualquer jeito na mesinha perto da cama extra. Sentou-se ao lado da gestante, tremendo e a cada palavra do diagnóstico seus olhos enchiam-se mais de lágrimas, os dedos das duas entrelaçados com força. Esperei com a cabeça abaixada ao lado da porta enquanto Valentina mostrava as opções para a paciente. Vi de relance Lucca Martini espiando pela parede de vidro. Nossos olhos se encontraram e pela primeira vez compartilhávamos na mesma tristeza. Téo explicou a Judite que o bebê já estava bastante prejudicado e deu-lhe uma escolha.

_ Eu vou ser uma pessoa ruim? – Perguntou aos prantos enquanto Lauren a abraçava.

_ Isso depende. Como você vê? – Questionei pela primeira vez.

_ Minha família dizia que era errado. – Soluçou.

_ Se aceitar, então está salvando sua vida. Se não, então está seguindo seus princípios. Mas as duas coisas fazem parte de princípios, acho. Seus pais com certeza sempre ensinaram você a preservar sua vida.

_ Eu tenho alguma chance? Sabe, se fizer isso.

_ Sim e não. É muito relativo. Particularmente, acho que o bebê corre riscos nas duas opções. Se você escolher abortar, obviamente será fatal, mas se você escolher mantê-lo, pode ser que não consiga chegar ao final da gravidez.

_ Eu escolho a vida. – Sussurrou. – Escolho viver. – Gaguejou um pouco mais alto.

Saí da sala enquanto Manuela explicava como seria o procedimento. Eu não precisava escutar pela segunda vez. Lucca também não estava lá e agradeci por isso.

Vaguei sem rumo pelo hospital e por um tempo percebi que estava voltando ao sexto andar. Eu não parava de pensar que tudo aquilo seria inútil. Eu havia visto o exame e a garota não tinha chance alguma em minha opinião. O bebê também não. Não daria dois meses de vida a Judite se não começasse o tratamento, e mesmo seguindo-o, minhas expectativas não melhoravam muito.

O elevador parou no quarto andar sem minha autorização. Imaginei que alguém tivesse apertado o botão, mas resolveu descer pela escada. Estava quase voltando quando percebi que as crianças da UTI estavam chorando muito e que ninguém parecia fazer nada para confortá-las. Andei devagar até a parta e não estava de todo errada.

De fato, Lucca Martini estava sentado no chão com as mãos na cabeça e os olhos em um berço vazio.

_ Lucca? – Chamei da porta. Ele sabia que eu estava lá, mas não respondeu. Dessa vez não estava orgulhoso. Só não conseguia falar.

_ Ele morreu. O bebê dos tubos. – Sussurrou quando me sentei ao seu lado.

_ Sinto muito. – Minha voz tremeu.

_ O bebê da Judite vai morrer também, não vai?

_ Sim. Ele vai morrer. – Eu agora olhava o berço. O choro aumentara, mas eu também não estava fazendo nada para conter as crianças. A garota que pedira um copo de água mais cedo se levantou e caminhou até Lucca.

_ Tio, o Maurício não para de chorar. – Sussurrou agachando-se na sua frente. – Acho que ele teve um pesadelo.

Lucca sorriu e levou-a de volta para a cama. Amparou o bebê que causava a confusão e voltou para o meu lado. Eu não sabia se ele queria minha companhia ou se só precisava conversar com alguém.

_ Acha que ela vai ficar bem? Judite.

_ Não. Acho que ela não vai ficar bem. Tem vômito no seu jaleco. – Sussurrei quando ele abaixou a cabeça. Lucca sorriu levemente e voltou seu olhar para o berço vazio. Ele já não sorria mais. – Como se chamava?

_ Eu não sei. – Sussurrou enquanto levantava-se e retirava os lençóis. – Nunca me disseram o nome dele. Ninguém veio vê-lo o dia todo.

_ Talvez deva criar um nome para ele. Sabe? Só seu.

_ Gabriel. – Suspirou enquanto desligava as máquinas do berço, agora formando uma linha reta.

_ É um nome bonito. – Sussurrei, ainda sentada no chão.


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