Premonição Chronicles 3 escrita por PW, VinnieCamargo, Felipe Chemim, MV, superieronic, Jamie PineTree, PornScooby


Capítulo 18
Capítulo 18: Cabo do Medo


Notas iniciais do capítulo

Escrito por MV.



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Don't believe what they say

We're dead flies in the summertime

They leave us all behind

With duct tape scars on my honey!

They don't like who you are

You won't like where we'll go

Brother protect me now

With blood they wash in the money

 

You don't believe in God

I don't believe in luck

They don't believe in us

But I believe we're the enemy

You don't believe in God

I don't believe in luck

They don't believe in us

But I believe we're the enemy

(DESTROYA – My Chemical Romance)

 

Parte I - Cabo do Suplício

“Torne a mentira grande, simplifique-a, continue afirmando-a, e eventualmente todos acreditarão nela.”

Adolf Hitler

Os trovões ressoavam vindos do céu, totalmente coberto por nuvens negras que se misturavam com a escuridão noturna. Os pingos de chuva caíam sem parar, molhando o chão duro de concreto do Complexo.

Algumas árvores balançavam por conta da força do vento, que atingia uma velocidade considerável. A tempestade que atingia Cabo da Praga veio como uma surpresa para a cidade que já sofria há meses por conta do vírus mortal que atingira a cidade.

A madrugada caía, mas Amanda ainda permanecia acordada, ao contrário da maioria dos moradores da fábrica, que se abrigaram debaixo de diversos edifícios. Amanda permanecia escondida abaixo da escada que levava á torre da antiga indústria, o local que tinha se transformado em seu refúgio. A população do Complexo sobrevivia como podia á força do vírus. Curiosamente, o mesmo acabou não explodindo na região como acontecera com as favelas ao redor, mas nem por isso os habitantes deixaram de ficar preocupados, porque qualquer pessoa sã já tinha percebido com o que a cidade lidava.

Amanda olhava as gotas de chuva atingirem o concreto, enquanto pensava no que haviam acontecido a ela algumas semanas atrás. As imagens do túnel explodindo permaneciam vivas em sua mente, e se recusavam a sair da mesma. Existiam dias que Amanda acordava sobressaltada em meio a pesadelos com o acidente, em que ela, D e Suzana eram mortos pela parede flamejante. O sonho sempre acabava da mesma maneira: a parede atingindo Amanda em cheio.

No momento em que saiu do túnel, garantiu uma nova vida á garota. Apenas 16 anos carregados, agora teria a chance de chegar aos 17… Faltava apenas um mês para o esperado momento. Ela suspirou, sabendo que a partir daquele ano seria mais um dia como qualquer outro. Quem faria uma comemoração de aniversário em um ambiente tão duro como o Complexo?

Um barulho de carro cantando os pneus a retirou de seus devaneios. Amanda se aproximou da porta da caixa d’água a tempo de ver um Opala Preto invadindo a área do Complexo.

XXX

— Lola, você tá maluca? – Thiago respondeu diante do que a garota falou para ela. – Como você quer deixar as fazendas?

— Thiago, aqui não é seguro. Nos dias que estivemos aqui eu sofri mais ataques de infectados que na cidade durante todo esse tempo. E ainda aconteceu aquilo com a Diana...

— Mas são ataques isolados, Lola. – Thiago continuou. – Aqui continua sendo mais seguro. Eu não vou.

— Já imaginava que ia falar isso. – A loira respondeu visivelmente frustrada. – Nem sei por que vim falar isso.

— Lola, alguém mais vai com você?

— A Carla e o Diego, obviamente. Vamos sair á noite e iremos até a cidade. Uma hora e meia de caminhada até Baixa Praga, não é tão longe.

— Não é tão longe? Lola, você é maluca de sair agora á noite e andar até Cabo! E tem mais, como vocês vão sair daqui?

— Escondidos, é claro.

— Meu Deus… – Thiago levou as mãos à cabeça, passando preocupação.

— E eu preciso encontrar minha mãe, Thiago. – Lola terminou. – Ela ficou na zona urbana, preciso ver como ela está. Eu… Estou preocupada.

Quando Lola fora forçada a vir para as Fazendas, ela estava longe da mãe, na casa de Carla. E desde então, tornara-se incomunicável. O contato de quem estava nas Fazendas com o mundo exterior era péssimo e depois de alguns dias com a rede funcionando de forma terrível, o sinal finalmente caiu.

Era como se estivessem completamente desconectados do mundo, e Lola não tinha conseguido contatar a mãe de maneira nenhuma, principalmente depois que viu que ela não tinha ido para as Fazendas. A preocupação de Lorelai era genuína.

— Então vai, Lola. – Thiago disse, encerrando a conversa. – Boa sorte… Espero que consiga encontrar sua mãe.

XXX

As janelas de vidro eram lavadas pela chuva torrencial que resistia em cair. Muitas vezes a escuridão do quarto adaptado era iluminada pelos relâmpagos que caíam distantes, na região das fazendas, em que muitos dos habitantes de Cabo se encontravam.

Suzana observava a imensidão da ilha a partir da grandiosa janela, semelhante á janelas de um prédio empresarial, mas que era uma das principais salas do antigo edifício principal da indústria. Deitada em sua cama, observava enquanto a cidade era mergulhada na tempestade, perdida nos seus pensamentos.

Como um fator inevitável em relação á quarentena, o Sol e Estrelas tinha fechado as portas temporariamente. Mas Suzana ficara sabendo que aquele período tinha terminado e o bordel seria a primeira casa noturna a reabrir as portas. O asco dominava o seu ser, mas Suzana já tinha se decidido sobre o que fazer.

Então sentiu uma dor intensa embrulhar a sua barriga, proveniente de um estranho enjoo, e a moça não conseguiu conter e se levantou da cama, correndo pelo quarto até abrir a porta que conectava ao corredor. O mesmo permanecia em silêncio absoluto, exceto por uma luz acesa no fim do corredor, proveniente de uma sala.

Casper surgiu de tal sala, vestindo somente uma calça moletom acinzentada. O mesmo andava na direção de Suzana até parar, intrigado.

— Su, tudo bem?

Suzana começou a andar na direção da sala iluminada, com passo rápidos. Tentou ignorar Casper no meio do caminho, mas o mesmo segurou a sua mão quando tentou passar por ele.

— Oi? Eu tô falando com você.

— Me solta, Casper. Por favor. – Suzana disse resoluta. – Por favor.

— Como assim? Suzana, que merda tá acontecendo? – O rapaz perguntou novamente.

— Me solta, Casper. – Ela repetiu, enquanto sentia os cabelos castanhos caírem para trás rosto ao olhar para o rapaz.

Casper pareceu repensar a proposta, mas logo soltou a moça. Mas antes que ele pudesse falar qualquer coisa, a mesma correu na direção da sala. Casper se virou e observou a moça correndo rapidamente naquele sentido, ainda espantado com o que acontecera. Ouviu estranhos barulhos provenientes daquela sala, enquanto andava novamente para encontrar-se com Suzana. No meio do caminho, sentiu algo líquido sobre os seus pés. Ele se abaixou e passou a mão no piso do corredor obscurecido e viu que um estranho líquido negro deslizava sobre seus dedos.

Ele seguiu os passos até a sala, que revelara sendo um banheiro.

— Você quer mesmo fazer esse tal de Expurgo? – Suzana falou. A mulher estava ajoelhada na beira do vaso sanitário e exibia uma face cansada.

A mulher sentiu uma forte tontura e caiu no chão. Casper correu rapidamente e se ajoelhou para deixar que Suzana caísse sobre suas pernas.

— Caleb, você tem coragem? De fazer a atrocidade que vai fazer?

— Su… Não fale nada. Você não está bem, eu vou… – Casper tentou abraçar as pernas de Suzana para tentar levá-la ao quarto, quando sentiu o líquido escorrendo por suas mãos. Retirou a mão e percebeu que eram alguns filetes de sangue.

Quase como de imediato, Casper acabou soltando Suzana no chão e se afastando, olhando para o sangue que descia pelo seu braço. Pensar no Plaga Vírus era inevitável, mas logo suas suspeitas caírem por terra.

— Eu não fui infectada, Casper. – Ela disse, agora conseguindo se levantar. – Pode se aproximar de mim. Ou vai me tratar como um animal?

— Eu não te tratei como um animal, Su. Foi um ato sem pensar. – Ele respondeu. – Você acha que eu não tenho medo desse vírus?

— Eu também tenho Casper. Então, me responde: por quê? Porque você quer fazer isso que planeja?

— Isso não importa Su. – Ele respondeu. – Não agora. Como você está?

— Estarei melhor depois que desistir disso. Não vê que o Complexo está por um fio por causa disso? Casper, isso é loucura.

— Não é loucura quando se trata de algo maior, Suzana. Trata-se de reconhecerem e pagarem por cada um dos crimes que cometeram contra nós. Aqui se faz, aqui se paga.

— Como você pode acreditar nessa utopia, Casper? Isso nunca vai acontecer. O caos só vai reinar mais ainda nessa cidade.

— Me poupe Suzana. Me perdoa, mas não vai ser você que vai me impedir de fazer um mundo melhor nascer da porra desse cidade que ficou esquecida no meio do oceano. – Casper pigarreou. – Eu só quero ficar com você Suzana. Tudo isso é por você.

— Então por mim, esqueça-se disso. – Ela implorou mais uma vez, agora passando á frente de Casper, já no corredor.

— Algumas decisões não podem ser revertidas, Suzana. – Ele respondeu, com frieza na voz.

— Caleb, então faça isso pelo seu filho.

Casper olhou para os olhos castanhos e profundos de Suzana que confirmou com a cabeça o que ele tinha acabado de ouvir.

— Eu estou grávida, Casper. Você vai ser pai. – Ela disse, no meio das lágrimas. – Como eu vou explicar pro nosso filho que o pai dele fez o que vai fazer?

 

Parte II - Cabo da Tormenta

“Não tenho de pedir perdão a ninguém.”

Augusto Pinochet

Uma hora e meia depois.

Era madrugada, e Lola, Carla e Diego caminhavam pela estrada de terra que conectava a região urbana ao centro rural. Eles levavam algumas mochilas nas costas, mas mesmo assim conseguiram sair com êxito das Fazendas, através da mata que circundava o acampamento.

Felizmente, não encontraram nenhum infectado nas redondezas e assim que se distanciaram cerca de 2 km do acampamento, entraram na estrada.

— Achei incrível como não havia nenhum guarda. – Diego falou, quebrando o silêncio. – Pensei que seria mais difícil.

— Espero que esteja valendo a pena nós deixarmos as Fazendas. Não só pelo sinal do 3G. – Carla falou, fazendo Diego rolar os olhos.

— Se ao menos tivéssemos um veículo ou algo assim… – Ele disse.

— Vamos parar um pouco, por favor. – Lola disse, cansada.

— Lola, você que quis deixar a zona, agora não dá pra parar. Precisamos chegar em Cabo o mais rápido possível.

Neste momento, eles passavam ao lado de um grande descampado onde algumas vacas pastavam tranquilamente. Repentinamente, Lola ouviu um barulho de algo se rastejando pela terra e segurou um grito.

— O que foi isso? – Ela disse, lançando a luz de sua lanterna na direção do campo. Algumas vacas mugiram.

— Você está ouvindo coisas, Lola. Vamos. – Diego falou para Lola, e continuou a andar.

— Eu não ouvi, eu estou falando! – Lola falou. – Tinha algo vindo do campo.

— Deve ser a bruxa de Blair. – Carla falou, brincando. Lola lançou um olhar de ódio para Carla que parou no mesmo instante.

— Se eu falei que ouvi algo, é porque ouvi algo! – Lorelai ressaltou.

— Tudo bem Lola, você ouviu. Mas esse negócio já foi embora, fique tranquila. – Diego falou, continuando a caminhada. Lola se virou novamente na direção das vacas e uma das delas mugiu.

— Vaca maldita. – Ela disse, continuando a caminhada. Eles só não viram que um infectado os espreitava do campo, deitado no chão.

Andaram mais alguns metros até ouvir um trovão vindo do céu. Os três olharam para a escuridão da noite e viram algumas nuvens sobre eles. Bastou alguns minutos até uma chuva começar.

— Só me faltava essa! – Carla disse. – Digão, você tem algum guarda-chuva?

— E por que eu teria? – Diego disse, cobrindo sua cabeça com a mochila. Lola e Carla imitaram. – Caralho, vamos ter que achar um lugar pra ir.

— Ei! – Lola chamou atenção dos dois, ao ver um carro vindo na direção deles. As luzes dos faróis cortavam o breu noturno e logo o mesmo parou na frente dos três. O vidro abaixou lentamente e revelou ser um senhor de aproximadamente 60 anos, com as rugas do tempo expostas em seu rosto, e no banco do carona, uma mulher da mesma cidade esticou o pescoço para ver os jovens.

— Para onde estão indo os jovens?

Os três se entreolharam enquanto Lola respondeu pelos três:

— Pra zona urbana de Cabo.

— Vocês vão demorar muito pra chegar lá a pé, filhos. – A mulher respondeu. – É quase cinco horas a pé. Entrem no carro, vocês devem estar morrendo de frio com essa chuva.

— É, vocês passam a noite em casa e amanhã eu levo vocês para Cabo.

Diego e Carla se entreolharam, enquanto Lola fuzilou Diego com o olhar, como se dissesse: Cinco horas? Sério mesmo?

Bem que eu estava estranhando essa uma hora e meia a pé...

— Nós aceitamos. – Lola respondeu, já entrando na parte de trás do veículo sem qualquer receio. Carla e Diego a seguiram, um pouco receosos.

Pelo menos teriam um lugar para passar a noite.

XXX

Trilha sonora da cena:

[https://www.youtube.com/watch?v=n7OZBeVfgbs]

Um dia depois.

Amanda caminhava pelo Complexo naquela tarde que se anunciava. O sol brilhava sobre a ilha e o clima estava agradável, diferente dos dias anteriores.

Enquanto caminhava, seu pensamento era levado para lugares distantes, sua vida passada. Amanda tinha mudado tanto do ano que se passou para atualmente, e era inimaginável para a garota que chegaria a matar pessoas no ano passado.

Ela tinha sido obrigada a crescer para sobreviver. Se todos aqueles eventos não tivessem ocorrido, onde ela estaria agora?

Quando tá escuro
E ninguém te ouve
Quando chega a noite
E você pode chorar

Seria mais uma aluna de Ensino Médio, preparando-se para enfrentar os desafios do vestibular, enfrentando os desafios do crescimento. O seu visual, suas roupas, namorados, arranjar algum estágio… Poderia ser que não fosse assim, mas estes pensamentos sempre estariam permeando sua mente.

Mas não. Ela foi obrigada a abandonar tudo e todos. Não tinha parentes em Cabo da Praga e todas as pessoas que eram amigos de seus pais não quiseram acolher a menina, inclusive Maria Rita.

A senhora se tornou uma amiga muito próxima dos pais de Amanda, por frequentarem a mesma igreja. Porém Amanda não seguia qualquer religião, o que impedia a menina de ter maior contato com Rita. Mas todas as vezes que ela fora em sua casa parecera atenciosa e simpática. Uma máscara que caiu quando Amanda foi pedir ajuda para a mesma.

Há uma luz no túnel
Dos desesperados
Há um cais de porto
Pra quem precisa chegar

Foi quase enxotada da casa da senhora, sobre denúncias e maldições proferidas pela “santa” mulher. A única solução foi se abrigar no local conhecido como Complexo.

O Complexo começava a se tornar famoso na cidade inteira por se transformar em um loteamento clandestino de pessoas sem-teto. Tal como o emblemático Pinheirinho, o Complexo crescia desordenadamente e com próprias leis. Não somente isso.

Por se localizar ao lado de uma favela, se tornou um frequente ponto de drogas e prostituição, além de ser comandado por uma facção ligada ao PCC. Era uma guerra frequente a que ocorria ali, embora o governo de Cabo da Praga preferisse fechar os olhos.

Uma noite longa
Pra uma vida curta
Mas já não me importa
Basta poder te ajudar

Apesar de tudo isso, foi no Complexo que Amanda finalmente encontrou abrigo e pessoas que se importaram com ela. Suzana, a prostituta ferida pela vida acabou se aproximando bastante de Amanda e as duas compartilhavam um terrível histórico de vida. Ambas se tornaram órfãs de pai e mãe na adolescência e foram obrigadas a enfrentar o mundo de frente. Desconhecido também chamava a atenção de Amanda. O suposto doente era uma das pessoas mais conhecidas e misteriosas do Complexo e Amanda acabou por se aproximar dele também. Além disso, havia Matias. O estudante recluso podia ser um traficante, mas era uma pessoa gentil e bem-humorada. Era como se ele tivesse se tornado um traficante quase sem querer, principalmente por não fazer parte da parte suja do trabalho.

Aquela se tornara a sua nova família, e Amanda não estava pronta para abandoná-los, embora soubesse que o Complexo não duraria para sempre.

Eu tô na lanterna dos afogados
Eu tô te esperando
Vê se não vai demorar

XXX

Alguns minutos depois, Amanda continuava a caminhar pelo Complexo. No caminho, encontrara Matias, e ambos estavam conversando. E foi aí que Amanda descobriu sobre o ato que Casper estava para cometer naquela noite.

— O Casper é louco mesmo. Ele quer acabar com a cidade?

— Ai, Amanda. – Matias suspirou. – É complicado… Ele está com sede de poder, e diz que isso é pra nós. Mas é claro que não é.

— Você não conseguiu impedi-lo?

— Amanda, como eu vou impedir o Casper de fazer alguma coisa? Ele não tem medo de ninguém, somente de uma pessoa que ninguém sabe quem é.

— Matias, mas você é o único que pode deter o Casper.

— Isso é o que você acha Amanda. Isso é o que você acha.

— Amanda? – Uma voz veio de trás da garota. Ela e Matias se viraram e perceberam que estavam na área mais barra-pesada do Complexo e um rapaz vinha na direção deles. Seu rosto estava coberto por uma touca, mas Amanda reconhecia aquela voz.

— Você?

— Não pode ser… – A figura encapuzada respondeu.

— Espera um pouco, Matias. – Ela se afastou e se aproximou lentamente da figura, tendo quase total certeza de quem estava por trás da touca. Antes que a própria pessoa pudesse tirar a touca, ela o fez.

— Bart?

— Amanda? Isso é verdade? – Ele sorriu de forma afetada. Bart tinha olhos azuis e um rosto angelical, embora a personalidade nem sempre combinasse com a aparência. Cabelo castanho-escuro e levemente ondulado, magro, pele clara com as bochechas um pouco rosadas e uma altura média. – Eu não acredito.

— O que você está fazendo aqui, Bart?

— Amanda… Eu… Eu pensei que você estivesse… Morta. Nunca encontraram seu corpo.

— O quê? Do que está falando? – Amanda perguntou. – Aliás, o que está fazendo aqui?

Bartolomeu levou as mãos à cabeça e olhou para a jovem.

— Quando seus pais morreram… Todos acreditaram que você também estava morta. Eu também acreditei, aliás. Você nunca mais apareceu, nunca mais deu um sinal de vida… Deram você como desaparecida e depois, como morta. – o rapaz contou um pouco confuso e então encarou a garota, sério - Por que não me procurou?

— Bart, eu só queria esquecer.

— Esquecer do quê? Esquecer de quem? Por um acaso, você esqueceu de mim?

— Eu não pensei, eu não sabia o que fazer, eu falei…

— Amanda, você sabia que podia contar comigo. – Bartolomeu falou, já alterando o tom de voz. – Por que não foi atrás de mim, então?

Amanda manteve o silêncio diante do antigo namorado. Eles tinham terminado o namoro uma semana antes de acontecer o assassinato de seus pais porque o jovem começou a usar algumas drogas leves, que provavelmente ele estava comprando ali no complexo. Ironicamente, hoje me dia ela vive no meio desse mundo caótico do vício. Muitas vezes, até mesmo na noite sangrenta, Amanda tinha seu humor alterado por causa de Bart, que tentava retomar a relação, mas ela negava. Infelizmente, a garota às vezes redirecionava sua raiva em outras pessoas, como seu próprio pai, sem ter a intenção. Ainda retomando o passado, sabia que se tivesse procurado Bartolomeu, ele tinha dado abrigo para a garota. Mas por que então não o procurou?

— Eu não sei responder. Foi tudo tão rápido que… Este Complexo, o vírus… Tudo está um caos e… - Amanda falava tentando achar alguma saída para seu próprio labirinto mental.

— Toma. – Bartolomeu interrompeu, entregando um papel para Amanda. – Nunca se esqueça que pode contar com pessoas ao seu redor, Amanda. Não se isole, como da última vez. Talvez a gente ainda se veja por aqui, se você conseguir saber o que está fazendo da sua vida.

Bart deixou o papel com Amanda e se virou, deixando a garota observar o jovem se afastar cada vez mais dela, sentindo a sua frustração de longe. Virou o papel e viu que se tratava de uma foto. A garota lembrou-se instantaneamente do dia em que tirara tal foto, foi cerca de alguns dias antes de terminarem o namoro e Bartolomeu e Amanda apareciam abraçados, mal sabendo o que isso sucederia nas semanas seguintes.

XXX

(Flashback on)

Amanda estava relaxada. Com toda a pressão pré-vestibulares e tudo mais, sentia-se no direito de poder curtir uma festa com amigos, ao melhor estilo americano. Rebeca, uma garota com uma pegada rockeira, mas super popular, era a anfitriã. Seus pais haviam viajado para o interior, na chácara da família, e a garota usou a desculpa que estava atolada de trabalhos e que precisava estudar.

 

Sandy, sai de cima do lustre! – a garota gritou, tentando equilibrar cinco copos em uma só mão, enquanto apontava para uma garota loira, que estava pendurada no teto – Sério, gente, tipo assim, não quebrem os vasos de porcelana indiana da minha mãe, tá legal?

 

As lâmpadas da casa foram trocadas para dar um clima mais festivo e colorido. A sala, por exemplo, estava totalmente com um tom arroxeado, enquanto a cozinha permanecia verde. Uma música alta tocava, ecoando por toda a casa de dois andares. Algumas paredes estavam enfeitadas com piscas-piscas natalinos e desenhos de casas ou bichinhos. Ursinhos de pelúcia estavam espalhados na cama do quarto de hóspedes, que estava enfeitado com cortinas rosas e um pouco transparentes. Rebeca chamava aquele quarto de “o ninho dos casais”.

 

Amanda permanecia parada em uma parte que não estava colorida, esperando a volta de seu namorado Bartolomeu, que foi buscar algumas bebidas. A negra mantinha seus cabelos cacheados e volumosos soltos e vestia uma calça jeans com lavagem clara, enquanto usava uma regata azul-marinho. Havia emprestado também uma jaqueta colorida de uma de suas amigas, porque achou estilosa. As cores se dividiam no tronco entre azul, verde e preto, enquanto as mangas eram divididas entre amarelo, laranja e vermelho.

 

A filha do diretor está rodando na piscina e ameaça tirar a roupa. – Bartolomeu informou, com um riso infantil no rosto, enquanto trazia dois copos de bebida em suas mãos.

 

O garoto era quase dois anos mais velho que Amanda, embora ainda tivesse traços infantis em seu rosto. Vestia uma calça jean skinny preta, que combinava com a camiseta, também preta. Uma jaqueta estilo colegial branca, com alguns detalhes escuros, completava a vestimenta do rapaz, que ofereceu um copo à namorada, que aceitou de bom grado.

 

E sua irmã, como está? – Amanda perguntou, bebericando um pouco da tequila que estava dentro de seu copo.

 

A Louise? Você sabe, crescendo. Parece uma mocinha. – Bart respondeu, desviando o olhar, enquanto ria.

 

Amanda riu também e deu um leve tapa no ombro do namorado.

 

Você entendeu o que eu quis dizer!

 

Eu sei. – Bart riu – A pequena bebê da casa está ótima. Mas ótima de verdade mesmo, é a sua boca.

 

Com o braço livre, Bartolomeu contornou a cintura da garota e a puxou para si. Os lábios se encontraram e selaram um beijo doce entre os dois.

 

Muito lindo os dois pombinhos! – Rebeca interrompeu, chamando a atenção dos dois – Posem para a foto!

 

Rebeca apontou uma câmera fotográfica polaroid para o casal, que largaram os copos em uma mesa por perto e posaram para a colega. Bart envolveu Amanda, contornando as costas dela com seus braços, enquanto ela envolveu a cintura dele. Bartolomeu costumava abraçar a namorada desse jeito e era muito mais que um jeito dominador, como se mostrasse que eles eram um casal. Era um gesto protetor.

E Amanda o amava por isso.

 

Digam “xis”! – Rebeca pediu e disparou.

 

Em poucos segundos, um papel foi impresso da máquina fotográfica e a rockeira entregou para o casal, que ainda sorriam abraçados.

 

Parte III - Cabo do Desespero

“O que é meu é meu, o que é vosso é negociável.”

Josef Stalin

Meia hora depois.

Heloisa caminhava em direção á torre da caixa d’água do Complexo, sabendo que iria encontrar a pessoa que buscava ali. A porta que dava acesso a tal estava entreaberta e se surpreendeu com a pessoa que estava na entrada.

— Matias?

O rapaz loiro se virou e encarou a negra com seus olhos cinzento-claros, e arrumou os óculos, exibindo certo olhar de surpresa.

— Hã. Oi, Heloisa.

— Matias, é estranho encontrar você por aqui.

— Eu estava tentando chamar a Amanda. – Ele disse, desajeitado. – Ela não quer falar com ninguém.

— Ora, é exatamente quem estou procurando. Aconteceu algo?

— Não, não, tudo tranquilo. Depois falo com ela. – O garoto saiu um pouco apressado da área e Heloisa olhou para o mesmo, extremamente intrigada. Não era normal Matias sair do seu laboratório e mais anormal ainda ele procurar Amanda. Era o que Heloisa achava.

— Amanda? – A negra chamou a menina, sem sucesso. Mas como ela não estaria ali? Viu a mesma entrando na torre.

Deduziu que Amanda deveria estar no topo da torre e começou a subir as escadas de ferro até o topo, evitando olhar para o chão. O lugar estava bastante deteriorado pela ferrugem e não demoraria muito pra algum daqueles degraus caírem. Além disso, ali parecia o lugar perfeito para alguém pegar tétano.

Chegou rapidamente ao topo e encontrou Amanda na beira da torre, sentada, observando a cidade que se erguia a sua frente. Parecia segurar algo entre os dedos.

— Amanda?

A menina se virou na direção da negra e então respondeu á Heloisa de forma estranha. Parecia que Amanda estava chorando ou algo assim.

— Oi Heloisa. Tudo bem?

— Tudo ótimo, na medida do possível. – Ela disse se aproximando da menina.

— Cuidado com a beira! – Amanda gritou, se afastando também do limite da torre.

— Fique calma, Amanda. Eu já estou conseguindo me virar por aqui. – Ela disse. – Então, eu precisava falar algo… No mínimo urgente com você.

— Vamos lá então. Desembucha. – Amanda fez um gesto indicando á Heloisa que poderia continuar.

— Amanda… Você está feliz vivendo aqui no Complexo? – Heloisa suspirou. – Não sente vontade de possuir algo mais?

— Heloisa, eu já disse. – Amanda falou impaciente. – Aqui é minha casa. Como posso abandonar o local que me acolheu?

— Amanda, um dia isso irá acontecer. Mais cedo ou mais tarde… E eu quero que seja de uma forma rápida. Aqui não é lugar para meninas tão vivazes como você. Nunca pensou em algo maior?

— Ter algum sonho? Pra que? Sonhos não se realizam. – Ela disse, com frieza na voz. Mas Heloisa sabia que isso era apenas uma proteção da garota, principalmente com o baque que tivera no ano anterior.

— Quem disse? Sonhos podem sim se realizar. Você apenas precisa correr atrás deles… Eles estão ao nosso alcance, basta apenas nos agarrarmos a toda força e batalhar pra conseguir.

— E quando se corre tanto que você se cansa? E o sonho continua distante?

— Não mais, Amanda. Vou dizer onde quero chegar. – Heloisa suspirou, e depois abriu um sorriso. – Eu quero cuidar dos necessitados desse Complexo, a começar pelo D e por você. Você tem algo diferente dentro de si.

— Nunca percebi isso. – Ela respondeu novamente se abrigando na sua zona de proteção.

— Amanda, assim que essa quarentena acabar… Eu quero te adotar.

— O que? – Ela se virou, chocada com o que acabara de escutar de Heloisa. Amanda mantinha o olhar fixo em Heloisa, mas a negra não conseguia absorver quais emoções Amanda sentia. Na verdade, nem Amanda saberia explicar o sentimento. Um misto de esperança que brotava, um amor esquisito, uma estranha raiva, coragem de fazer diferente e conseguir uma família. Desde o assassinato de seus pais, isso tinha sido endurecido no íntimo da menina, mas Heloisa não só quebrara essa barreira de pedra. Ela aquecera novamente esses estranhos sentimentos que só uma família poderia trazer.

— Espero pela sua resposta. Não vou te levar se não quiser. – A negra sorriu. – Assim que tiver certeza dela, me procure. Siga o seu coração.

Heloisa então desapareceu do campo de visão de Amanda, descendo as escadas da torre. Mas a menina ainda olhava estática para o ponto onde Heloisa estivera, ainda tentando digerir todas as sensações confusas que sentia.

XXX

Casper entrou no quarto que pertencia que Suzana e ele compartilhavam a passos lentos. O tal do quarto tinha sido arrumado em uma antiga sala do prédio central e não escondia que um dia fora uma sala de escritórios. Mas ele conseguira adaptar tudo para realmente se assemelhar mais a um quarto normal.

Deitada na cama, Suzana parecia dormir profundamente. Haviam dois copos de água sobre a cômoda idênticos, um deles completamente tomado. No seu interior, o rapaz não conseguiu deixar se sentir um alívio estranho.

O rapaz tinha colocado sonífero em um dos copos, sabendo que Suzana provavelmente descansaria aquela tarde. Conseguiu incitar que a mulher tomasse o conteúdo do copo, junto com a água, e depois descansasse. Provavelmente fora isso que tinha acontecido, e Casper se sentia bem.

Suzana estaria a salvo de qualquer coisa que fizesse durante o Expurgo. Ela e seu filho que a moça carregava no seu ventre. Aproximou-se lentamente dela e olhou para a mesma, observando a sua beleza estonteante, machucada por anos fazendo coisas que nunca gostou, tudo para conseguir o alimento de cada dia.

Abaixou-se e passou a mão sobre a barriga da moça, sorrindo. Casper sentia algo estranho brotar dentro de si, algo que ele não sentia á anos. Um estranho amor… Pelo o que seria o seu filho ou filha.

— O papai tá aqui. – Ele disse, mantendo um sorriso bobo no seu rosto. Ficou mais alguns minutos ali, apenas acariciando a barriga da moça quando decidiu deixar a sala. Tinha trabalho a fazer.

Ele só não percebeu que Suzana não tinha tomado o líquido com o tal sonífero. A moça abriu os olhos, ainda com a fala de Casper presa em sua mente. No fundo, ela sentia que o rapaz ainda tinha alguma esperança.

Mas não poderia ficar ali parada. Suzana tinha combinado junto de Amanda que iria naquele início de noite até o Sol e Estrelas encerrar qualquer contrato que tinham feito com ela. Interromperia a vida de prostituta, principalmente porque não conseguiria continuar com tal vida carregando uma vida dentro de si. Amanda iria junto com a jovem para acompanhá-la, embora ao contrário de Suzana, não tinha esperança qualquer em Casper e dizia que ele seria um péssimo pai.

Ela suspirou e se levantou da cama, pronta para sair. Avisara Casper mais cedo que tinha que resolver tais questões no Sol e Estrelas e tinha certeza que voltaria á tenpo para o Complexo, sem ser afetada pelo Expurgo. Além disso, descobrira que a vida dos moradores do Complexo deveria ser preservada, ou seja, ela acreditava que não corria perigo. E se corria, seria mínimo. A reunião no Sol e Estrelas não deveria demorar.

XXX

Renan encarava seu reflexo no vidro polido e liso da janela do corredor, na casa de Valentim. O moreno estava ali há apenas alguns dias, e sentia-se incomodado. Como se já não bastasse ocupar Ísis o bastante com sua presença, agora atrapalhava o namorado dela.

O moreno refletia sobre os últimos acontecimentos. A casa de Ísis estava destruída. Parece que após os dois saírem de lá, os infectados quebraram tudo que podia, reviraram móveis e destruíram o máximo que conseguiram. As portas foram arrancadas e as janelas quebradas, ou seja: Renan e Ísis ficariam na casa do ruivo mais do que pensavam, para a infelicidade do primeiro.

Depois que se instalaram na casa de Valentim, Renan ligou para Demétrio, para saber das últimas notícias. Primeiro ficou feliz por saber que Thiago havia sido salvo – embora ele ainda se sentisse inútil por não conseguir ajudar em nada -, porém, depois acabou se abatendo ao saber que mais uma moça, chamada Diana, foi levada pelo abraço fúnebre da morte.

O homem arrumou a jaqueta preta sobre sua camiseta branca com gola “V”, que combinavam com a calça jeans de lavagem escura, e passou a mão sobre seu queixo, sentindo a barba que já crescia novamente. As peças de roupa foram emprestadas do guarda-roupa de Valentim, mais um fator que Renan odiava. Não se tratava de não gostar do rapaz ou até sentir ciúmes, mas não gostava de sustentar sentimento de dependência – e já fazia muito isso antes, na casa de Ísis.

Saiu de perto da janela e andou pelo corredor até chegar no topo da escada, que descia em formato de caracol até o hall de entrada. A casa de Valentim possuía dois andares e um sótão, onde guardava coisas velhas, e tinha um ar de classe alta. As paredes eram brancas, com alguns detalhes da cor bege. O chão, sempre brilhante e recém-lustrado, mesmo que Renan não viu ninguém fazer essa tarefa, enquanto esteve ali.

Passou pelo hall e pela sala de jantar, guiando-se por um corredor até os fundos da casa, chegando a cozinha. O cheiro de comida sendo preparada adentrou as narinas de Renan, provocando um rápido barulho em seu estômago, sinalizando sua fome. Este cômodo da casa, assim como todos os outros, era bastante espaçoso. Azulejos brancos de mármore revestiam o chão e as paredes. Alguns balcões ocupavam os cantos, dividindo o espaço com um fogão, uma geladeira, uma mesa de madeira e uma pia.

Valentim, com um avental amarrado ao corpo, verificava alguns bifes dentro de uma panela, ao mesmo tempo que dava uma olhada em uma panela de arroz e outra com macarrão. Ísis permanecia com uma faca firme em sua mão, perto da mesa, enquanto picava alguns legumes para finalizar uma salada.

— Oi, pessoal. – Renan disse, acenando com a mão direita, permanecendo perto da passagem da porta – O cheirinho está ótimo.

— Ah, oi, Renan! – Ísis respondeu, parando de cortar os legumes por um momento, mas logo voltou.

Valentim remexeu os bifes por mais alguns segundos, então encarou Renan com seus olhos claros e sorriu, simpático.

— Obrigado. – agradeceu ao elogio – Aprendi alguns truques com várias empregadas. Uma delas, era minha mãe. As outras, suas amigas.

Nos poucos dias em que se hospedou ali e nas raras conversas, sempre formais, com Valentim, Renan soube um pouco sobre sua história. Sem pai, foi criado sempre pela mãe, que já tinha uma idade um tanto quanto “avançada” e trabalhava como empregada. Como não tinha com quem ficar, sempre acompanhava a mulher em seu trabalho, vivendo às escondidas em casas chiques e nobres, sempre sonhando em ter a sua – e conseguiu, após se tornar bem-sucedido no ramo de engenharia. Se mudou há pouco tempo, e inclusive diversas caixas estavam abandonadas no sótão, com alguns de seus pertences.

Distraído em seus próprios pensamentos, Renan demorou a perceber que Ísis o chamava.

— Renan? Renan? Você gosta de vinho? – Ísis perguntou, apontando para uma garrafa na mesa.

— Oh, ah, claro… Gosto sim. – Renan afirmou.

— Só falta acharmos o abridor… - Valentim comentou baixinho.

— Eu já disse que eu não sei onde coloquei! – Ísis devolveu, sorrindo.

— Pra ser mais exato… - Valentim começou e então parou por alguns segundos, para desligar algumas bocas do fogão - …Eu não me lembro de ter tomado vinho desde que me mudei. Acho que está lá no sótão.

— Querem que eu vá buscar? – Renan perguntou, apontando com o polegar para trás.

— Não! – Ísis parou de cortar os legumes – Pode deixar que eu vou, não se incomode.

— Incômodo nenhum. Você tá ocupada cortando legumes e o Valentim tá terminando a janta, eu vou lá, é rapidinho. – Renan argumentou, já saindo da cozinha.

Renan guiou-se pelo mesmo caminho, subindo a cada dois degraus da escada-caracol. Tomou rumo por um lado do corredor, passando pelo quarto que pertencia a Valentim, e agora também a Ísis, e depois pelo quarto de hóspede, o seu. Pela porta entre-aberta, pôde observar algumas caixas com os poucos pertences que eram seus e que conseguiu salvar dos destroços.

Parando no final do corredor, puxou uma pequena corda, desdobrando uma escada, que exalou um rangido de velharia. Subiu os degraus, cuidadosamente e acendeu a lâmpada do sótão, puxando uma cordinha. Algumas pilhas de caixas espalhavam-se por ali, junto com alguns quadros cheios de pó. Renan não conseguiu se conter e espirrou três vezes.

Começou a vasculhar algumas caixas que tinham fácil acesso. Em uma, alguns CD’s e discos de vinil acumulavam poeira. Em outro, roupas antigas que provavelmente Valentim jogaria fora. Após alguns minutos, achou uma caixa com alguns talheres antigos, entre eles, o abridor. Renan tomou o objeto para si e virou-se para a saída, mas acabou esbarrando, derrubando a caixa. Os talheres velhos se espalharam pelo chão do sótão, soltando um som metálico.

— Merda! – Renan exclamou em voz alta.

O rapaz começou a juntar os talheres derrubados e em alguns segundos, colocou-os de volta no lugar. Porém, no momento em que ia recolocar na pilha, observou que a caixa de baixo possuía diversos panos velhos, mas que pareciam esconder algo.

Colocando a caixa que segurava no chão, Renan pegou a ponta de um dos panos e levantou suavemente, revelando uma pistola e uma faca. Assustado com o que viu, tentou enxergar na fraca luz da lâmpada, mais alguns detalhes. A faca parecia estar enferrujada… ou seria sangue seco?

Uma forte e aguda dor de cabeça atingiu a parte traseira, perto da nuca. Renan largou o pano e curvou-se, fechando os olhos, com dor. Imagens apareciam como flashes em sua mente. Há muitos dias ele não conseguia se lembrar de mais nada, mas naquele momento, as memórias estavam voltando.

Estava em um quarto branco. Um homem careca o encarava, com uma expressão brava. Mais alguns flashes, e o moreno se viu atingindo o careca no peito com um talher. Sangue espirrou para os lados e o corpo dele tombou. Então, Renan viu-se no sótão novamente.

— Renan? Está tudo bem aí? – a voz de Ísis adentrou seus ouvidos.

— Ah, sim, está. – Renan respondeu, tentando disfarçar.

Se aproximou da escada do sótão e viu a imagem de Ísis no começo dela, com o pé esquerdo já no primeiro degrau.

— Está sim, só levei um susto com uma barata me atacando. – Renan mentiu e levantou a mão, que segurava firme o abridor.

Renan rapidamente recolocou a caixa na pilha que estava anteriormente e encarou o sótão por mais alguns segundos. Puxando a cordinha, a luz se apagou e o cômodo afundou-se na escuridão.

XXX

Casper acabava de adentrar o Opala preto que o levaria em segurança até Alta Praga, e ele seria o que daria o golpe final no evento que era preparado.

Não podia dizer que não tinha avisado a cidade previamente. Um pequeno áudio, gravado por um dos seus asseclas foi espalhado alguns minutos antes pelo Whatsapp para a toda a cidade, no formato de uma corrente. Quem tivesse a chance de ouvir e acreditar seria poupado. Quanto aos demais, só podia lamentar.

A regra era clara: matem tudo o que se mova e que estivesse nas ruas quando o evento acontecesse. Todas as pessoas eram culpadas por Casper, todos os que escorraçaram aquele grupo, todos os que foram chutados de suas casas, assim como ele. Aquele era o dia da grande vingança, contra todos os que tentaram exterminar o Complexo. Ele não tinha mais amor pelo mundo, somente os moradores do Complexo contavam para ele.

— Casper? - A negra o chamou logo depois do rapaz deixar o Opala.

— O que foi Heloisa?

— Eu gostaria de conversar um pouco com você.

— Vai então. Agiliza o processo.

— Vou direto ao ponto. - A mulher disse ficando mais ereta e olhando fixamente nos olhos enigmáticos de Casper. - O que você sabe sobre o D, Casper?

A pergunta pareceu abalar um pouco o rapaz, e pela primeira vez Heloisa sentiu que Casper tinha se surpreendido.

— E então, Casper?

— Você não precisa saber de nada, Heloisa.

— De nada? Você mente muito mal pra alguém tão manipulador, sabia?

— Eu só não quero falar sobre isso agora. Tenho mais coisas e muito mais importantes pra resolver.

— Casper? - Dessa vez outra voz surgiu de trás da Heloisa. Ele se virou e lá estava o homem que tirava seu sono. O próprio Desconhecido.

— Aprendeu a falar meu nome, é? - Ele falou debochado.

— Caleb, Caleb. Quem…?

— Quem o que? - Casper falou. - Eu ainda não sei por quê…

— Medo. – Ele disse resoluto, com uma força que assustou Heloisa. Desconhecido parecia longe de ser aquela pessoa frágil que era. – Medo de mim.

— Medo de você? – Casper se aproximou devagar de Desconhecido. – Por que eu deveria ter medo de você?

— Está tudo errado, Casper. Tudo errado.

— Quem é você pra ficar falando o que eu devo fazer, hein? – Casper falou, e logo depois deu um soco inesperado na cara do homem, que tombou ao chão. Heloisa se afastou, espantada.

— Casper, por que…

— Você não manda em mim, entendeu D? Entendeu? - Casper falou, mas sua voz parecia conter um tom de desespero na voz.

— Casper, para! – Heloisa falou, colocando-se entre D e Casper. – O que você está fazendo? Você é louco!

— Você não sabe nem da metade, Heloisa. Não tem nem o direito de se intrometer.

Heloisa riu, balançando a cabeça incrédula.

— Enfim, não vou perder mais meu tempo aqui. Tenho mais o que fazer. – Ele falou, se afastando. Desconhecido permanecia caído no concreto, enquanto um filete de sangue saía de sua boca e também de sua cabeça. Era claro que o homem tinha se machucado na choque contra o concreto duro.

Heloisa observava Casper se afastar cada vez mais, e pensando no ato que acabara de ver. O que ligava Casper e D? O que estava acontecendo, afinal? Ela simplesmente não tinha entendido absolutamente nada do que acontecera entre os dois.

— Arthur.

Heloisa se virou alarmada na direção de Desconhecido. Ela parecia ter falado algo.

— Como?

Mas o homem já tinha desmaiado.

XXX

Lola, Carla e Diego adentraram no carro do senhor de 60 anos que os tinha resgatado na noite anterior da chuva. Depois daquele evento, os três foram levados até uma fazenda próxima e descobriram que ambos eram donos de um sítio no caminho das Fazendas, com uma grande plantação de milho e gado. O casal proveu abrigo e comida para os três jovens, que se surpreenderam com o bom tratamento.

E acabou que não passaram somente a noite, mas o dia inteiro com os velhinhos, que cuidaram dos três como se fosse seus filhos, que há muito tempo tinham abandonado os mesmos. Tinha sido um bom dia feliz e agradável junto deles, e os três não se esqueceriam de tal bondade. Mas não podiam ficar ali eternamente, a hora de ir embora era chegada.

Lola e Carla sentaram-se na parte de trás, enquanto Diego foi no banco do carona, porque a senhora não iria com eles. Ela acenou para os três, enquanto o carro começou a descer a estrada no meio do milharal.

O carro atravessava a plantação e o portão de entrada já podia ser visto á distância. Lola e Carla conversavam no carona quando a loira viu algo se mexendo entre a plantação. Lembrou-se da noite passada quando viu as plantas se mexendo sozinhas, e sentiu um tremor passar pelo seu corpo. Ela começou a olhar estática na direção do milharal.

— Lola, parece que você viu um monstro. – Carla falou, estranhando a amiga.

— Eu vi de novo Carla. – Lola repetiu. – Eu vi um infectado.

Não demorou muito para se confirmar uma verdade quando um infectado pulou na direção do carro e se agarrou no senhor que dirigia o carro. Diego soltou um grito de horror com a cena, enquanto Lola e Carla foram para o outro lado do automóvel, para longe do infectado.

Não demorou muito pro carro sair da reta, desgovernado. O senhor e o infectado armavam uma luta terrível no banco do motorista, até o momento em que a cerca foi quebrada e o veículo entrou no milharal como uma flecha. O infectado conseguiu puxar um pouco o senhor para fora do carro e o mesmo gritou para Diego:

— Leve as garotas em… – Um empurrão contra o infectado. – Seguran…

O senhor não conseguiu terminar a fala pois o infectado foi mais forte e puxou o mesmo para fora do automóvel. Os dois sumiram em meio ao milharal que era atravessado pelo carro.

— DIEGO CONTROLA ESSA PORRA! – Lola gritou exaltada. O rapaz pulou para o banco do lado e conseguiu fechar a porta e mexeu no volante, conseguindo ter certo controle do veículo. Ele pisou no freio com força até o carro parar no meio da plantação. Com a freada brusca, Lola e Carla foram jogadas para a frente, mas conseguiram se segurar. Ambas respiravam ofegantes.

— O que foi… Isso? – Carla perguntou desesperada. – Será que eles vão ficar bem?

— É melhor sairmos daqui agora. Pra que lado será que é a estrada?

— Continua seguindo reto, Digão. Uma hora a gente chega. – Lola concluiu, exasperada. – Eu acho.

Diego seguiu reto por mais alguns metros até finalmente saírem do interior da plantação de milho. A estrada de terra que conectava a fazenda até a estrada de Cabo passava logo abaixo. Não poderiam respirar mais aliviados.

Lola olhou para trás enquanto se afastavam da propriedade. Não conseguira de sentir um terrível remorso pela morte do velhinho que acabara de testemunhar, uma pessoa tão boa… Que cuidou de Lola como um pai que nunca tivera, mesmo que somente por um dia.

Respirou de uma forma profunda enquanto via a propriedade sumir dos seus olhos.

XXX

 

Parte IV - Cabo do Horror

“Viver é o que me assusta. Morrer é fácil.”

Charles Manson

Cerca de duas horas depois.

O ônibus vazio andava pelas ruas de Cabo da Praga com destino á zona média de Cabo, conhecida por ser a região residencial da cidade. Para tal, descia a Avenida dos Afogados. A noite estava nublada, mas mantinha uma temperatura agradável.

Amanda e Suzana estavam sentadas no fundo do mesmo, que possuía cerca de quatro a cinco passageiros além das mesmas. O ônibus parou no ponto da UFCP, a Universidade Federal de Cabo da Praga para que um provável estudante entrasse no veículo. O mesmo sentou-se no meio e começou a conversar com outro rapaz.

Amanda olhava para Suzana que mantinha os seus olhos na estrada, aflita. A mulher teve que deixar a “profissão” que possuía, porque não teria sangue frio o suficiente para fazer tal coisa enquanto estivesse grávida, e Amanda sabia que isso era o certo, por mais duro que fosse.

A renda de Suzana vinha inteira de tal serviço, e ela sofria com isso. Como Suzana iria conseguir dar conta de tudo isso? Ela já deixara claro que não queria abortar.

Amanda se preocupava extremamente com Suzana porque ela tinha problemas claros. Já Amanda não tinha, exceto aceitar ou não a proposta de Heloisa. E isso ela já tinha decidido.

Quando toda aquela quarentena acabasse, queria ter uma família. Sentia falta disso, e Heloisa era uma pessoa honrosa e verdadeiramente boa. Mas por outro lado, deixar o Complexo? O local onde realmente se encontrara como pessoa?

Mas Amanda já sabia o que queria, e no seu íntimo, torcia para que Suzana e D também fossem ajudados por Heloisa, eles realmente necessitavam de auxílio.

— Amanda, faz ideia de que horas são? – Suzana perguntou, preocupada. – Estou com medo de termos demorado demais no Estrelas.

— Está falando do Expurgo, não é? O Casper não sabe que você iria sair?

— Eu falei com ele, mas nem sei se me ouviu.

— Suzana, eu tô falando. Você está cada vez ficando mais idiota com o Casper. Você realmente acha que vai te ajudar com essa criança? – Amanda falou. – Não, né?

Subitamente, um estrondo tomou conta do ônibus e o mesmo começou a parar, caído para um lado. Outro estrondo e ele parou completamente. Amanda e Suzana foram jogadas contra a frente e se olharam assustadas.

— Você acha que é… – Suzana falou pausadamente, evitando dizer a palavra-chave.

— Começou. – Amanda falou assustada. – Puta merda.

XXX

O motorista do ônibus então desceu para verificar o que tinha acontecido enquanto todos os passageiros se remexiam. Parecia que dois pneus do ônibus haviam estourado ou tinham sido furados propositalmente.

Vários tiros foram ouvidos e Amanda se levantou do banco, olhando para a janela. Um grupo de pessoas tinha matado o motorista e pareciam estar com galões com alguma substância. Observou melhor e viu que eram moradores do Complexo, muitos fugitivos da Lei.

— Suzana, precisamos sair daqui. – Amanda falou. O pânico já era iminente no ônibus. O cobrador foi tentar se mexer até receber um tiro de fuzil na cabeça. Uma senhora que estava atrás do mesmo gritou com a explosão de sangue contra seu rosto.

Dois dos fugitivos entraram no ônibus portando armas de alto calibre e olharam para os passageiros, logo depois dizendo:

— Ninguém sai. Quem sair vai tomar pipoco. Entreguem tudo e não discutam.

Logo depois, outro fugitivo entrou e começou a jogar gasolina na área da frente. O primeiro dos assaltantes foi na direção da senhora e tomou a sua bolsa. A mulher permanecia estática até o momento que levou as mãos ao peito e tombou sobre o banco.

O segundo passageiro era um homem vestido de social. Ele começou a dar todas as coisas que carregava para o assaltante, até o fim.

Logo depois, foi a vez do estudante e do outro rapaz. Mas o outro rapaz tinha conseguido esconder o celular a tempo, no fundo do seu tênis, e os bandidos não o pegaram.

Por fim, chegaram á Amanda e Suzana e pararam estáticos. Eles conheciam tanto Amanda como Suzana do Complexo e pareceram hesitar em atacar as duas. Afinal, era uma regra do Expurgo não atacar membros do Complexo. Amanda até pensou em dar um tiro nos mesmos, porque estava com sua arma, mas não podia arriscar tanto.

Eles deram meia volta enquanto disseram pra ninguém deixar os seus lugares. A gasolina já tinha sido espalhada por parte do ônibus e Amanda começou a se desesperar. Não iriam abrir as portas de trás, tinha certeza disso.

O destino dos seis era serem queimados vivos, e parecia que Suzana e os outros passageiros já se davam conta disso.

Um pequeno fósforo foi riscado enquanto Amanda parecia olhar as soluções de fuga. Existia algumas saídas de emergência nos lados e também outra saída no teto. Precisava pensar rápido para poder escapar com vida junto de Suzana. Então, o fósforo caiu sobre a gasolina.

Amanda e Suzana se levantaram com força total e começaram a tentar destravar as saídas de emergência da parte de trás enquanto as chamas começavam a dançar na parte frontal do carro. Ao ver a movimentação, o estudante e seu amigo correram para ajudá-las a destravar. O homem de roupa social correu para tentar acordar a senhora.

— Puxa a alavanca, rápido! – Amanda gritou para o estudante, que não conseguia fazer tal serviço.

— Tá emperrada! – Ele gritou, desesperado.

— Tenta essa! – O outro rapaz falou, puxando a alavanca ao nível máximo. – CONSEGUI!

Então uma explosão surpreendeu a todos, engolindo metade do ônibus em chamas, queimando instantaneamente a senhora e o homem de social. Amanda, Suzana e o estudante foram jogados contra o chão, enquanto o rapaz se encolheu no meio dos bancos. Quando se levantou, tinha parte da camiseta queimada. Suzana gritou ao ver os corpos queimados enquanto o estudante deixou todo o seu jantar ali mesmo.

Amanda viu que o fogo já atingia a parte de baixo do veículo e não haveria tanto tempo para escapar. Era agora ou nunca. Correu na direção do outro rapaz junto de Suzana e do estudante, ignorando o cheiro de carne queimada. Os três empurraram a janela juntos e finalmente a janela se soltou.

— Deixa que eu vou primeiro! – O estudante disse. – Daí ajudo vocês.

Amanda iria protestar quando percebeu que ele já tinha conseguido escapar do veículo em chamas. Elas já lambiam o teto quando Suzana conseguiu deixar o veículo em segurança.

— Menina, você é a próxima. – O rapaz que quase fora queimado falou. – Deixa que eu vou por último.

Amanda se concentrou no chão e conseguiu pular da carcaça do ônibus. Quando percebeu, rolava no asfalto em segurança. Virou-se e viu que somente faltava o rapaz.

— Vai Gabriel! – O estudante gritou para ele. – Deixa que eu te ajudo.

— Pode deixar Erick. – Gabriel respondeu, fitando o asfalto. Ele não podia se apoiar na carcaça, porque está já estava pegando fogo assim como todo o veículo. Colocou as pernas para fora e Erick correu para segurá-las.

— Pode soltar! – Erick respondeu. Gabriel passou pelo buraco da janela e se soltou do veículo caindo em segurança contra o chão. No processo, acabou derrubando Erick e seu celular saiu rodando pelo asfalto.

Os quatro começaram a respirar ofegantes até Amanda gritar:

— Vamos sair daqui, isso vai explodir!

Gabriel pegou o celular, e logo os quatro começaram a correr para longe do que sobrara do veículo, até ouvir outro estrondo. Provavelmente outra coisa tinha explodido novamente no ônibus.

Os quatro viraram a esquina entrando em uma das paralelas da Afogados, e Gabriel sentiu o celular vibrar.

— Esperem um pouco! – Gabriel disse, ao ver quem o ligava no visor. Erick se apoiou nas pernas enquanto Suzana se apoiou em uma parede e passava a mão no ventre.

— O que… Está acontecendo? – Erick perguntou, sendo cortado por uma respiração rápida.

— O Expurgo. – Amanda respondeu também cansada.

— O que? – Erick perguntou.

— Uma onda de ataques? – Gabriel falou alto no telefone. – É, eu tenho histórias pra contar, Mia.

Os três olharam para Gabriel que continuou ao telefone, falando rapidamente.

— Tá, tudo bem. Eu estou com o Erick, pode tranquilizar certas pessoas, ele está bem. Tudo bem, eu estou indo pra casa já. Acho que não demoro muito. – Uma pausa se seguiu. – Eu tô bem Mia, fique calma. Você vai ver o seu irmão novamente.

Gabriel finalizou a ligação rapidamente e respirou pesadamente. Olhou para Amanda e Suzana e disse:

— Vocês tem lugar pra ir? – Com a resposta negativa de ambas, ele continuou. – Venham com a gente então.

XXX

Heloisa entrou em um cômodo no interior do grande edifício central. Com a ajuda de alguns moradores do Complexo, conseguiram levar D para uma sala em seu interior, que muitos diziam ser o quarto do homem. Mas foi inevitável o pensamento de como Desconhecido deveria ter alguma importância para Casper. Por que ele deixaria que um doente mental qualquer ganhasse um quarto especial, logo no edifício central?

Essa e a proposta que havia feito á Amanda reviravam sua mente completamente. Chegara a um ponto que tentava manter o controle, mas este já tinha se perdido no ambiente onde ela se encontrava.

Observou Desconhecido deitado no colchão do quarto. O homem parecia envolto em uma cortina de sono, que o impedia de perceber a aproximação de Heloisa. A negra sorriu ao ver o homem bem, prometendo a si mesma que assim que a quarentena acabasse iria dar um destino digno á Desconhecido, libertando ele dessa terrível vida do Complexo, onde ele era visto como um nada. Ele merecia um tratamento digno, o que ela não tinha visto naquele lugar.

Adentrou o suposto local, e viu que o quarto era até bastante arrumado do que esperava. De um lado existia o colchão onde ele repousava, e em frente, na outra parede, uma pilha de tralhas e uma porta fechada. Heloisa se aproximou da pilha e pegou alguns papéis que pareciam estar jogados aleatoriamente. Então algo escapou pelas suas mãos.

A negra se abaixou até pegar a pequena folha de papel retangular, e percebeu que se tratava de um material diferente. Deixou as outras folhas no chão e pegou a outra folha e a virou, revelando ser uma fotografia.

Observou a mesma e repentinamente, arregalou os olhos. As lembranças da morte de Eduardo voltaram com força total á mente da negra ao perceber quem estava na foto.

Era um grupo de surfistas que tinham tirado tal foto com o mar ao fundo. Alguns deles exibiam suas pranchas. O sol parecia brilhar fortemente ao fundo.

Heloisa começou a andar os olhos pela imagem, e levou um susto. Murilo estava na foto, sorrindo de forma afetada para a câmera. Ao seu lado, Nicolas, o amigo de Eduardo que morrera em um acidente de carro seis meses antes de Edu, fazia um sinal de hang loose com as mãos.

Heloisa reconheceu mais dois surfistas até sentir suas pernas tremerem.

Eduardo.

Como podia ser ele? O que Eduardo estaria fazendo naquela foto? Continuava a segurar a foto com horror genuíno, extremamente chocada. Eduardo sorria para a câmera, também fazendo o sinal de hang loose com a mão direita, e a prancha de surfe encaixada na areia atrás do rapaz. Ao lado dele, outro rapaz fazia o mesmo sinal, dessa vez com a mão esquerda, fazendo as duas mãos se encontrarem. O rosto dele se contorcia em uma careta. Observou bem o rosto.

A negra soltou um grito abafado e levou a mão á boca. A foto caiu lentamente sobre o chão, enquanto Heloisa lembrou-se claramente de tudo.

O rapaz ao lado de Eduardo era o surfista que havia sumido repentinamente no ano passado. Ninguém sabia que teria sido o paradeiro do mesmo, e vários boatos haviam sido criados em torno da figura do mesmo. E foi com o sumiço dele que começou o declínio daquela equipe de surfe. O surfista ao lado de Eduardo era Casper.

Eu sabia que o conhecia de algum lugar… Heloisa, como pode ser tão burra?

Repentinamente Heloisa sentiu uma dor forte atrás dela e sentiu a sua visão se tornar turva e escurecer rapidamente. Antes de cair no chão desmaiada, ouviu um sussurro vindo de trás.

— Você sabe demais.

XXX

O carro de Marcela permanecia parado no sinal vermelho. A mulher de olhos claros esperava pela abertura do mesmo, e observou o cruzamento onde ela se encontrava. Ela acabara de deixar a Falcon Magazine e agora seguia para sua casa. Excepcionalmente naquele dia os funcionários saíram algumas horas mais cedo do fim do expediente e somente Marcela ficara no prédio.

A mulher viu que não havia carros vindo de nenhuma das direções, deixando a passagem completamente livre. Ela começou a avançar lentamente pelo cruzamento até ver dois faróis brilhando em sua direção.

Marcela gritou e freou o carro, enquanto o outro carro fazia um movimento brusco para a outra direção, evitando que a colisão acontecesse. O barulho dos pneus cantando foi extremamente audível, e o carro continuou o percurso, enquanto o motorista amaldiçoava Marcela até a terceira geração.

Ela começou a respirar ofegantemente e quando percebeu, um carro parou logo atrás dela, enquanto a mesma ainda esperava pela abertura do sinal.

XXX

— Dindo, ainda bem que consegui falar com você! – Pedro falou ao telefone com Ed. O mesmo estava em seu carro com Debora. A mulher teve que ir ao Cicciolina para falar com Kátia e Edmundo se oferecera para levá-la para a casa noturna. Agora estavam retornando para a humilde residência do ex-agente.

— Pedro, o que aconteceu? – Ele disse enquanto esperava o sinal abrir. Outro carro estava á frente do mesmo e Debora olhava para Edmundo, interessada.

— Volte para casa, AGORA! Vai rolar um tal de Expurgo e todos que estiverem nas ruas não serão poupados.

— Como assim? Uma onda de ataques? – Edmundo perguntou, embora já soubesse a resposta.

— Um áudio chegou pra mim… Ele disse que todos deveriam ficar em casa a partir das 9 horas, quem não estivesse não seria poupado, coisa assim…

— Entendo. Certo, já entendi sobrinho. Eu e Debora estamos voltando, mantenha a calma.

Edmundo terminou a ligação e Debora olhou intrigada para Ed, tentando descobrir o que acontecera.

— Os loucos de Baixa Praga vão fazer uma onda de ataques pela cidade, Debora. Deve ser algum tipo de acerto de contas.

— Até já imagino quem armou tudo isso. – Debora respondeu resoluta. Quem mais poderia ser? Ele não desistia nunca. A cada dia Debora se surpreendia mais com a audácia de Casper.

— Qual é a desse sinal que não abre?

XXX

Diego dirigia o carro rapidamente pela rua, enquanto Lola e Carla estavam no banco de trás da mesma. Lola tentava alcançar algum sinal de Internet em Cabo, enquanto Carla estava mais preocupada em se segurar no banco do carona.

Finalmente. — Lola falou quando percebeu que tinha conseguido sinal da operadora. Rapidamente um áudio chegou ao seu Whatsapp, e Lorelai foi ouvi-lo.

— Meu Deus. – Lola falou estática, depois de escutar tal áudio.

— O que foi Lola? – Carla falou preocupada, se virando do banco do carona.

— Aqui tá dizendo que… Vai acontecer uma onde de ataques aqui na cidade. Um tal de Expurgo.

— Como assim, Lola? – Diego perguntou, tirando os olhos da avenida.

— Aqui diz que todos devem estar dentro de suas casas á partir das 9 horas. Um toque de recolher, porque quem estiver nas ruas… Vai morrer. – Ela falou expansiva.

Lola então olhou para o relógio do seu iPhone, e soltou um gritinho. Carla e Diego logo se desesperaram também, porque já tinham entendido o que acontecia.

— São 9 e meia.

— Isso não pode ser verdade. – Diego falou se virando na direção da avenida, incrédulo. Porém ele se sobressaltou naquele momento, enquanto Carla e Lola gritavam.

O carro dos três se chocou em cheio com a traseira de outro carro, que acabou por bater no carro de frente, como um efeito dominó. Diego, Lola e Carla foram jogados para frente instantaneamente, mas por efeito do destino, o cinto de segurança evitou que acontecesse um acidente maior. Lola respirava ofegantemente, e o desespero tomava conta dela.

— O que a gente faz agora? – Carla perguntou. Diego se apoiou sobre o volante e suspirou profundamente, logo depois abriu a porta do carro para observar o estrago.

— O que aconteceu aqui? – Marcela saiu do carro da frente, levando ás mãos á cabeça. – Quem vai arrumar isso aqui agora?

— Marcela? – Edmundo saiu do carro, intrigado. Diego ainda olhava para os carros que tinham se chocado.

— Marcela? – Lola também falou, saindo do carro de trás rapidamente.

— Lola? Você por aqui? – Marcela perguntou, levou as mãos á boca. – Ah não.

— Pode deixar que eu pago. – Diego falou, olhando para o que sobrara da traseira de Ed.

— Mas por que veio com toda essa velocidade? Você não sabe que tem que olhar pra estrada? – Edmundo falou visivelmente irritado.

Diego levou as mãos á cabeça novamente, enquanto Debora saía do carro de frente e olhou para Edmundo. Ao ver Debora, Marcela sentiu um arrepio passar pelo seu corpo. A Magnata das Ruas, Ed, Lola… O acidente do túnel, todos estavam lá, Marcela jurava ter visto os mesmos no túnel Teodoro Kaulfuss, e pior: na sala da manutenção em que a maioria dos sobreviventes se esconderam.

— Não, não… – Marcela falou. – Eu sobrevivi isso não pode estar acontecendo…

— Do que você está falando, Marcela? – Lola perguntou.

— A morte, aquela maldita! Mas eu sobrevivi isso que importa! – Marcela disse, parecendo não escutar o que Lola dissera. Ed, Debora e Diego se viraram na direção da presidente da Falcon Magazine intrigados.

— Do que você está falando, Marcela? – Edmundo perguntou para Marcela, tentando entender a atitude da mulher.

— Que? – Marcela se virou intrigada. – Vocês não sabem?

Um som audível de tiro interrompeu cortou a noite e interrompeu repentinamente a conversa. Outro som de tiro se seguiu, e parecia estar mais próximo. Lola gritou de medo.

— O Expurgo! – Debora exclamou. – Nós precisamos sair daqui, Ed.

— Com o carro não dá. Precisamos achar abrigo.

— Que Expurgo? O que está acontecendo? – Marcela perguntou desorientada com a cena.

— Lola, fica no carro com a Carla! – Diego falou.

— Você é louco, Diego! Aqui seremos vítimas fáceis! – Lola falou. – Precisamos nos esconder em algum lugar.

No carro de Ed, o mesmo pegou as chaves do carro e alguns de seus documentos. Depois pegou uma pistola para si e deu uma para Debora, que verificou se estava carregada.

— Vamos, não podemos ficar aqui. – Ele disse para Debora. Porém foi surpreendido pela voz de Lola, que disse:

— Nós vamos com vocês. Se ficarmos aqui não vamos sobreviver.

Debora se virou e olhou para a atriz e seus amigos. Em um dia normal passaria bem longe daquele grupo, mas aquele não era um dia normal. Pelo o que entendera, uma grande onda de ataques e assassinatos iria acontecer pelas mãos de Casper, e ela não deixaria ninguém morrer incitados pelas mãos imundas daquele homem repugnante.

— Venham então. Mas rápido. – A Magnata das Ruas disse, chamando o grupo. Lola, Diego e Carla os seguiram, e Marcela embora estivesse perdida no que acontecia, pegou sua bolsa da PRADA e os seguiu.

 

Parte V - Cabo do Mistério

“Um homem tem que fazer pelo menos uma aposta por dia, ou ele poderia estar com sorte e nunca saber.“

Jim Jones

Gabriel, Erick, Amanda e Suzana corriam pelas ruas desertas de Cabo da Praga, fugindo do Expurgo. Amanda e Suzana não podiam acreditar que acabaram caindo na rota de colisão do evento planejado por Casper. Se o rapaz estivesse ali, talvez tinha impedido que atacassem as duas moradores do Complexo.

Mas isso não passava de ilusão. E os moradores do Complexo que atacaram o ônibus pareciam não ter reconhecido as duas, já que a regra era clara: não matem ninguém de Baixa Praga.

A menos que… Alguém estivesse tentando sabotar o Expurgo. Amanda viu os moradores olhando para ela quando incendiaram o ônibus. Eles pareciam a reconhecer e sabiam quem ela era, e até percebeu que estavam um pouco hesitantes com o ato que cometeriam. Isso só levava a acreditar que alguém estivesse com outros planos para o evento.

— E agora, para onde vamos? – Erick perguntou, aflito.

— Vamos tentar chegar na casa da Mia. – Vendo que Amanda e Suzana não compreenderam o que dizia, Gabriel completou. – Minha irmã. Não é tão longe.

— O problema não é ser tão longe. O problema é se é tão perto assim. – Amanda falou. – Não temos tanto tempo.

Em um cruzamento, um carro de polícia passou á frente deles correndo rapidamente. As sirenes altas lutavam contra os tiros que ecoavam por toda a região média de Cabo da Praga. Para ultrapassar tal cruzamento, Amanda, Suzana, Gabriel e Erick se esgueiraram pelas paredes de um comércio local.

— Precisamos chegar do outro lado. – Gabriel disse, entre sussurros.

— Vão. Eu dou cobertura. – Amanda respondeu para os três. Erick olhou para a garota com um olhar de interrogação, não acreditando que ela seria de capaz de matar uma mosca.

— Você tá pagando pra ver, playboy?

Gabriel foi à frente de todos, seguido de perto por Suzana. Erick veio logo depois, e por fim, Amanda ia de costas, e retirou a sua arma, deixando-a numa posição pronta para atirar. Felizmente, os quatro conseguiram ultrapassar o cruzamento em total segurança.

Os quatro suspiraram aliviados, agora do outro lado da rua, até observarem o que vinha da outra direção.

— Puta que pariu. – Erick não conseguiu evitar o palavrão saindo quase que automaticamente.

Alguns infectados vinham da outra direção, andando na direção do grupo. Quando perceberam que havia carne fresca no caminho, começaram a ser aproximar cada vez mais do grupo.

— Tá na hora de matar alguns zumbis. – Amanda falou, empunhando a pistola nas mãos, decidida. – Vamos, CORRAM!

Os quatro se viraram na direção da Avenida Ruth Lemos e começaram a descer a mesma, perseguidos pelo grupo de infectados. Erick ia na frente, correndo o mais rápido que podia, seguido por Gabriel e Suzana. Amanda era a última, e com a pistola em punho atirava contra os infectados. Um deles soltou um grito etéreo, mas logo foi calado pela arma de Amanda.

A habilidade de Amanda com armas estava cada vez mais sendo testada, e agora precisava garantir que todos os infectados encontrassem a morte, para salvar o grupo e os fazer chegarem em segurança até o local onde necessitavam. Não podia se perder em seus devaneios, porque vidas estavam em jogo, inclusive a dela.

Adoraria saber o que passou pela cabeça do Casper de fazer esse Expurgo e fuder ainda mais Cabo. Porra, a cidade já tá ferrada o suficiente.

Apesar das baixas, um pequeno infectado, que deveria ser uma criança começou a ser aproximar cada vez mais do grupo e de Amanda. Ela desviava das balas com uma destreza quase impossível. E quando percebeu, a munição tinha terminado. Apesar de possuir mais, estava guardado fora do alcance de Amanda.

Merda.

Amanda guardou a pistola e começou a correr como nunca. O infectado se aproximava cada vez mais, enquanto os outros três já se distanciavam. Repentinamente, um burburinho ocorreu mais á frente, e uma bala passou em alta velocidade ao lado do rosto de Amanda, balançando seus cabelos cacheados, enquanto a garota sentia o seu coração acelerar.

Como em uma cena de câmera lenta a bala voou na direção do infectado e o atingiu na cabeça em cheio. Uma explosão de sangue e massa encefálica espirrou para todos os lados e ele caiu no chão, tendo espasmos. Poucos segundos depois, o mesmo parou. Estava morto.

Amanda se virou na direção de onde a bala viera e viu que Erick, Gabriel e Suzana estavam juntos de outro grupo, um pouco maior. Logo percebeu quem havia atirado, Amanda a conhecia de eventos passados não exatamente agradáveis. Era a Magnata das Ruas.

XXX

Quando D acordou, rapidamente percebeu alguém deitado no mesmo colchão do quarto. O homem se virou e viu Heloisa deitada ao seu lado, adormecida. Lembrava vagamente do soco que levara de Casper e ter dado uma única pista á ele. Deduziu que Heloisa tinha o levado para o que seria o seu “quarto”, para cuidar dele.

O homem se mexeu no colchão, apenas para cair no chão com um baque, sentindo algo por baixo dele. Tateou até encontrar um par de chaves, e levou seu olhar até uma porta que ficava no interior daquele quarto.

Uma chave…?

Ele se levantou até chegar na porta e tentou encaixar a chave na fechadura, batendo a mesma diversas vezes. Olhou para trás e viu Heloisa ainda em profundo sono.

Encaixou a chave na fechadura e a abriu rapidamente, fechando a mesma logo em seguida. Um grande armário de madeira envernizado ocupava o espaço. Algumas velas acesas ornavam o local, além de um grande veludo vermelho, que cobria a parte de baixo do mesmo.

Acima do altar, um celular vibrava. Desconhecido se aproximou lentamente até sentir a agulha adentrando seu pé que estava descalço.

Arthur.

Ele caiu, chocando-se contra a porta de madeira e quase soltou um grito de dor. Ao direcionar o olhar para o objeto pontiagudo, percebeu que não era uma agulha normal. A retirou com muita frieza, e a olhou, reconhecendo a mesma. O celular voltou a vibrar.

O homem se apoiou no armário a tempo de ver quem ligava. O nome “Jesus” aparecia no visor do mesmo, e D apertou o botão pra atender.

— Está tudo pronto. - Uma voz tenebrosa adentrou o espaço.

Desconhecido se afastou lentamente e o veludo foi puxado pelos seus pés enquanto se afastava, puxando uma vela que se virou sobre o armário. Uma pequena chama começou a crescer lentamente, e um pequeno fiapo de madeira com brasa caiu sobre o pano vermelho que agora parecia uma cachoeira sangrenta.

No espelho do antigo armário, o reflexo de Desconhecido ainda aparecia mostrando sua face característica, mas dessa vez com um sorriso no canto da boca, antes de fechar a porta e a sala ser envolta em fogo. As chamas rapidamente atingiram o teto da pequena sala, em que a fiação elétrica do prédio deteriorado passava, atingindo um fio desencapado em cheio, provocando uma pequena explosão.

 

Parte VI - Cabo da Morte

“É melhor viver um dia como um leão do que cem anos como uma ovelha“

Benito Mussolini

O grupo seguia pelas ruas desertas de Cabo da Praga unidos. Amanda ia á frente do grupo, seguida dos outros, exceto Ed e Debora, que ficaram na retaguarda.

— Onde vocês pretendem chegar? – Gabriel perguntou á Edmundo, que estava atrás do jovem.

— Vamos até a Falcon Magazine, nos abrigaremos lá. – Edmundo respondeu. – Segundo a Marcela, – Ed apontou na direção da mulher. – É cerca de um quarteirão daqui.

— Certo, certo. – Gabriel falou, olhando na direção de Marcela, e logo depois passou tal informação para Erick e Suzana. Depois ele teria de ligar para Mia, avisando que estava tudo bem.

Amanda, que ia à frente do grupo, então parou repentinamente. A garota tinha chegado à esquina da Ruth Lemos com a Inês Brasil, e esperava pela direção que a guiaria até a Falcon Magazine. Marcela se aproximou e observou a avenida, que estava completamente vazia. Algo extremamente estranho vindo de uma das principais avenidas da cidade. Conseguiu observar o grande edifício onde se localizava a Falcon a cerca de 100 metros do local onde estavam e apontou para Amanda.

— É aquele ali. Vamos.

O grupo começou a correr na direção do prédio, sempre caminhando ao lado da parede. Mas estavam na calçada de esquerda, e precisavam passar a rua para chegarem até a Falcon. Mas algo inesperado surpreendeu a todos.

Uma grande caminhonete descia a Inês Brasil em alta velocidade, com vários atiradores no capô do mesmo, correndo na direção deles. Não podiam arriscar atravessar a rua e chegar até a Falcon Magazine, porque entrariam na rota de colisão do veículo.

— Seria burrice correr até eles. – Debora falou concisa. – Precisamos nos esconder, e rápido.

— Mas onde? – Erick perguntou, expondo sua angústia.

O grupo olhou ao redor, buscando alguma solução, e então Marcela percebeu que estavam diante de um teatro em obras. O Teatro Maria Antonieta. É isso.

— Rápido, me ajudem a abrir as portas. – Ela disse, tentando empurrar as portas de madeira. O interior do teatro em reformas podia ser visto através de grandes janelas localizadas nas portas.

— Mais forte! – Gabriel falou, forçando mais as portas.

Os ocupantes da caminhonete já tinham observado que existia um grupo de pessoas no meio do caminho. Era apenas uma questão de tempo até o Expurgo se abater sobre eles.

— A fechadura tá trancada. É impossível abrir! – Diego falou, exasperado.

— Nada é impossível. Se afastem. – Ed disse, indo um pouco para trás. Sacou sua pistola e atirou três vezes contra a fechadura. E como mágica, as portas de madeira se abriram para dentro. – Pronto, agora vamos.

O grupo correu para o interior do teatro, entrando em um grande salão. Edmundo correu para fechar encostar a porta do mesmo e gritou para todos, quando percebeu que o carro se aproximava com os tripulantes já com as armas em punho.

— ABAIXEM-SE!

A chuva de tiros veio poucos segundos depois e fez o salão tremer. As janelas das portas foram quebradas e explodiram em cacos enquanto toda a área era perfurada pelas balas. Alguns panos que estavam sobre as escadas do hall voaram enquanto até o grandioso lustre do prédio chacoalhou. A maioria dos sobreviventes continuou deitada contra o chão. Tão rápido quanto começaram, os tiros pararam e um barulho de carro dando partida foi ouvido. Era claro que os atiradores pensavam que tinham acabado com eles.

Um minuto se passou até que todos pudessem se levantar em segurança. Edmundo limpou a sujeira que caíra sobre sua roupa social, enquanto Marcela respirava aliviada. Amanda não conseguiu conter um sorriso afetado, enquanto Erick ainda sentia o seu coração acelerado.

— Todos estão bem? – Marcela perguntou.

— CADÊ A LOLA? – Um grito foi ouvido. Todos se viraram na direção de Carla, que exibia uma face de preocupação. – Cadê ela?

— Eu vi ela entrando. – Amanda falou. – É a loira né? Ela entrou sim.

— Mas onde ela está então?

— Só faltava essa. Vamos ter que procurar uma patricinha perdida no meio de um teatro abandonado. – Amanda falou, suspirando.

— Escuta aqui, sua… – Carla olhou para Amanda com desgosto. – Não tenho nem palavras pra falar de você.

— Que bom. Impede que saia alguma bosta da sua boca. – Amanda piscou para a mesma.

Carla iria responder Amanda, quando Diego a segurou, falando:

— Concentra-se em achar a Lola.

O grupo começou a andar pelo salão do teatro, mas não havia qualquer sinal da loira por ali. As portas que levavam ao grande salão de espetáculos estavam abertas, o que levou a acreditarem que ela poderia estar ali. Então todos entraram na sala de espetáculos, e Marcela falou algo que surpreendeu a maioria do grupo:

— Algum de vocês lembra-se do acidente da Teodoro Kaulfuss?

— Como assim, Marcela? Você sabe que eu estava lá. – Edmundo falou.

— Eu também estava… – Debora falou, olhando para Ed.

Erick concordou com a cabeça e todos olharam para Amanda, que respondeu:

— Eu também. Eu e a Suzana.

— Nós também. – Carla concluiu. – Eu, Diego e Lola. Mas nós conseguimos escapar antes que o túnel explodisse, a Lola disse que foi salva ao entrar em uma sala da manutenção. Um louco disse que tudo ia explodir.

— O Renan. – Edmundo concluiu. – Sim, foi o Renan que me alertou. Senão acho que não tinha saído de lá á tempo.

— A premonição. – Marcela falou envolta em seus pensamentos, depois erguendo os olhos para o grupo. – Vocês correm perigo.

— Do que está falando, Marcela?

— Acho que eu sei. – Erick falou, levando as mãos. – Existe uma lista, não é? Das pessoas que sobreviveram ao acidente.

— Todos que sobreviveram por meio da premonição estão destinados a morrer. – Marcela disse. – Uma maldição foi desencadeada no momento que aquele homem teve a visão que tudo ia explodir.

— Como assim? Estamos destinados a morrer, é isso? – Amanda perguntou.

— Assim como nos caso dos gêmeos. – Edmundo falou para si mesmo. – A morte não gosta de ser enganada.

— Exato. A partir do instante em que ocorreu a premonição houve uma quebra no esquema da morte. Todos os que sobreviveram por conta do acidente eram pra estar mortos… E não foram.

— E agora, ela está caçando cada um de nós. – Erick falou. – Como a Mia, Gabriel.

— É… Sim, ela foi salva por um tal de Pedro da explosão do bar. Era pra ela ter morrido lá! – Gabriel falou.

— Mia? – Debora se virou na direção de Gabriel. – Você quer dizer uma jovem com olhos claros, cabelos castanhos…

— É minha irmã. Vocês as conhecem?

— É a garota que o Pedro salvou. Você é o irmão dela? – Ed falou, surpreso. – Ela bem que falou de um irmão gêmeo…

— Sim…

— Parece que estamos todos interligados. – Marcela falou. – Assim como eu e Erick.

— Licença. – Amanda falou. – E essa tal entidade está perseguindo os sobreviventes do acidente, quer dizer que alguns já morreram, certo?

— Certo. Assim como no caso dessa tal Mia, conseguiram evitar a morte.

— Acho que esse é meu caso. – Debora falou pensativa. – Era pra eu ter morrido em um acidente algumas semanas atrás… Mas consegui me salvar.

— Isso só comprova que realmente está acontecendo algo por aqui. – Marcela falou, se aproximando cada vez mais do palco, ainda á procura de Lola.

XXX

Casper adentrou o edifício da prefeitura, caminhando a passos lentos, observando o grande pátio central do prédio. Ao contrário de outras cidades, em que a prefeitura se localizava em um prédio histórico, a prefeitura de Cabo da Praga tinha como sede um grande prédio de 15 andares, localizado na região de Alta Praga, de frente para os Jardins.

O edifício estava com as portas ainda abertas, apesar de já ser relativamente tarde. Sabia que encontraria quem gostaria naquele lugar, para determinar o golpe final do Expurgo.

Dirigiu-se aos elevadores e se surpreendeu por perceber que o segurança dormia na cadeira dele. O banco localizado do outro lado, no interior do edifício de concreto, permanecia fechado, mas qualquer um poderia quebrar o vidro e roubar a quantia que fosse necessária. Riu diante da situação.

— Cuidado com a burra. - Disse, antes de atirar na cabeça do segurança ao entrar no elevador.

XXX

Trilha sonora da cena:

[https://www.youtube.com/watch?v=Bc5bCExt6L0]

Would you be mine?

Would you be my baby tonight?

Could be kissing my fruit punch lips

In the bright sunshine

Lola começou a andar pela área onde estava do Teatro Maria Antonieta. Na entrada, acabara sendo isolada de todos os outros e agora estava somente por si mesma.

Resolveu acender a lanterna do seu iPhone porque a escuridão tomava conta do prédio e do local onde estava. Não podia se dar ao luxo de beijar uma parede. Iluminou a área ao redor e percebeu que estava no meio de uma escada de metal, com duas paredes de concreto ao redor. Começou a subir a mesma lentamente, acreditando que tinha ido parar no subsolo do prédio.

Chegou a uma estranha e comprida sala, e então ouviu estranhos ruídos vindos da sala. Levou a luz do seu celular até o corredor, iluminando toda a sua extensão.

— Quem está aí?

Kiss me in the d-a-r-k, dark tonight

(D-a-r-k, do it my way)

Kiss me in the p-a-r-k, park tonight

(P-a-r-k, let them all say)

Um ruído veio então do lado de trás. Lola iluminou na direção do mesmo e percebeu que um roedor cinza se aproximava de seu calçado. Arregalou os olhos e começou a se afastar lentamente do rato na direção da sala, enquanto ele o observava curioso.

— Sai daqui, vai. Sai. – Ela disse, tremendo com a luz da lanterna.

Porém o roedor achou que provavelmente se tratava de um convite e correu na direção de Lola que gritou o mais que podia. A garota saiu correndo com seus saltos altos, e em determinado momento sentiu o salto virando. Lola caiu contra o chão e tentou se agarrar a qualquer coisa que estivesse no seu caminho.

Hey, Lolita, hey

Hey, Lolita, hey

I know what the boys want, I'm not gonna play

Hey, Lolita, hey

Hey, Lolita, hey

Listen all you want, but I'm not gonna stay

Uma grande corda marrom estava dependurada sobre a garota e Lola acabou tentando se agarrar a mesma. Mas a corda acabou por não aguentar o peso da garota e parte dela escapou da polia que a segurava no topo e que levantou o peso que estava na parede atrás da plataforma, caindo sobre Lorelai.

A jovem tentou se mexer, mas a corda tinha caído em cheio sobre a garota. Começou a retirar as mesmas, tentando jogar as mesmas sobre a polia.

Que merda de negócio que não funciona!

No more skipping rope, skipping heartbeats

With the boys downtown

Just you and me feeling the heat

Even when the sun goes down

Lola não viu o momento em que a polia começou a girar sozinha, puxando a corda de volta ao seu lugar, puxado pelo peso que começou a descer. A mesma ainda estava enrolada pela sua cabeça, até o momento em que viu não o roedor, mas desta vez uma barata.

Lorelai se mexeu para tentar escapar da barata, mas a corda não deixou. A polia começou a girar furiosamente, puxando o peso para baixo e levantando a corda, que se enrolou em volta do pescoço de Lola, que tossiu profundamente e sentiu sua visão turvar, além de sentir seu corpo deixando o chão.

I could be yours, I could be your baby tonight

Topple you down from your sky 40 stories high

Shining like a God

Can't believe I caught you and so

Look at what I bought, not a second thought

Oh, Romeo

A jovem começou a se mexer desesperada, levando as mãos ao pescoço, mas a cada movimento a corda se apertava cada vez mais. Num desses movimentos, o celular de Lola caiu de sua mão e despencou da plataforma, e foi aí que a garota percebeu onde ela estava.

Acima do palco. Puta merda.

Lola ainda tentava retirar a corda, agora suspensa sobre a plataforma, mas ela só ficava mais apertada. Sua respiração começou a se tornar ofegante, e sua visão já se apagava. Seus olhos, sempre deslumbrantes, agora estavam avermelhados, enquanto o desespero de Lorelai somente aumentava cada vez mais. Sentiu o salto batendo contra uma grade, a que provavelmente deveria dividir a plataforma do palco e ouviu vozes oriundas da área de baixo. Pareciam estar procurando exatamente por ela...

A Carla e o Digão.

Kiss me in the d-a-r-k, dark tonight

(D-a-r-k, do it my way)

Kiss me in the p-a-r-k, park tonight

(P-a-r-k, let them all say)

Lola tentou esboçar algum grito, mas nada saiu, somente gemidos baixos. A corda impedia a passagem quase total de ar e ela não conseguiu evitar que lágrimas começassem a escorregar pelos seus olhos rubros. Eles estavam tão perto e ela não podia fazer nada...

Será que a Diana sofreu isso também quando morreu?

Seus pés balançavam sem parar e sentiu quando um deles conseguiu pisar sobre a grade da plataforma. Com certa destreza, a jovem conseguiu levar o outro pé até a grade. E eis que a polia não aguentou mais.

Hey, Lolita, hey

Hey, Lolita, hey

I know what the boys want, I'm not gonna play

Hey, Lolita, hey

Hey, Lolita, hey

Listen all you want, but I'm not gonna stay

A corda se soltou novamente, e dessa vez completamente. Mas Lola estava no caminho, e ela inspirou uma última vez, antes da corda desabar sobre ela. A queda foi instantânea quando a corda começou a ser solta. Em dias normais, ela puxaria algo do cenário ou até mesmo as cortinas, mas neste dia colocava a estrela no palco.

A própria Lola.

Ela caiu com o pescoço amarrado na corda de uma altura de cerca de sete metros. Enquanto caía, viu sua vida passar diante dos olhos como um flash de luz, como se um holofote estivesse a iluminando para sua última grande aparição. Seu último pensamento foi direcionado á mãe, e ela pediu que cuidassem dela, a sua grande companheira e melhor amiga.

Quando o fio atingiu seu limite máximo ela esticou, automaticamente estilhaçando a coluna vertebral de Lola internamente, e fazendo a moça perder todos os sentidos completamente. Mas a força do impacto e da altura da queda foi tamanha que a cabeça de Lola foi arrancada brutalmente quando a corda foi esticada, espirrando sangue por todo o palco, que estava envolto na escuridão.

— Lola, é você? – Carla falou quando ouviu o estranho ruído de algo atingindo o chão.

Diego levou a luz da lanterna até o palco, de onde viera o som e focou em um estranho objeto redondo que rodou um pouco até se revelar ser a cabeça desmembrada de Lola. Sangue estava espirrado pelo rosto completamente, sujando também seus cabelos loiros. Carla berrou o mais alto que pode e Diego deixar a lanterna cair, ficando em extremo estado de choque. Então outro ruído foi ouvido, e Ed levou a luz da lanterna até o centro do palco, onde o corpo ainda estava segurado pela corda.

O corpo então finalmente se soltou e se chocou contra o chão de madeira do palco, espalhando gotas de sangue na direção de Carla, Diego, Marcela e Erick, que estavam mais próximos do corpo. E então Marcela gritou o mais alto que pode.

No more skipping rope, skipping heartbeats

With the boys downtown

Just you and me feeling the heat

Even when the sun goes down

 

Lola se transformara na grande estrela da noite.

 

Parte VII - Cabo da Tortura

“Eu fiz a minha fantasia de vida mais poderosa do que minha vida real.”

Jeffrey Dahmer

As portas do elevador finalmente se abriram no décimo-quinto andar. Após alguns problemas no elevador da prefeitura, enquanto ouvia a música tema do mesmo, finalmente chegara a seu destino.

Naquele momento já tinha certeza que sabiam que alguém tinha adentrado a prefeitura, mas se surpreendeu por não possuir absolutamente ninguém para barrá-lo. Aquilo estava fácil demais.

Continuou a andar pelo corredor central daquele andar, sabendo quem encontraria no final do corredor. As luzes piscavam enquanto o rapaz andava a passos curtos na direção da sala. Casper suspirou quando ouviu o clique de uma arma.

Ele se virou na direção do início do corredor, apenas para ver uma horda de seguranças correndo na direção dele. Pegou o fuzil que carregava e antes que qualquer segurança pensasse em atirar, Casper mandou vários tiros na direção do grupo, formado por cerca de quatro pessoas, atirando perfeitamente nas áreas não protegidas pelo colete. Um, dois, três. Doze tiros dariam conta.

— Francamente, hein? Pensei que o prefeito fosse mais esperto.

Casper prosseguiu na direção da porta, e a abriu com um baque, surpreendo a figura que guardava vários documentos em algumas maletas. Um homem gordo de aproximadamente 60 anos, completamente vestido de social, destoava bastante de Casper e parecia aparentar certo medo exposto em sua face, enquanto o rapaz chutava a porta.

— Tudo bem? Sr… – Casper leu a placa de metal que ficava acima da mesa. – Joaquim Bandeira, prefeito de Cabo da Praga.

— O que você está fazendo aqui?

— Prazer. Caleb Fernando Braga. Bom, era assim que me chamavam. Hoje em dia só Casper.

— Saia daqui, ou vou chamar…

— Os seguranças que morreram no corredor? – Casper perguntou. – Não sabia que podia ressucitar os mortos, prefeito.

Joaquim olhou para a metralhadora que Casper carregava em uma das mãos e avaliou a situação. Se tentasse correr certamente se tornaria mais uma vítima do insano rapaz. Decidiu que esperaria mais um pouco para definir qual peça do tabuleiro andaria.

— Quero falar de negócios, senhor. Sente-se. – Casper falou, indicando a própria poltrona giratória do prefeito como a que ele deveria sentar. Atrás do mesmo, uma cortina cinza criava um ambiente sóbrio, característico de escritórios. Joaquim obedeceu automaticamente, ainda estudando a situação.

— Muito bem. Agora estamos falando a mesma língua, prefeito. Ou diria, marionete da cidade? – Casper riu. – Você acha que eu não sei que você estava fora de Cabo?

— Não sei do que está…

— Faça-me o favor, prefeitinho. – Casper se aproximou de Joaquim. – Confesse seus pecados. – Ele disse, apontando a boca de uma pistola para o queixo de Joaquim.

— Eu não sei do que fala. – Ele disse, transpirando como um porco.

— Prefeito, não é assim que se joga. Pensei que já tinha aprendido como jogar com o poder.

— Casper, por favor. Deixe-me ir que eu faço qualquer coisa.

— Sinceramente. Vocês poderosos falam sempre a mesma patacoada de sempre hein? Cadê a criatividade, eu quero criatividade Joaquim.

— Você é louco! – Ele esbravejou ao sentir a pistola se afastando de seu corpo.

— Só com quem eu quero. Tipo você, meu amigo.

— Então você vai me matar? Casper, por favor…

— Vá implorar para o cão de Hades, prefeito. – Casper falou, antes de se atirar contra a poltrona de Joaquim. O empurrão acabou sendo tão forte e surpreendente que Joaquim simplesmente não conseguiu ter qualquer reação exceto o espanto repentino. A cadeira deslizou em suas próprias rodas, enquanto Joaquim perdia totalmente o controle. Um último giro e a cadeira virou acima da vidraça que ficava atrás da cortina verde. Tudo foi puxado e levado junto com a explosão em cacos da grandiosa janela.

Enrolada na cortina, a poltrona tombou para o lado de fora do edifício, levando junto a cortina e Joaquim, que não conseguiu nem gritar. O corpo do prefeito despencou de quinze andares numa velocidade fulminante, atingindo o chão com um baque surdo, espalhando uma massa de sangue e órgãos pelo asfalto da avenida que passava ao lado do grande edifício.

O vento gelado atravessava o rosto de Casper que sorria insanamente. Nunca pensou que seria tão fácil dar cabo ao prefeito da cidade. Se soubesse antes, Cabo da Praga seria completamente diferente. Olhou para a cidade que se expandia diante de si e o pensamento de que tudo poderia ser seu foi inevitável. Tão perto da utopia, tão longe da realidade.

Alta Praga, Jardins, Avenida Inês Brasil. O Hospital Querubins poderia ser avistado ao fundo. Uma região com prédios reduzidos, e mais a fundo, o grande centro industrial. A torre do Complexo se destacava no meio deles.

— Eu sabia que você viria. – Uma voz sibilante surgiu de trás de Casper. O terno, a calça social, o olhar de serpente preso naqueles olhos azuis. Os passos lentos que se assemelhavam a uma cobra próximo de seu jantar.

— Você. – Casper respondeu ao ouvir a voz e os passos indicando sua aproximação. Virou-se e lá estava ele, arrumando o seu terno e sorrindo de forma macabra para Casper.

— Parece que nos encontramos de novo, não é Casper?

— Hórus.

XXX

Marcela abriu as portas de entrada da Falcon Magazine, exausta. Sentia se terrível pela morte de Lola. Quanto mais tentava-se afastar do esquema mortal, mais ela era sugada para dentro. Era sua condenação assistir á morte de todos eles enquanto não os ajudasse.

Edmundo e Debora a seguiram, segurando a mão dos outro, receosos. Debora estava viva, e pelo o que tudo indicava, tinha sobrevivido. Mas se tudo fosse verdade, a vez de Ed ainda estava para chegar, e eles não estavam exatamente prontos para assistir tal fim.

Gabriel seguiu os outros dois. Enquanto o médico ainda estava chocado com a sanguinolência que acabara de assistir, ajudava a amparar Carla e Diego que vinham logo atrás, desolados com tal cena. Diego não conseguia parar de repetir que a morte de Lola tinha sido sua culpa e que ele tinha assumido a responsabilidade de cuidar das duas, enquanto Carla parecia estar prestes a ter uma síncope com tudo o que acontecia.

Erick veio logo atrás, também cabisbaixo e pensativo. Era definitivo, estava dentro de uma lista de morte, assim como a amiga de sua irmã, Lena, estivera. Ao pensar em Lena, sentiu algumas lágrimas descendo pelo rosto. Se tudo corresse como correu com os outros sobreviventes, encontraria Lena. Mas não estava pronto para perder Stein.

Suzana entrou logo depois, seguida de Amanda. Enquanto a primeira estava triste pela perda de uma das pessoas do grupo, estava muito mais preocupada com Amanda, porque poderia ser que a garota se tornasse uma vítima potencial de uma estranha entidade que manifestara seu poder naquela noite.

E Amanda estava ainda mais envolta em preocupações. Parecia que sua vida estava prestes a desabar, como um castelo de cartas. Em poucas horas, a vida da garota foi de relativa calmaria á uma sobrevivente que estaria na mira de uma assassina implacável. Não, ela não estava pronta. Não estava pronta para partir.

— Vocês preferem subir para a cobertura? – Marcela perguntou, mas esperava que ninguém concordasse. Ao contrário de sua intuição, Ed, Debora, Amanda, Suzana e Erick fizeram “sim” com a cabeça.

— Eu fico com os dois aqui embaixo. – Gabriel falou, fazendo menção á Carla e Diego. – Eles não estão em boas condições de subir.

— Fiquem trancados em alguma sala então, ou se preferirem, depois subam. Décimo-quarto andar. – A diretora da Falcon disse , exibindo cansaço na voz. – Permaneçam seguros, não queremos maiores… – Ela suspirou. – Vamos.

XXX

Trilha sonora da cena:

[https://www.youtube.com/watch?v=RLkGKkfmgjU]

Holy water cannot help you now

A thousand armies couldn't keep me out

I don't want your money

I don't want your crown

See, I've come to burn your kingdom down

— Que bom que se lembrou do nome. A que devo a honra da sua visita?

— Saia daqui. – Casper respondeu, rangendo os dentes.

— Ora Casper, se quisesse que eu saísse já tinha me expulsado no que você chama de moradia. Esqueceu que está no meu local de trabalho?

— Você sabe que eu poderia te matar a qualquer momento, não é?

— Fez um ótimo trabalho, Casper. Você nem imagina.– Hórus falou olhando para o rombo que existia na vidraça. O vento ainda chicoteava a cortina, e balançava os cabelos bagunçados de Casper.

— Quem é você pra falar alguma coisa?

— Já disse. – Ele sorriu. – O seu pior pesadelo.

Hórus apenas não esperava o próximo movimento de Casper. Levado pela raiva que tinha sido segurada desde a visita infame do secretário no Complexo, o rapaz avançou sobre o outro, empurrando o mesmo contra a parede, apertando sua jugular contra a parede.

— Isso é o máximo que você consegue fazer, Casper? – Ele riu. – Você é tão previsível.

Casper apertou mais o pescoço de Hórus fazendo o homem ofegar. Ele olhava contra o outro e pode ver o brilho insano nos olhos de Casper. Ele poderia matá-lo a qualquer momento, Hórus sabia disso. Mas necessitava de somente alguns minutos e que tudo desse certo.

 Holy water cannot help you now

See, I've come to burn your kingdom down

And no rivers and no lakes can put the fire out

I'm going to raise the stakes

I'm going to smoke you out

— Você se acha tanto assim, não é? Acha que manda em alguma coisa… Vou te perguntar uma coisa. Você sangra?

— Não igual você. – Hórus disse, levantando uma seringa com a mão e avançando na direção de Casper. Um movimento rápido e Casper conseguiu se esquivar, libertando Hórus. Olhou para o seu braço, e então viu que o conteúdo da seringa não tinha entrado em seu corpo, mas havia o arranhado. Um filete de sangue descia tingindo a sua pele branca de uma coloração rubra.

— Acho que já será o bastante. – Hórus respondeu, segurando a seringa entre as mãos.

— QUE MERDA VOCÊ FEZ? – Casper esbravejou, segurando o seu braço. O mesmo ofegava ao perceber que o sangue corria cada vez mais pelo seu braço.

— Será interessante ver você como um infectado. – Hórus sorriu.

— O vírus…

Casper então travou. Tinha escapado de tantos infectados, matado tantas pessoas, acabado até mesmo com o prefeito da cidade… E agora, o vírus tinha se instalado nele. Em pouco tempo, ele seria somente mais um infectado… Mais um número nas estatísticas, mais um acéfalo que andaria pelas ruas atrás de carne.

Ele sentiu a fúria aflorando como nunca em seu íntimo, a loucura tomando total controle do seu ser. A ira que Casper sentia era sobre-humana. Não, ele não deixaria isso barato. Ele não deixaria.

Seven devils all around me

Seven devils in my house

See, they were there when I woke up this morning

I'll be dead before the day is done

Hórus não viu o exato momento em que Casper o derrubou no chão, fazendo a seringa deslizar pela sala. Desarmado, Hórus tentou levar as mãos ao rosto, mas não adiantou.

— Se eu vou, você vai comigo. – Cuspiu na cara de Hórus.

Vários socos e murros foram dados no rosto do secretário, e Casper sentiu o barulho de dentes se quebrando. Hórus segurou então no cabelo de Casper e o jogou o mesmo contra o chão com um baque surdo. A boca do secretário sangrava e os cabelos estavam desgrenhados, mas ele ainda olhava com escárnio para o traficante. Casper se levantou e investiu mais uma vez contra Hórus, desta vez impedido pelo mesmo, que segurou a mão do mesmo e começou a torcê-la. A dor tomou conta do traficante, que se contorceu numa careta, caindo no piso.

Hórus se aproximou de Casper e pisou em sua barriga, fazendo o ar do mesmo escapar.

— Deixa eu te contar um segredo, Casper. Eu sou imune ao vírus.

And now all your love will be exorcised

And we will find your saints to be canonized

And it's an even song

It's a melody

It's a battle cry

It's a symphony

O traficante olhou com profundo ódio para o secretário, que então apontou na direção da vidraça quebrada com satisfação.

— Acho que você vai gostar do que estou vendo. – Ele disse, retirando o pé de cima de Casper. O mesmo investiu rapidamente contra Hórus, derrubando o secretário no chão, mas este não conseguiu retirar o sorriso do rosto.

— Olhe para a vidraça, Casper. Olhe para o seu Expurgo.

XXX

Seven devils all around you

Seven devils in your house

See I was dead when I woke up this morning

I'll be dead before the day is done

Before the day is done

— Vamos! Vamos, rápido! – Matias disse, empurrando algumas pessoas para fora do Complexo. Ele ajudava os habitantes do Complexo a escaparem do grandioso incêndio que tomava conta dos prédios, que começou repentinamente. Todos interligados entre si, somente facilitou para o fogo se espalhar pelos edifícios rapidamente.

Um grito de uma mulher chamou a sua atenção, advindo da área próxima do seu laboratório. Ele correu na direção da área, e viu que uma mulher havia ficado presa entre as ferragens de uma estrutura que caíra. Ela estava viva, mas não por muito tempo.

Ele olhou na direção da área onde ficava o seu laboratório, agora envolta por chamas. Sentiu a sua vida desabando diante dela, toda a sua identidade se esvaindo, em meio ás coisas que perdia em meio ao fogo. Mas um pensamento inevitável veio á sua mente.

Os líquidos inflamáveis. Oh não.

Ele já sabia o que iria acontecer e suspirou profundamente. Uma grande explosão surpreendeu o rapaz loiro que foi arremessado á vários metros da área, enquanto a mulher foi queimada instantaneamente pelo fogo. Matias aterrissou alguns metros á frente, com um barulho de ossos se quebrando contra o duro chão da fábrica. O rosto do jovem foi completamente chamuscado e carbonizado e o cabelo anteriormente loiro, agora estava envolto em chamas. As roupas do rapaz haviam ganhado furos em diversos pontos, mas ele não sentia mais nada. Matias estava morto.

They can keep me out

'Till I tear the walls

Heloisa sentia as chamas balançarem ao seu redor. Ao abrir os olhos viu que estava envolta em um grande corredor em chamas. Olhou para cima, e viu que estava sendo carregada por alguém.

Suas pernas balançavam enquanto sentia o suor escorrer pelas suas têmporas, enquanto Heloisa se sentia como numa reprise da erupção do vulcão na Ilha Vermelha.          Então, a pessoa que a carregava falou:

— Vai ficar tudo bem, Heloisa.

Till I take your heart

And take your soul

Suzana olhava pelas janelas da Falcon Magazine sua vida sendo literalmente queimada diante de si. Agora ela estava completamente sozinha de fato, enquanto via o Complexo ser cozinhado em meio às chamas.

Os outros sobreviventes do Expurgo observavam a jovem de longe, enquanto via o incêndio tomar proporções catastróficas. Lágrimas escorreram pelo rosto de Suzana enquanto a mesma passou a mão em seu ventre. A outra mão permanecia encostada na grandiosa vidraça.

Eu te disse, Casper. Eu te disse.

And what has been done

Cannot be undone

Casper caiu ajoelhado no chão ao ver a grande fumaça que tomava conta da cidade de Cabo da Praga, advinda de Baixa Praga. Vinda do Complexo.

Não bastava o vírus, agora todo o seu império era transformado em cinzas. Não só o seu império, mas as únicas pessoas com quem Casper se importava. O Expurgo tinha sido feito para ser a glória dele, mas se transformou em sua própria ruína.

Então faça isso pelo seu filho, Caleb. Pelo nosso filho.

Suzana… Tinha ficado no quarto dormindo que ele saiu. Os pontos foram rapidamente ligados e então finalmente sentiu sua vida desabando completamente, A sua mulher, o seu filho…

— Eu disse que tinha informantes, Casper. Mas fizeram um serviço melhor que eu imaginava.

Mas Casper simplesmente não conseguia entender o que se passava. Ele só podia deixar que as lágrimas o levassem. Não existia mais pelo o que lutar, não existia mais solução para tudo.

A divisa entre o racional e a loucura, que sempre estivera por um fio tinha sido quebrada.

In the evil's heart

In the evil's soul

Arthur saiu do grande corredor em chamas, sentindo a brisa quente do vento na parte externa do Complexo. Olhou para trás e viu o grande edifício sendo engolido pelas altas labaredas. Andou mais um pouco com Heloisa no colo, até deixar a negra sobre o chão. Ela se levantou, um pouco cambaleante e olhou para quem a tinha tirado do Complexo.

— D?

— Arthur. – Ele sorriu.

— Você… Você se lembra? – Heloisa falou, surpresa.

— Eu sei quem eu sou agora, Heloisa. Eu sei.

Mas no fundo, Arthur sabia quem realmente era. Virou-se na direção da grande parede flamejante e sorriu. Todo aquele tempo de disfarce como um simples doente mental tinha dado certo. Arthur tinha incorporado Desconhecido de tal maneira que qualquer um teria acreditado nele. Mas a verdade é que somente duas pessoas sabiam que D não passava de um disfarce, e ele era na verdade um dos maiores assassinos daquele lugar.

A primeira tinha sido a sua companheira na destruição do Complexo. Arthur sempre tinha sido próximo de Hórus, e tinha se transformado no principal informante do secretário sobre o que acontecia naquele lugar. Ele era como um agente duplo, um verdadeiro espião.

A segunda tinha sido sua companheira desde que chegaram no Complexo juntos e que acobertava o mesmo, sem saber que ele também trabalhava para Hórus. Mas Arthur também tinha sido fiel á tal pessoa, e foi assim até ela julgar que não precisava mais de Arthur e começar a destratar o mesmo. A vingança tinha sido completada com sucesso, e agora essa pessoa deveria estar chorando em algum lugar.

O seu irmão mais novo.

Casper.

Seven devils all around you

Seven devils in your house

See I was dead when I woke up this morning

I'll be dead before the day is done

Before the day is done

Amanda sentia-se como no dia em que perdera a família. Enquanto Suzana se debulhava em lágrimas, ela apenas observava estática a cena se desenrolando diante da janela. O Complexo, apesar de ser um local duro e terrível acabou se tornando sua casa e agora cada dia que passara nele se transformava em pó.

O destino se tornava cada vez mais incerto para Amanda, e somente caminhava para um final nada feliz. Ainda estava chocada pelo fim de Lola e pelo fato que supostamente estar em uma lista mortal, e o incêndio do Complexo só jogava a garota cada vez mais no fundo do poço.

Pensou em Heloisa e sua proposta de adotar a garota. Será que ela tinha escapado do incêndio? Heloisa quebrara o estereótipo que Amanda tinha de que todos os ricos só se preocupam consigo mesmo, ela havia mostrado mais. Mostrado que era humana de fato e Amanda agora a admirava realmente. Mas se a teoria da morte estivesse correta, toda aquela proposta de uma vida nova tinha evaporado… Pensou também em Matias e D. Eles tinham ficado no Complexo.

Será que eles conseguiram sair a tempo?

Por fim, lembrou-se de Bart e retirou do bolso de sua calça a foto que ele entregara para Amanda. Bart e Amanda se abraçavam fortemente, um verdadeiro casal apaixonado. Ela apertou a foto contra o peito, torcendo para que Bartolomeu tivesse escapado com vida do incêndio.

Abaixou a cabeça e as lágrimas começaram a cair, enquanto Cabo da Praga era tomada pela espessa fumaça.

Seven devils all around you

Seven devils in your house

See I was dead when I woke up this morning

I'll be dead before the day is done

Before the day is done


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Notas finais do capítulo

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