O Poema Dos Surdos escrita por Nena Lorac


Capítulo 3
Estrofe I (Parte 2)


Notas iniciais do capítulo

"O teu silêncio é harmonioso
O teu jeito expressivo é muito gostoso..."

(Parte 2)



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Ele já estava na minha casa a quase um mês, e durante esse tempo, eu mal aprendi aquele alfabeto complicado. Tentei aprender nos primeiros dias, mas logo desisti. Minha vocação era ser um vagabundo que vai preso pela polícia toda vez que perde o controle, e não um especialista em língua de sinais.

Nesses dias de convivência, eu comecei a me acostumar com a presença dele por perto, mas era um saco ele insistindo para que eu treinasse aquilo. Ele sabia escrever e eu sabia ler. Nossa comunicação morre aí. Não me interessava nem em saber mais sobre ele e como ele me ajudaria. Só queria ficar no meu espaço e sofrer sozinho por ficar preso nessa cidade por um ano.

Quando voltei a ler uma revista que eu tinha pegado mais cedo, nem pude perceber que ele tinha saído do meu lado e ido para a cozinha. Só me dei conta que a criatura não estava perto quando eu senti um cheiro de comida rondando o ambiente. Dei um salto pensando que tinha deixado alguma coisa fervendo desde o café da manhã e corri em total desespero até o fogão. Para minha surpresa, ele estava fazendo nosso almoço.

xXx

Aquela comida era maravilhosamente saborosa. Nem quando eu morava com meus progenitores eu pude saborear algo tão gostoso. Eu o encarava a cada garfada, e cada vez que eu depositava meus olhos na sua face, ele me jogava um sorriso. Isso era constrangedor. Até o momento ele não percebe que não adianta ficar aqui, pois não tem como me ajudar. Acabei olhando o meu prato vazio e dei um sorriso amarelo perante aquilo, e logo em seguida, enxergo um par de mãos segurando um papel.

“Você parecia muito magro. Por isso te fiz essa comida.

Que bom que gostou.”

Eu agradeci em voz alta, mas ele logo me relembrou de que era surdo, então, eu não soube como agradecer. Mas logo pude ver sua mão segurando a minha e a levando até a minha testa. Arrumou meus dedos, deixando a palma da mão livre, e fez um pequeno movimento com ela. Não consegui entender o que ele estava planejando, mas deixei que fizesse.

Terminando aquele processo todo, ele escreve em um papel que era daquela forma que agradecíamos em língua de sinais. Após isso, ele sentou, me encarou por poucos segundos e começou a falar em sinais comigo. O único que eu entendi foi o “obrigado” no final, pois ele acabou de me mostrar, mas o resto daquela frase se tornou um código.

“Vou dizer essa frase todo dia, até você compreendê-la.”

Não sei ao certo como dizer, mas eu fiquei curioso para saber o que ele tinha me dito. Mesmo que eu perguntasse, ele não iria me responder. E mesmo eu não querendo aprender aquela língua, o modo como ele falava nela era encantador. Mas como ele pretendia me ajudar usando esse meio, ainda era uma visão turva.

xXx

Pela primeira vez, eu me vi estudando aquele pedaço de papel, mas eu tentava lê-lo sem ter aquela pessoa por perto. Seria estranho demais ele testemunhar o meu pequeno interesse por aquilo. Então, sempre antes de dormir, eu dava uma olhada. Incrivelmente, eu consegui escrever meu primeiro nome seguindo aquelas informações.

Mas numa manhã, eu me deparo com ele me acordando, e ele fez dois sinais com a mão que eu achei estranho, mas ignorei e levantei. Depois daqueles dois sinais desconhecidos ele começou a mover a mão na minha frente datilologando uma pequena frase. Mas incrivelmente, eu consegui ler o que ele estava escrevendo.

“Você acabou de me dizer bom dia?”

Ele tinha escrito “Bom dia” letra por letra, e por impulso, eu também comecei a mover minha mão copiando aquelas mesmas letras, obviamente, não na mesma naturalidade que ele, mas eu consegui reproduzi-las. Quando eu percebo, ele está muito alegre por eu saber um pouco de datilologia. Isso realmente o deixou animado, e de certa forma, a mim também.

Depois que eu me organizei de manhã, ele tentou me puxar para a mesa para que pudesse me ensinar, e mesmo a contragosto, eu fui. Ele começou a repetir o alfabeto datilologando para mim, e eu ficava apenas olhando, até que uma hora ele expressou uma cara de frustração. Ele pegou um papel e explicou que era para eu repetir o que ele fazia. Eu ficava cada vez mais irritado, pois já tinha conhecimento daquele alfabeto, afinal, eu li aquela folha durante as madrugadas. Mas mesmo assim, ele insistia. E foi assim que eu passei alguns dias aprendendo o alfabeto e os números.

xXx

Numa madrugada, eu levantei para tomar um pouco de suco, e percebi que as luzes da televisão refletiam em algumas paredes. Fui andando em direção à sala, e testemunhei aquele garoto olhando fixamente para a tela. Ele assistia a um vídeo caseiro. Um homem alto e um tanto grisalho estava segurando uma criança loira no colo, e uma mulher de cabelos castanhos dava as caras quando virava a câmera para si e sorria algumas vezes.

Percebo que no vídeo, todos falavam a língua de sinais, e que pareciam bem alegres ao estarem naquele local. Deposito meus olhos no meu pequeno tutor, e me deparo com ele reproduzindo alguns sinais enquanto olhava aquele vídeo, mas sua expressão era triste. Ele parecia que entraria no caos em poucos segundos.

Eu fui me aproximando dele, e sentei próximo, encostei em seu ombro o fazendo levar um pequeno susto. Fiquei o encarando com um ar de dúvida, e ele ficou desesperado procurando alguma coisa. Pegou um pedaço de papel que estava jogado no chão e foi atrás de algo para escrever. Eu aproveitei para olhar do que se tratava aquela fita, e o título me deixou curioso.

“Meus Professores.”

Me deparei com aquele título até ele voltar, ele veio correndo com o papel e me entregou. Apenas dizia para eu voltar a dormir e que era para eu esquecer daquele vídeo. Fiquei um tanto ofendido por ele me tratar como criança, então peguei o papel e a caneta e escrevi para ele parar de mandar em mim.

Visualmente, ele tinha ficado irritado, e apenas escreveu no papel que era o meu tutor e que ele tinha todo o direito de escolher como trabalhar comigo, e tudo o que ele fazia era para o meu bem. Mas eu fiquei tão irritado com aquela atitude dele que apenas escrevi algo que me arrependo até hoje de tê-la escrito.

“Você é apenas um deficiente. Um agregado da polícia.

Só está aqui por pena dos outros. Um inútil!”

Após ler isso, ele abaixou a cabeça e ficou parado. Eu percebi que ele estava chorando, mas tentei não me abalar. Mas não consegui acreditar quando, do nada, ele levantou a mão e me deu um forte tapa no rosto. Estava dormente, e provavelmente, muito vermelho, mas eu não consegui revidar. Eu apenas fiquei parado, esperando processar o que tinha acontecido. Não consegui entender o motivo da agressão. Eu apenas escrevi o que pensava ser a verdade, mas logo eu descobri o real motivo quando ele terminou de escrever.

“Até posso estar aqui por caridade da polícia, mas eu tenho confiança no meu trabalho.

O tapa que você levou foi por ter me chamado de deficiente e de inútil.

Nunca mais diga isso!”

Eu tinha feito uma enorme besteira ao denomina-lo daquele jeito. Só vim aprender mais tarde o que toda aquela comunidade surda preza. Atualmente, eu me sinto um lixo por ter escrito aquilo, mas na hora, eu bem que mereci aquela agressão. Só lembro de vê-lo de joelhos, chorando, e eu o encarava, até tomar vergonha na cara e abraça-lo. Isso foi o meu pedido de desculpa. Foi a minha forma de dizer que fui um idiota. Foi a chave de entrada para começar a desenvolver a minha relação com ele.


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Notas finais do capítulo

* Alfabeto e numerologia em Libras: http://www.pead.faced.ufrgs.br/sites/publico/eixo7/libras/unidade1/alfabeto.JPG

* No Brasil, existe inúmeras variações para o mesmo sinal. Eu moro no Amazonas, e existe alguns sinais aqui que não existem em outros estados, ou que são diferentes dos sinais dos outros estados. Então eu estou procurando sinais mais utilizados para colocar como exemplo aqui, e um deles é o sinal de "Bom dia". Aqui no Amazonas, o primeiro movimento com a mão é ela abrindo no seu rosto, e o segundo é fazer um "D" com a mão e colocar perto da boca, mas a maioria que eu vi, o "D" segue uma linha da esquerda para direita na frente do rosto, então vou deixar o vídeo desse sinal aqui.

Vídeo do sinal de "Bom dia": https://www.youtube.com/watch?v=4H8IZwHHgSA

* O sinal de "Obrigado" que eu descrevi, foi a forma mais informal. A maneira mais formal é feita com as duas mãos (uma tocando a testa e a outra próximo ao peito). Mas de maneira rápida e prática, muitos surdos usam apenas a mão na testa.

Sinal de "Obrigado" de maneira formal: https://www.youtube.com/watch?v=_unheC98OwE

* Em relação ao capítulo anterior, o Francis falou uma curiosidade, que foi em relação a leitura de lábios. De acordo com a minha professora de Libras, a leitura de lábios chega quase a ser um "talento especial". Não é todo surdo que lê lábios, e os que leem, entende uma faixa de 70% do que foi dito. Eles pegam as palavras que conseguiram entender e formam a frase. Mesmo que o surdo saiba ler lábios, não é certo que a informação tenha sido totalmente passada.

* NUNCA, JAMAIS, EM HIPÓTESE ALGUMA, diga para um surdo que ele é deficiente e inútil. Principalmente, o deficiente. A comunidade dos surdos não se consideram deficientes. Eles preferem que os ouvintes o chamem de Surdos, pois é isso que são. E se pararmos para pensar, fora a questão da surdez, o surdo tem tudo o que qualquer pessoa normal tem. Eles podem trabalhar, andar, brincar, comer do mesmo jeito que todo mundo. E outra coisa: não tenha pena e nem medo deles. Lembre-se, eles são como qualquer um.

—---- xXx -----

Espero que vocês tenham gostado desse capítulo. Querendo que ele seja informativo também~

Bem, eu vou entrar de férias a partir de sexta, mas nesse período, a minha professora de Libras passou um trabalho bem legal para a minha turma produzir, que é um jornal cômico para os surdos. Eu vou ficar com o a parte de fazer um comercial de maquiagem. Espero que saia bem engraçado. Então eu também vou ficar estudando os sinais que eu vou ter que utilizar para apresentar isso.

Eu tentarei atualizar outras fics também durante esse tempo. E eu espero que alguns de vocês também estejam acompanhando!

Até o próximo capítulo~



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