O Poema Dos Surdos escrita por Nena Lorac


Capítulo 2
Estrofe I


Notas iniciais do capítulo

"O teu silêncio é harmonioso
O teu jeito expressivo é muito gostoso..."



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Estou entre quatro paredes novamente, sendo que em uma delas, existiam barras de ferro. Já contei mais de 100 dias que eu estou aqui, encarcerado, mas hoje eu saio. Saio para ver o verde da floresta, sentir o cheiro de boa comida, tocar meu violão velho e por ventura, ouvir uma boa música. Me arrependo do que eu fiz, pois meu intuito não era enlouquecer e acabar preso.

Mas eu não pretendo voltar para o passado e arrumar as coisas. Só quero tirar uma lição disso. Durante todo esse tempo, convivi sozinho, apenas meus pensamentos e eu. E depois de algum tempo, eu começava a recitar poemas que a minha imaginação criava. Eram sem sentido e de pouco valor para os grandes críticos literários, mas eram meus poemas, que durante todo esse tempo preso, me deixavam mais a vontade com todo aquele lugar.

O guarda veio, abriu a jaula e disse claramente que eu poderia ir. Me levou algemado até a porta, e de lá me soltou. Massageei meus pulsos e dei alguns suspiros. Então o guarda colocou a mão em meu ombro e me disse algo que jamais pensei que iria acontecer após ser solto.

“Francis, vamos te enviar um tutor.”

Esse tutor seria alguém para moldar a minha agressividade e reduzi-la a zero. Alguém que prevenisse que eu enlouquecesse e acabasse agredindo alguém mais uma vez. Mas eu não queria. Não quero ficar a mercê de alguém que nem conheço. Entretanto, se eu recusasse, eu voltaria para aquele quadrado de metal. Tentei engolir meu orgulho e esperar a minha vida ser controlada por alguém.

xXx

Fui escoltado até chegar no cubículo que eu chamo de casa. A minha noção de liberdade foi um tanto errônea, afinal, colocaram uma tornozeleira em mim. Eu deveria ser vigiado por um ano até que eles acreditassem num laudo que eu poderia viver tranquilamente na sociedade.

Eu só podia acatar essa ideia e esperar esse um ano acabar. Fiquei em casa, ordenado pelos oficiais, a esperar meu tutor. Enquanto ele não chegava, eu fui olhar o estado da minha pequena residência. Estava suja, nojenta, com cara de que foi destruída. Não teria paciência para limpar naquele momento, então fui atrás da coisa mais lógica a se fazer: fumar. Assim eu paro de me preocupar com coisas pequenas.

Percebi barulhos vindo da porta. Alguém estava batendo, e era um tanto irritante. Já meio irritado e sem muita paciência, eu a abri e dei de cara com um pequeno ser de cabelos loiros que usava óculos. Ele me acenou amigavelmente e ficou me encarando com um pequeno sorriso. Demorei um tempo para processar que ele era o meu tutor devido as pastas que estava carregando com o emblema da polícia. Então dei passagem e disse para ele ficar a vontade. Ele apenas andou um pouco e olhou a minha casa de cima a baixo. A expressão dele parecia ser de nojo, misturada com reprovação.

Ele apenas apontou para a sala, que estava uma bagunça, e fez uma cara de dúvida. Não aguentei ver aquilo. Apenas dei um grito e me virei para pegar um cigarro. Estava me tratando como criança e queria que eu limpasse aquele lugar? Não fui muito com a cara desse ser. Mas pelo visto ele ignorou o meu jeito de dizer não e puxou uma folha e me deu. Nela estavam escritas as condições que eu teria que me submeter para viver nessa condicional, e como ele trabalhava.

Não era muitas coisas complicadas que eu deveria me restringir. Apenas não sair da cidade e me adequar com o meio de trabalho daquele cara. Se eu fizesse isso, estava tudo bem eu viver na condicional por um ano. Depois ele me entregou outra folha. Era a ficha dele. Continha todos seus dados para que eu soubesse quem realmente iria me “ajudar”. E enquanto eu lia sua ficha, algo me chamou atenção sobre aquela pessoa: em momento algum eu o vi abrir a boca para falar comigo. Ele apenas fazia caretas e apontava para as coisas. Desisti de ler a ficha dele até o fim, e devolvi a folha. Sabia seu nome e sua idade, e já era informação demais.

"Matthew... 22 anos... não gosto de você."

Quando ele guardou a folha, começou a procurar outra coisa dentro de sua pasta de documentos. Pensei que era mais uma coisa chata para ler, até que eu me deparo com um bando de desenhos de mãos fazendo vários gestos. Eu tentei entender aquilo e me desesperei. Comecei a gritar com ele, e sem muita resposta aos meus gritos, eu apontava para a folha com todas aquelas mãos desenhadas e comecei a questionar o que ele estava fazendo.

Demorou um tempo até eu perceber que quanto mais eu falasse, menos isso iria adiantar, pois ele apenas apontou para os ouvidos e balançou a cabeça em forma de negação. E a partir daí eu entendi com que tipo de pessoa eu estava lidado. Como um tutor surdo iria me ajudar?

xXx

Os dias passaram, e ele ainda insistia naquele pedaço de papel com mãos desenhadas. Eu fui ficando cada vez mais irritado, mas eu não podia bater naquele sujeito. Apenas larguei aquele pedaço de papel e fui para o sofá. Mas ele era insistente. Sentou próximo de mim e começou a rabiscar um pedaço de papel. Quando terminou, ele me deu.

“Apenas quero ajudar,

mas você precisa aprender os sinais.

Conseguirei te ajudar se você aprender.”

Até pensei em responder falando, mas lembrei que a criatura era surda, então desisti e permaneci em silêncio. Ele me olhava fixamente enquanto eu sempre desviava meus olhos. Comecei a lembrar dos dias que eu estava naquela jaula. Lembrei dos poemas que eu recitava para me acalmar, e sem pensar muito, eu comecei a falar um deles que passou em minha mente.

Estava na terceira estrofe quando me deparo com o ser me cutucando e segurando outro pedaço de papel. Ele queria que eu lesse novamente aquilo, e pelo visto ele era curioso em relação ao que as pessoas falavam. Realmente transparecia a sua dúvida sobre o que eu estava dizendo. Achei até estranho, pois pensei que todos os surdos pudessem ler lábios. Mas em resposta aquela dúvida, eu apenas escrevi que estava recitando um de meus poemas.

Ele animou-se e começou a escrever novamente. E mais uma vez, ele me deu o papel para que eu lesse. Ele estava animado... mais do que o normal.

“Você poderia escrever um de seus poemas para mim?

Adoraria recitá-los.”

Fiquei na dúvida de como ele faria isso. E movido por curiosidade, eu escrevi as quatro míseras estrofes do meu poema em um outro papel. Realmente, eu não era um exímio poeta, só fazia aquilo para me distrair, mas meu poema pareceu ganhar vida quando ele levantou e começou a recitá-lo em língua de sinais. Suas expressões eram fortes, e os movimentos com as mãos eram belos. Nunca que eu imaginaria que alguém personificasse um poema com o corpo, ao menos, não daquela forma.

Quando ele terminou, eu aplaudi. Mas fui repreendido. Pelo visto, não aplaudimos os surdos desse jeito. Ele escreveu em um papel como eu deveria fazer e me mostrou. E por um segundo, naquele dia, eu realmente obedeci ao que ele pediu.


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Notas finais do capítulo

* A primeira coisa que acontece quando você inicia o estudo em Libras com alguém é receber uma folhinha com o alfabeto datilologado. Independente se seu professor é surdo ou ouvinte.

* Não se aplaude os surdos batendo as palmas. Eles não escutam, não tem como eles ouvirem os aplausos. O sinal de aplausos é deixar as mãos abertas e movimenta-las bem rápidos para a direita e para a esquerda. Mas esse aplausos só é feitos para surdos. Qualquer pessoa não surda recebe o aplausos que todos estamos acostumados. E sim, se você aplaudir um surdo da maneira incorreta, é considerado uma ofensa.

Vídeo do sinal de "aplaudir" para surdos: https://www.youtube.com/watch?v=msCiFW5SawM

—---- xXx -----

Espero que tenham gostado desse primeiro capítulo.
E na verdade, eu estava pensando em postar essa antes da fic do que o Canadá é cego. Mas fazer o que, né??

Enfim, até o próximo capítulo~



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