Sputnik escrita por tendercholeric


Capítulo 2
II – yet he saw her, like the sun, even without looking




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rosemary
heaven restores you in life
coming with me
through the aging, the fearing and the strife

– Interpol; EVIL

sputnik

;

afeto; em partes

sputnik II – yet he saw her, like the sun, even without looking

A beleza está nos olhos de quem vê; ou, pelo menos, é o que dizem.

No momento em que seus olhos azulados caíram sobre o rosto de Natalya – tão pequena, tão frágil, pele tão clara quanto o primeiro floco de neve a cair no inverno – Yekaterina decidiu quase instantaneamente que a menina seria a bonita da família.

A decisão foi rápida, tanto quanto um olhar apaixonado trocado em segredo debaixo da luz do luar; uma sementinha de amor e afeto logo ali, crescendo e se enraizando dentro do seu coração. Sutil, quente, como o verão que sempre chegava e logo ia embora sem nem ao menos avisar. E – de fato – foi como se apaixonar. A mais velha dos filhos de Kievan Rus sentiu de imediato o apego tomando conta de si assim que pôs os olhos na menininha que sua mãe trazia para dentro de casa, seu sorriso se alargando assim que ouviu a adulta dizer:

“Essa é Natalya, ela será irmãzinha de vocês agora.”

A garota parecia uma daquelas bonecas de porcelana que ela sempre sonhou ter; olhos arroxeados e cabelo platinado, bochechas rosadas e mãozinhas tão delicadas que pareciam poder quebrar ao menor descuido. Mãos que não foram feitas para trabalhar, um rosto que merece mais do que o vento gelado do campo. Beleza pura e genuína, não uma simples garota ajeitada para parecer melhor.

( sim, ela seria a bonita da família. nem que Yekaterina tivesse que trabalhar dobrado. )

A mais velha estava tão encantada que mal percebeu a mão de Ivan apertando a sua com mais força, um olhar carente e enciumado agraciando seu rosto assim que a outra menina entrou na casa.

Natalya é a bonita da família.

Yekaterina trabalhou o suficiente para que essa sempre fosse a verdade. Trabalhou no campo dia e noite; centeio, trigo, cevada o que quer que fosse. Trabalhou enquanto Kievan Rus ainda era viva e forte, trabalhou quando ela morreu e as únicas coisas que lhe deixou foram os olhos azuis e o cabelo dourado. Trabalhou para que eles – Ivan, querido Ivan; doce, doce Natalya – pudessem comer, mesmo que fosse sempre tão pouco. Trabalhou, trabalhou, trabalhou...

Hoje em dia ela usa luvas para esconder as mãos rachadas.

Ela nunca foi das mais vaidosas ­– mal sabia passar batom, o cabelo sempre preso meio sem jeito, seu sorriso tão desajeitado – mas tinha uma vaga noção das coisas. Não era bela – ou linda, muito menos – não eram esses os seus objetivos quando cortava maços de trigo com aquele vento gelado e impiedoso cortando o seu rosto; e agora era tarde demais para se preocupar quando olhava-se no espelho ( sempre foi tarde ).

O espelho a encara de volta. Yekaterina está sentada, mãos cobertas com luvas e Ivan logo atrás dela.

( tesoura prateada em mãos e um meio sorriso no rosto. )

Os superiores estão todos a observar, sussurros de aprovação preenchendo o quarto. Eles falam entre si de como propaganda e imagem eram importantes, do quanto era necessário construir uma figura sólida para representar a União, o povo precisa de um exemplo a ser seguido. Ivan, ah Ivan sempre foi o mais alto e imponente dos três filhos de Kievan Rus; com seu nome que carregava a Deus e seu olhar gelado como o Volga, tinha a voz firme e o sorriso feito de aço ( e Katya não pode negar o quão equivocados eles estão. não conhecem Ivan como ela. aço derrete, aço pode ser quente, aço protege ). Ivan era a imagem de um líder, e eles não podiam estar mais orgulhosos dele ao fazê-lo desfilar pelas ruas de Moscou e Leningrado. Já Natalya, Natalya era tão bela quanto era mortal. Beleza é um mero enfeite nesse mundo feito de frivolidades, mas suas facas e língua eram afiadas e sempre tão certeiras. Ela era a figura de uma arma ( e – de novo – não poderiam estar mais errados. Natalya era muito mais do que isso, mais do que a menina cega e obediente que eles insistiam em enxergar ).

E Yekaterina? Eles só balançavam suas cabeças desapontados quando falavam de Yekaterina. Era gentil demais, sorria demais, se preocupava demais e machucava de menos. Seu nome carregava “pura” em seu significado, os olhos eram quentes por mais azuis que fossem, o cabelo era longo e preso com fitas e tranças e flores.

( “o cabelo de uma pacifista” eles dizem entre si e ela pode sentir os dentes rangendo com aquela afirmação. seu cabelo era longo quando ela lutava junto aos cossacos, foi longo quando os mongóis vieram, quando Sadik os atacou. seu cabelo é longo agora que eles são todos um só. ela lutou com unhas e dentes e lágrimas; luta até hoje, e não consegue aceitar que eles a chamem assim, de fraca. Katya engole todas as palavras que gostaria de dizer, sente todas elas pairando em seu estômago quando se lembra de que humanos têm uma coisa chamada memória seletiva. )

Ela não se acha bonita e nem é vaidosa, mas seu cabelo longo é a única pontinha de orgulho que ela gosta de manter. É dourado, igual ao de sua mãe, e Ivan e Natalya o trançavam quando ainda eram crianças e eles não tinham muito do que se orgulhar ou chamar de seu. Pode ser fútil, frívolo, seja lá qual for a expressão que você gosta de usar, mas seu cabelo era precioso para ela. Havia crescido enquanto ela trabalhava, enquanto eles cresciam junto, era esforço e o campo de trigo e centeio. Era seu e era belo.

As fitas logo vão ao chão; as flores se desmancham nas mãos de Ivan enquanto ele desfaz as traças e solta aquele cabelo, o snip snip da tesoura agora preenchendo o quarto enquanto os chefes observam – encantados – a nova imagem que se ergue.

( e a cada mecha que cai Yekaterina pode sentir seu coração se partindo )

Quando Ivan acaba, não há mais espaço para flores ou fitas ou tranças. O cabelo antes longo agora estava curto, curto como o de um homem. “O cabelo de uma guerreira” eles dizem enquanto aplaudem, “a imagem perfeita do exército vermelho”. Ela só pode sorrir e agradecer, guardar para si o pensamento de que – de novo – eles estão errados.

( ela não é um exército. eles não são uma união. são tão bons quanto seu povo – seus líderes – e ah, sabe lá Deus como isso vai acabar. no fim, imagens são só imagens e o espelho reflete carcaças )

Mais tarde quando estão sozinhos Katya pode sentir os lábios de Ivan pairando sobre sua nuca – agora exposta – como um fantasma. Ele sussurra ( me perdoe; me perdoe ) e segura sua mão com força; um beijo aqui, outro lá ( vai ficar tudo bem ) e mil palavras não ditas ( mas sentidas ).

Quando Yekaterina olha para ele, percebe que ainda há algo que pertence a ela e que ninguém mais pode tomar. Ela sorri.

– Está mais bonito assim. Obrigada, Vanya.

( Ivan concorda, mão se ocupando em acariciar as mechas loiras. Katya sempre foi a bonita da família. )


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Notas finais do capítulo

Perdão pela demora, o trampo nessa época do ano é especialmente um terror. Agora estarei de férias até quase o final de janeiro, então espero ter mais tempo pra escrever ( lmao, se a preguiça não me vencer ).

Ficou muito mais sutil ( meh ) do que eu esperava eh... Dei uma revisada nesse capítulo e no primeiro, mas é capaz de ter escapado alguma coisa como já é de praxe. O título dessa vez é uma frase de "Anna Karenina" do Leo Tolstoy. Brincando com conceitos de beleza e imagem, ficou mais pra um character study do que romance/relacionamento de fato, perdão. O próximo vai ser melhor, assim espero lmao

Se alguém tiver alguma sugestão de tema ou algum pedido para one-shot, fique à vontade para falar. :))

E em uma última nota, eu imagino que a Ukraine seria a mais parecida com a mãe deles ( Kievan Rus ), mas é, isso é só um headcannon mesmo.

Muito obrigada para quem leu/favoritou/está acompanhando!

Um beijo, e boas festas ~