Sputnik escrita por tendercholeric


Capítulo 3
Intermission – Laika the Space dog




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memories warm you up from the inside.
but they also tear you apart

— Haruki Murakami; KAFKA ON THE SHORE

sputnik

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afeto; em partes

intemission – laika the space dog

laika— uma cadela russa que ficou conhecida por ser o primeiro ser vivo a orbitar o planeta; foi lançada no espaço a bordo da nave soviética Sputnik 2.

Ao contrário do que a maioria acredita, Natalya é na verdade uma garota muito simples de entender.

Adora o cheiro de roupas novas, e adora ainda mais estreá-las sem motivo algum. Gosta do seu chá com mais limão do que mel e prefere dias de neve a dias de verão. Sua penteadeira sempre está organizada pela ordem em que usa os objetos ( escova, perfume, pó de arroz, batom ), mas seus sapatos geralmente ficam jogados debaixo da cama de forma que sempre acaba usando o primeiro que consegue alcançar pela manhã. Não se importa muito em ajeitar a cama já que vai usá-la de novo mais tarde, mas sempre dobra e guarda seus pijamas. É uma menina bem normal.

( não gosta muito de falar, talvez seja por isso que ninguém fora seus irmãos a conheça de verdade. )

É o tipo que gosta de guardar recortes de matérias interessantes do Pravda; suas mãos sempre tão firmes ao segurar a tesoura – dedos que caem delicadamente sobre o papel onde outra foto de Ivan havia sido impressa – um sorriso fazendo com que sua boca finalmente desistisse da sua usual linha séria e inexpressiva. Gosta de colar todos os recortes em um diário, tudo calculadamente alinhado nas páginas amareladas e cheias de memórias. Umas fotos e matérias dela mesma, outras de Katya, muitas de Ivan, uma ou outra sobre Toris, sobre a família.

Os jornais exageram muitas coisas, mas são um registro impresso do tempo e do espaço. Quando se vive durante séculos você percebe que mesmo sem querer pode acabar filtrando o que não importa e manter somente os fatos.

( e, se tem algo de que ela realmente tem medo, é de esquecer dos detalhes. )

Os superiores sempre falavam do quanto Ivan era forte, amavam sua postura ereta e poderosa diante do povo quando apareciam em público, gostavam de seu sorriso gélido e de seus olhos que eram da cor de feridas e machucados, da sua fala e palavras afiadas seguidas de uma voz tão macia quanto era assustadora; gostavam de como ele sempre parecia se divertir ao ferir alguém. Nunca souberam dos dias ruins, do quanto Ivan chorava de noite antes de dormir, sempre tão quietinho na esperança de que seus soluços não ecoassem pelos corredores daquela casa tão grande.

Era uma espécie de regra silenciosa entre todos eles; não falar sobre o fantasma que se lamentava de noite durante o café da manhã.

( e ela pode enxergar fantasmas. aquela casa não é assombrada. )

Se eles amavam tudo em Ivan então faziam questão de odiar tudo em Katya; talvez para contrabalancear, talvez por pura implicância ou um misto nojento dos dois. Odiavam-na quando ela fazia questão de acalmar Raivis que sempre chorava tão fácil assim como ela, a repreendiam quando demonstrava simpatia por qualquer um que não fosse considerado parte da família. Queriam que fosse como Ivan; firme, séria, gelada. Nunca devolvendo os sorrisos que recebia, jamais deixando que lágrimas escorressem pelo seu rosto. Haviam se esquecido, ao que parecia, esquecido que dos três Katya foi a primeira a erguer uma espada enquanto aprendia quando era necessário segurar o choro.

( podia se lembrar das palavras da irmã mais velha enquanto enterravam o que sobrara da mãe. ‘não leve a opinião dos humanos muito a sério, Talya. pra eles o que importa é o agora.’ as lágrimas já estavam todas secas como as flores cobrindo o rosto e o corpo de Kievan Rus. )

Demorou anos até que ela entendesse. Humanos vão, eles ficam. Para a humanidade eles ( que vivem para sempre ) podem ser resumidos a simples fatos rasos.

Natalya sempre soube que era muito mais do que uma poça; era um mar inteiro.

Sabia que os superiores a chamavam de burra quando estavam entre si. Paredes têm ouvidos e nelas ela tem amigas. Achavam que sua devoção era cega, útil, mas cega. Sua obediência era no mínimo digna de pena, a obsessão merecia olhares tortos, a sua beleza somente elogios.

Era como Laika, eles diziam. A cadelinha isolada do mundo.

Meninas normalmente se ofenderiam fácil ao serem comparadas com uma cadela, mas Natalya não conseguia gastar nem um quarto de esforço para sentir raiva deles; tampouco era uma menina. Seus ossos eram velhos demais para tal, com dedos feitos de cristal e costelas que escondiam um coração remendado pelo tempo. ‘Não leve a opinião dos humanos muito a sério, Talya’, sentiu a voz de Yekaterina ecoar e seu coração se aquecer, não era importante. Além do mais, cachorros eram bons. Amavam incondicionalmente àqueles que os cativavam, eram esforçados ao dar e ao demonstrar carinho, devotos e direitos, felizes na sua simplicidade. Obedientes e burros e cheios de amor por opção, assim como ela.

Ama Ivan. Sempre amou.

Ama o espelho que enxerga em seus olhos cor de violeta, ama suas mãos grandes e gentis e manchadas com sangue e carvão, ama o frio que o acompanha e ama seu sorriso caloroso e gentil. Sempre sentiu-se cativada por aquele menino que ansiava por companhia em seu lar tão vazio; o garotinho que fugia por medo, mas que as vezes ( quando ela ficava bem quieta ) cedia e ficava ao seu lado brincando na neve. Ama o homem que ele se tornou, as lágrimas escondidas e o coração enrijecido e todas as promessas de um lar feliz e contente e quebrado. Ama sua risada cruel e os cacos de vidro das garrafas de vodka estouradas no chão. As feridas, os machucados, tudo, tudo, tudo.

( ele não a ama de volta. não do jeito que ela quer. )

Mas tudo bem, sempre teve muito amor para dar. Mesmo que sempre limitada somente a seus irmãos; a lua e o planeta aos quais ela orbitava.

Ama Katya também. Ama o jeito que os dedos longos penteiam seu cabelo nos raros momentos em que ficam juntas, uma palavra doce e bem colocada pairando logo ao pé de seu ouvido. Ama o timbre da voz dela – forte, como o bater das asas de um pássaro, tão sutil quanto – e ama o jeito que a mais velha a mima sem parar. Gosta quando lhe faz bordados com flores e do modo que seus dedos machucam tão fácil com o simples espetar da agulha, adora as leves dicas aqui e ali de quando ela está prestes a chorar. Yekaterina sempre chora, e Natalya gosta de imaginar que cada lágrima que cai é como um floco de neve.

( como já disse; sempre preferiu os dias de neve aos dias de verão. )

Esses tempos têm sido confusos. Hoje não sabe dizer de quem sente ciúmes.

Não gosta quando estão juntos, das trocas de olhares tristes e cheios de histórias e palavras mal contadas. Odeia quando vê ambos caindo em silêncio, um silêncio confortável tanto quanto é melancólico. Odeia as mãos que se tocam e aquele sentimento infinito de que possibilidades se multiplicam e acabam tão rápido. Eles têm tempo demais sobrando, e nele só há corações partidos.

( podia apenas imaginar como foi; o que aquela cadelinha burra pensou enquanto observava o planeta e a lua a girar. )

Os superiores podem chama-la de burra, mas ela passa bem longe disso. Sabe que Ivan e Yekaterina orbitam e se atraem tanto quanto o mundo e um satélite. Sabe que o sorriso dos dois é quebradiço, partido em tantos pedacinhos quanto existem histórias e segredos que ela não pode tocar. Percebeu há muito tempo, antes de estarem todos juntos e antes de Kievan Rus deixa-los, depois de ser tarde demais para segurar o próprio coração e depois de perceber que não se importava.

Não se importa. Não quando Ivan lhe oferece um sorriso enquanto estão sentados juntos perto da lareira, Katya logo se juntando com a voz embalada em uma linda canção.

( terra, lua e a fiel laika entre eles. )


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Notas finais do capítulo

lmao quando eu disse que só seria atualizado quando desse na telha :’)

Como sempre, perdão pelos erros que podem ter passado. Críticas, sugestões de temas e etc são sempre bem vindos!

Vou editar esse comentário final mais tarde, no momento meu cérebro está fritando. Obrigada por ler se você chegou até aqui~