Anjo das Trevas escrita por Elvish Song


Capítulo 8
Dúvidas


Notas iniciais do capítulo

Depois do último capítulo, este aqui para me redimir, ok? Espero que gostem.



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Os dias se passaram depressa, e logo se completava um mês que as irmãs viviam com o Fantasma. A relação deste com Annika, se não melhorara, pelo menos não reincidira em enfrentamento como aquele da sala de música; ao mesmo tempo, ele não a tocara novamente – ao contrário, mantinha a maior distância possível da mulher, evitando-a claramente. Isso a aliviava e preocupava a um só tempo: estaria Erik tramando alguma coisa, ou apenas constrangido por seu comportamento imoral e indecente de três semanas atrás?

Ao mesmo tempo em que guardava na memória o que se passara entre eles, a mulher via o modo como Gabrielle seguia passos diametralmente opostos aos seus, aproximando-se perigosamente do Fantasma. Agora, ensaiavam juntos quase todos os dias, e já por uma ou duas vezes Annika vira sua irmã puxar Erik para uma dança, enquanto o piano continuava a tocar, sozinho. E era impossível interrompê-los, neste momento, onde dançavam mais como crianças do que como adultos, fazendo-o por puro prazer e alegria. Quando tal era a situação, a moça se afastava e deixava que a irmã se divertisse; Gabrielle não era uma garotinha indefesa, e saberia afastar Erik de si, se fosse necessário. Também não duvidava de que a menina lhe contaria sobre qualquer evento desagradável. Porém, de acordo com tudo o que a pequena dizia das lições com o Fantasma, das tardes passadas com ele, outro lado de Erik se delineava: um lado doce e gentil, que ele se esforçava para esconder, mas que a pequena desenterrara completamente, entre uma aula de música e outra.

Vendo a alegria de sua irmãzinha, Annika sentia uma dúvida terrível surgir em sua mente e coração: tudo aquilo em que acreditava, tudo aquilo que sempre pensara ser o certo, dizia-lhe que a liberdade era o estado natural de todo ser, e que não lutar por ela era reduzir-se a menos do que um animal... Mas de que lhe servia a liberdade, realmente? Ela era forte, e poderia sobreviver muito bem nas ruas – das quais até gostava – mas Gabrielle... Sua irmã tinha a saúde mais delicada, era magra e franzina, e certamente adoeceria no primeiro inverno que passasse nas ruas! Naquela casa, porém, dormiam em um quarto confortável, alimentavam-se dignamente, tinham roupas decentes para vestir e a agradável companhia de Madame Tremain, uma vez por semana. É verdade que não podiam sair do sobrado, nem mesmo para contemplar a rua, mas a criança não parecia afetada por isso. Estava antes em êxtase com suas aulas de música, com o novo amigo que arranjara, e mostrava-se feliz como nunca fora. Como Annika poderia destruir aquela felicidade, para levar sua irmãzinha para as ruas?

Se a criança parecia imersa num mundo de felicidade, a mulher, por sua vez, estava imersa em confusão: Erik a assustava com seu modo de ser; ela, que sempre pensara conhecer bem os homens e saber o que os motivava, não conseguia decifrar aquele enigma de máscara que era seu patrão. Ele parecia disposto a puni-la, mas isso era tudo o que descobrira. E não saber as motivações do homem a assustava, pois não havia como prever suas ações. Receava que, mesmo sendo o professor de Gabrielle, em algum momento ele se sentisse afrontado, ou irritado, e cumprisse as ameaças feitas a Annika de devolver a pequena ao antigo patrão... E se existisse esse risco, como ela poderia continuar ali? Como poderia deixar que Gabrielle continuasse ali? Pois certamente a rua ainda melhor do que voltar ao prostíbulo. A rua era melhor do que serem separadas!

Era com tais dúvidas na cabeça que, certa manhã, a moça saiu para o jardim: vendo o abandono do lugar, ela começara a repará-lo, retirando as ervas daninhas do meio das roseiras, podando estas últimas, livrando-se das pragas. Era um trabalho lento e dolorido – os espinhos se enterravam em sua mão com frequência – mas ela não se importava. Tratava-se de uma distração para sua mente fervilhante.

Estava podando mais uma roseira livre das parasitas, quando um assobio baixo a fez erguer os olhos, sorridente; reconheceria aquele assobio em qualquer lugar! Renard!

Empoleirado no muro como um pássaro ruivo, o rapaz sorriu para a amiga, que retribuiu; num salto alcançou o chão e a envolveu nos braços, dando-lhe tapinhas gentis nas costas. Renard a tratava exatamente como trataria seu irmão, o que incluía apelidos rudes e tapas nas costas quando se reencontravam. Isso a fazia rir.

– Renard – suspirou ela, feliz em sentir o abraço do amigo outra vez – Como nos encontrou?

– Eu sou o príncipe das ruas! – brincou o moço – um príncipe conhece seu reino. – e deixando-se cair no banco, mirou Annika de alto a baixo – é, rata das ruas... O cativeiro parece estar lhe fazendo bem! Parece até uma dama refinada – ele lhe beliscou a cintura, coisa que sempre lhe rendia um tapa da mulher – e até engordou! Olha só isso: você tem carne, também, além de ossos!

– Renard! – censurou Annika, jogando um punhado de folhas secas no jovem – não preciso de outra pessoa para me provocar, está bem?

Rindo, o rapaz se deitou folgadamente no banco, os cabelos ruivos caindo pelos ombros num emaranhado selvagem que lhe dava ar ainda mais travesso; porém, para a ladra, que o conhecia há muito tempo, estava claro que el tinha algo importante a dizer. Curiosa, perguntou:

– O que traz você aqui, Renard? Certamente não veio para olhar minha beleza. Você tem as suas amantes para isso.

– Tem razão, Annika. Não é uma visita comum – disse ele, levantando-se sério – Eu sabia onde vocês estavam, desde o começo. Coloquei alguns rapazes para vigiarem a casa, mas vocês nunca saíam... Então, fui atrás de descobrir quem é esse homem que as comprou.

– E? – ela mal ocultava o desespero para saber mais.

– Já ouviu falar do Fantasma da Ópera? – perguntou o jovem. Ouvindo aquilo, a moça ficou em dúvida se tratava-se ou não de uma piada; quer dizer, o Fantasma era um mito, certo? Uma história do teatro para assustar garotinhas! O olhar de Renard, contudo, parecia bastante sério.

– Está falando sério? – perguntou a jovem.

– Estou. É o mesmo Fantasma que causou o incêndio da Ópera Populaire, há quatro anos. É um homem recluso, quase nunca visto. Alguns dizem que é louco, mas todos falam a mesma coisa: é um assassino. Matou mais pessoas do que se pode contar.

– Isso eu já podia imaginar – respondeu Annika, lembrando-se dos frios olhos dourados – Mas... O Fantasma da Ópera? Isso parece coisa de romance mal escrito. – pelo menos ela tinha confirmadas suas suspeitas de que o homem realmente era maluco! Isso acabava com toda dúvida quanto a se devia ou não sair da casa – Renard, você precisa me ajudar. Esse homem, esse Fantasma, ameaçou-me: se eu o desobedecer, se tentar fugir, ele irá devolver Gabrielle a Lucian! Temos de sair daqui, mas eu não sei como: ele está sempre um passo à frente de meus planos... Nós duas não podemos sair da casa, e não posso correr o risco de afrontá-lo. Preciso de sua ajuda.

– Annika... – O ruivo parecia desconcertado – Eu não sei como dizer isso de modo mais suave, então vou ser bem direto: eu não vou te ajudar.

– o quê?!

– Você quer fugir para quê? Para voltar a se prostituir? Para viver de roubos nas ruas?

– Para ser livre! – retrucou ela, indignada – já se esqueceu?

– Sim, sim... “A liberdade dignifica o homem, é seu estado natural e seu direito de nascença”, e todo aquele discurso. Sei muito bem. Mas está disposta a fazer Gabrielle pagar esse preço? Olhe para ela, Annika: está feliz como nunca foi! Está saudável. Ou acha que ela sobreviveria ao inverno que está vindo?

Ouvindo a voz do amigo ecoar os próprios pensamentos, ela insistiu:

– Então, devo ficar aqui, é isso? Devo me conformar, e deixar que ele devolva minha irmã a Lucian?

– Eu não disse isso, raio de sol – o ruivo se pôs a admirar o chafariz, braços cruzados às costas – mas deve pensar no que é melhor para sua irmã, já que não parece se importar consigo mesma. Olhe para vocês: estão mais saudáveis do que já foram em nove anos! Estão vestidas com roupas decentes, e protegidas.

– Renard, eu não posso continuar aqui. Gabrielle não pode continuar aqui. Este homem é louco, e não há como saber o que um louco vai...

– Ser um assassino não significa que ele seja realmente louco. Um psicopata, sim, mas não um insano. Ele disse que enviaria Gabi de volta ao prostíbulo, se o desafiasse? Então, não desafie.

– Raposa! – havia indignação na voz da moça.

– Escute, Annie: - ele a segurou pelos ombros – Lucian mandou homens atrás de você e de Gabi, está bem? Ele não perdoou o seu Fantasma por tê-lo ameaçado, e quer as duas de volta. Se deixar essa casa, e a proteção de messieur Destler, acabarão voltando à vida que tinham, e eu não poderei fazer nada a respeito. Se não o fizer por si, faça-o por sua irmã: continue aqui. Dê-me um tempo de me livrar dos homens e mulheres de Lucian, e, quando for seguro, então poderão vir. Mas espere o inverno passar. Espere que Lucian não seja mais uma ameaça e, sobretudo, espere que eu encontre um lugar para vocês ficarem e trabalharem. Não permitirei que volte a viver de roubos.

– Vocês vivem de roubos.

– E quanto bem isso nos faz, não é?! – Era a primeira vez que o otimismo onipresente de Renard desaparecia de sua voz – Olhe, Annie, eu juro que vou fazer todo o possível para vê-las livres outra vez, mas só quando isso for seguro. Termine de se recuperar – ele indicou o vestido da moça, que ainda era um pouco grande para seu corpo muito magro – ganhe um pouco de peso, fortaleça-se. Deixe Gabi ser feliz, um pouco. Ela não sabe da ameaça, então, não sentirá medo. Quantas vezes ela teve isso, na vida?

Annika suspirou tristemente: sabia que o amigo tinha razão. Já dissera aquelas coisas a si mesma muitas vezes... Mas ouvi-las de outra pessoa apenas as confirmava, para sua infelicidade.

– Tem razão, raposo. – sussurrou a moça – não posso arriscar a vida de minha irmã.

– Não. Não pode. Eu conheço você. – ele a abraçou pela cintura e pousou a testa contra a dela – Eu prometo que encontrarei um modo de tirá-las daqui. Mas me dê o tempo de que preciso para garantir que não deixarão um bom lugar, apenas para viverem como ratos de rua.

Com um sorriso, ela tirou os cachos rebeldes da frente do rosto do amigo; o garotinho que conhecera crescera para se tornar um jovem muito bonito, com seu ar orgulhoso que irreverente que fazia ao apelido de Príncipe das Ruas. Era seu melhor amigo, praticamente seu irmão.

– Você é algum tipo de anjo, Renard? – perguntou, enfim, fazendo-o sorrir. – Eu farei como me diz. Por hora, pelo menos. – e sentando-se no banco, as pernas cruzadas como uma dama (o que fez o rapaz ter um acesso de risos) – Pare de me provocar por meus modos, sua hiena. Como estão os outros?

– Com saudades, mas bem. Vou manda-los aqui, de vez em quando, para ficarem de olho em você. Tenha juízo, Annie: está lidando com um assassino.

– Não se preocupe comigo, querido. Sei me cuidar.

– Sei disso. Mas não posso deixar de falar. – ele olhou para o segundo andar, de onde vinha o som de Gabrielle fazendo seu ensaio solitário de cada manhã – dê um beijo em Gabi por mim.

– É claro. – ela se levantou e beijou a testa do amigo, que realizou uma reverência e beijou-lhe a mão respeitosamente, provocando – Mademoiselle...

Jogando uma pedrinha nele, como punição pela provocação, a moça o viu subir no muro de um salto, e então desaparecer. Fora uma visita maravilhosa, que a fizera se sentir feliz, e a ajudara a se decidir; fugiria, sim, mas não já. Por hora, teria de continuar a agir como uma criada, porque a segurança de sua irmã o exigia.

Subindo para a sala de música, ia chamar a pequena para lerem juntas; para sua estupefação, porém, messieur Destler estava ali, com a pequena. Isso trouxe lembranças desagradáveis à mulher, e ela ia saindo quando a voz dele a interrompeu:

– Aonde vai, Annika? – ela se voltou, o que fez Gabrielle compreender que devia sair:

– Já entendi. Cozinha. – gesticulou a menina, saindo da sala. Aquilo deixou a irmã mais velha apreensiva, mas não havia nada de hostil em Erik, pelo menos por hora.

– Acho que não tenho tratado você muito bem, não é? – perguntou ele, levantando-se do banco do piano.

– Percebeu isso agora, patrão? – perguntou ela, com falsa docilidade.

– Não sou muito bom em perceber meus erros. Só os dos outros. – disse o músico, em voz suave. Ah, droga! Tomara que não estivesse tentando dobrá-la outra vez! Não queria ter outra briga.

– Não entendo o que pretende, messieur – a moça evitou o olhar dele, fitando o chão obstinadamente para fugir ao brilho do olhar dourado que tanto a perturbava.

– Não quero viver em guerra com alguém sob o mesmo teto. – Ele se pôs diante dela, perigosamente próximo, e o piano começou a tocar sozinho. Que máquina era aquela? – Temos uma trégua?

Erguendo os olhos desafiadores, a moça viu que o dourado do olhar dele não tinha qualquer traço de cinismo ou ironia; ele lhe estendia a mão, e não pareceu uma boa ideia recusar. Mesmo hesitante, ela aceitou a mão que lhe era oferecida, e anuiu. Mas em vez de soltá-la, o Fantasma a puxou um pouco mais para perto, só o bastante para poder envolver-lhe a cintura com a outra mão.

– Aceita uma dança, senhorita? - perguntou ele, num sussurro rouco que fez a pele da jovem se arrepiar. Antes que pudesse perceber, a moça o acompanhava pela sala de música numa valsa lenta, sem compreender por que fazia aquilo. Não dançava desde que tinha doze anos, mas os braços do Fantasma a conduziam com segurança, guiando-a no ritmo dos acordes. E em vez de se sentir intimidada, ou de desejar sair dali, ela sentia um enorme prazer em sentir aquelas mãos a conduzirem-na. Ah, Deus! O homem era completamente louco, e ela estava ficando louca, também! Só podia ser!

À medida que a música prosseguia, eles se aproximavam mais; Erik nunca dançara com uma mulher - conduzi-la só era possível devido a seu conhecimento de ritmo e harmonia - e se deliciava com a experiência. Annika era leve como uma pena, e deixava-se conduzir facilmente, como se já houvesse feito aquilo muitas vezes; seu corpo macio mal tocava o do Fantasma, mas era o bastante para causar-lhe sensações inéditas. Pararam de dançar, e Erik a segurou pela cintura com ambas as mãos, os olhos fixos nos lábios rosados. Mau sinal! Mau sinal! Antes que aquilo terminasse em algo que não devia, ela deu um passo para trás e se desculpou:

– Perdoe-me, patrão, mas preciso terminar a poda das roseiras. Só vim aqui parar ver se Gabrielle queria me ajudar; não imaginei que estivesse em casa – e assim dizendo, lançou-se escadas abaixo, o coração aos pulos. O que havia acabado de acontecer? Seu corpo reagia às lembranças do toque de um modo completamente novo, para ela, fazendo-a corar como se fosse uma garotinha inexperiente!

Igualmente confuso, Erik se sentou numa cadeira, pensativo: não entendia o que estava acontecendo consigo, mas sabia que fora maravilhoso ter Annika tão doce e abandonada em seus braços, sem que precisasse hipnotiza-la ou coagi-la... A lembrança de como ela o acompanhara através da sala, ao ritmo da música, a pele quente e perfumada tão próxima de si... E aquele brilho confuso no olhar dela, quando se separaram, que fizera o homem desejar os lábios dela outra vez. Por mais louco que fosse tudo aquilo, fora esplêncido! Talvez devesse seguir os conselhos de Gabrielle mais vezes, afinal!

Annika


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Notas finais do capítulo

Uma imagem com Annika, para verem como a imagino. É como imaginam, também?
Bom, meninas: Renard apareceu de novo - quem aí gosta dele, além de mim?
E Erik é realmente piradinho, não é? Foi seguir os conselhos da Gabi, e quase beija a Annika de novo! Alguém conta pra esse Fantasma como se chama o que ele está sentindo? hahahaha! Agora, trégua? Isso tem como durar?
Obrigada pelas reviews lindas que têm deixado, flores do meu jardim! Espero não ter desapontado, e prometo responder aos comentários entre hoje e amanhã, quando terminar meu trabalho de arquitetura.
Beijoooos!