Cidade das Portas Celestiais escrita por heeyCarol


Capítulo 2
Assassinato no Bronx


Notas iniciais do capítulo

Agora sim começa a história de verdade! Ela será dividida em partes, e esta é a primeira. Espero que gostem e formulem as teorias deliciosas que eu amo ler



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Parte 1

Murmúrios do Submundo

"e os murmúrios do submundo emergiram para luz, verdadeiros finalmente,

e nem fogo eterno, destruição, massacre ou apocalipse

conseguiram descrever o horror que se seguiu"




1

Demorou um tempo para os olhos de Mackenzie focarem os números brilhantes do relógio no criado mudo. Os cabelos negros roçavam nos lábios finos como papel, grudando nas bochechas meladas pelas lágrimas que ela mal havia reparado terem lhe escapado.

Suspirou irritada. Odiava chorar, principalmente com os pesadelos bizarros que tinha. As imagens passavam em um turbilhão, cidades em chamas e pessoas morrendo pelas mãos de criaturas bizarramente assustadoras…deveria ter assistido a muitos filmes sobre a guerra de Tróia.

Sacudiu a cabeça em negação e se apoiou no cotovelo para sentar na cama, equilibrando-se até a tontura parar. O vento frio vindo da janela fez os braços nus se arrepiarem, dando à cama um ar mais convidativo do que a alguns instantes.

As cortinas tremulavam brancas no outro lado do pequeno cômodo, parecendo fantasmas com a luz da lua e refletindo a poeira no feixe de luz pálida, parecendo pequenas partículas de estrelas. Sabia que alguns consideravam arriscado deixar a janela aberta a noite no Bronx, mas Mack achava que tudo aquilo não passava de uma generalização. O bairro em que vivia era um antigo e agora inutilizado centro industrial, onde os prédios de tijolos expostos se tornaram conjuntos de pequenos apartamentos com três cômodos, também de tijolos expostos, mas agora com convidativas flores nos batentes das janelas. E a vizinhança também era agradável, frequentada por algumas famílias latinas cativantes, que sempre a convidavam para as fiestas que faziam de vez em quando; a menos que bandidos cruzassem o distrito todo e subissem logo no terceiro andar do galpão dois, duvidava que corresse qualquer risco.

Mesmo assim fechou a janela, cortando a brisa fria e encerrando os calafrios depois de um tempo.

Piscou os olhos, já estava desperta. Isso acontecia a quase uma semana, todas as noites tinha sonhos com a destruição do mundo e mortes brutais, estes tão vívidos que as vezes se sentia afogada no cheiro férreo do sangue. Sentiu o mesmo sabor na boca, sabendo que dessa vez havia contido os gritos mordendo a língua involuntariamente ao invés de acordar aos berros como há duas noites atrás. E depois ela simplesmente não conseguia dormir, indo para seu trabalho na Academia Hartman com olheiras profundas e despejando dezenas de explicações sobre o sono que sentia durante as aulas de ballet em que tocava o violoncelo. Já estava se tornando uma rotina, e ela não tinha certeza se isso era uma atitude saudável; talvez devesse buscar um psicólogo, mas não achava que discutir sobre os pesadelos faria diferença, e se era assim preferia não dividir aquilo com alguém.

Percorreu a sala e pulou o balcão que dava acesso à cozinha, aterrissando sem muita classe e quase derrubando a tigela onde estavam as chaves do apartamento, que reclamaram com um tilintar metálico; este era um gesto que ela cultivara com o tempo, e se não estivesse tão atordoada talvez conseguisse realizá-lo perfeitamente.

Perfeccionista. Essa palavra descrevia Mackenzie com todas as letras.

Abriu a porta da geladeira e agarrou uma maçã verde um pouco machucada em cima. Não sabia o quanto estava faminta até sentir o gosto levemente azedo na boca, parecendo despertar seu estômago e fazendo ele resmungar dentro de si. Soava algo como: “Ei, também quero um hambúrguer com fritas e molho picante e se possível um refrigerante jumbo”.

Em resposta ela pegou um pote de plástico de tampa verde com o resto da comida chinesa que deixou de comer no jantar. Depois da noite anterior, achou que seria melhor dormir de estômago vazio devido aos pesadelos, ter de limpar seu conteúdo estomacal do carpete não fora uma experiência muito agradável, principalmente porque, embora já tivesse lavado, ainda havia uma mancha escura no tecido.

O som do destapar do pote veio como um estopim. De repente, a rua ganhou vida e Mackenzie pôde ouvir todos os sons, inclusive os gritos.

Primeiro deu a volta e saiu da cozinha em passos relutantes. Aquilo poderia ser apenas uma alucinação, ela não dormia bem a dias e…

Outro grito.

Dessa vez ela foi mais rápida e pegou o celular, correu e olhou pela janela do quarto. Os gritos cessaram, e não havia nada além da escuridão do beco logo em frente.

Ela engoliu em seco. Já havia acontecido várias mortes e assassinatos na região em um curto período; este poderia ser mais um.

Outro grito irrompeu pelo silêncio, sendo contido rapidamente. Mack não conseguiu mais se conter. Correu até a cozinha e abriu a primeira gaveta do armário agarrando uma faca pequena e correu até a janela da sala, pulando os rolos da escada de incêndio, agarrando-se firme ao corrimão para reduzir o impacto dos pés descalços contra o metal a cada salto.

—Tem alguém aí?— gritou antes mesmo de pisar no concreto da calçada. A rua estava mal iluminada por um poste piscante a alguns metros, a entrada do beco a única coisa que podia-se ver à meia luz. Mack continuou andando em direção à escuridão, ouvindo leves gemidos gorgolejantes a cada passo. Ela engoliu em seco com medo de não poder fazer nada, medo de ser inútil.

Apertou o celular com força até perceber que seria mais útil apertando os botões, iluminando o local. Mack cerrou os olhos enquanto andava com mais cautela, ouvindo o gofar e a respiração pesada de alguém em meio às sombras.

— Olá? — ela chamou, se sentindo estúpida. Não é como se alguém que estivesse morrendo fosse responder : “Oi, tudo bem? Se não for incômodo pode chamar uma ambulância? Ah, você desmaiou, ótimo.”

Ela sacudiu a cabeça, tentando manter-se focada.

— Está muito ferido?

Dessa vez alguém balbuciou algo, ela não pôde identificar ao certo, mas reconheceu o espanhol.

está mal herido? Puedes verme?— questionou tentando manter a voz calma, imaginando quem poderia ser. Seus pensamentos inevitavelmente se direcionaram à pequena Candy, ao seu irmão mais velho Daniel, e a todos que lhe cumprimentavam todo dia quando saía apressada para o trabalho.

Dios…respóndeme pronto quien es! — gritou quase cambaleando. Um odor pútrido e enjoativo misturava-se ao cheiro do sangue, fazendo-a ficar atordoada por alguns instantes. Ela sentiu os pés molhados, e olhou de relance para baixo apenas para ver os pés e parte da calça de moletom cinza manchados pelo vermelho.

Tudo ficou escuro novamente, e ela apertou os botões do aparelho com brutalidade até ele brilhar novamente.

E iluminar o corpo.

Mack instantaneamente cobriu a boca para conter o que quer que viesse. Ficou em silêncio, tentando assimilar a cena.

A pele do rosto parecia os trapos do tecido espalhados ao lado do corpo dilacerado. Pedaços de carne vermelha brotavam do abdômen e dos braços enquanto uma poça de sangue se formava acima e abaixo do corpo, como se fosse um cálice transbordando. A pele pálida e sem sangue agora parecia cera, e um dos olhos permanecia aberto, em choque. Pela boca parcialmente pendurada no que restou do rosto ainda vazava sangue, mas ela sabia que a mulher já estava morta.

Mack se perguntava onde estaria o outro olho enquanto avaliava o corpo meticulosamente, sentindo uma risada nervosa borbulhar em sua garganta. Não era um deles…nenhum deles. Sabia que depois se culparia por não ter sentindo empatia pela perda de alguém, mas o alívio era inebriante.

Começou a digitar o número da polícia freneticamente quando os olhos foram atraídos para os pulsos do cadáver. As pedrinhas pretas e azuis escuras refletiam levemente a luz da tela do celular, presas por um barbante puído. Mack lembrava de quando Candy pedira para ajudar a dar os nós, assim as pedrinhas não cairiam.

Era um presente de dia das mães.

Depois disso, a visão dos cabelos castanhos meio grisalhos e o olho cor de mel a atingiram como um tapa, deixando que a faca caísse ao seu lado enquanto se ajoelhava desesperada, sem saber onde toca-la para tentar acordá-la em vão. Ela conseguia ouvir o choro das crianças em mente, tão reais quanto os pesadelos.

Foi pensando nisso que ela gritou.

ξ

As luzes da sala de treinamento estavam acesas. As cordas pendiam mal amarradas dos pilares do teto abobadado, e os tatames azuis surrados forravam o chão próximo às janelas. Tudo aquilo já estava na memória de Micca, que nem se deu ao trabalho de abrir os olhos quando entrou. Não precisava olhar para reconhecer o inconfundível som das facas atravessando a sala de treinamento cravando-se no alvo de madeira, assim como não seria necessário tentar identificar o vulto preto que saltava de pilastra em pilastra atirando para saber que era Caleb e sua precisão irritantemente perfeita.

— Você poderia viver sabe? Não sai daqui faz três horas…

— Não posso parar. Tem que…ser perfeito.— respondeu ofegante, caindo de forma suave no chão, como uma sombra.

— Caleb Herondale, como sua parabatai eu pesso…não, eu ordeno, que você descanse.— falou ela, usando o mesmo tom que sua mãe utilizava quando comandava as operações.— Uma hora você vai acabar morrendo de cansaço, e talvez você não saiba mas essa marca — ela indicou o símbolo um pouco abaixo do ombro — doe pra caramba quando algo assim acontece…

Ele sorriu de canto, e atirou mais uma vez. A faca ficou presa bem no centro do alvo, literalmente na mosca.

Esse, foi o único tiro decente que consegui fazer em duas horas, ainda acha que eu deveria descansar? — ele respondeu arqueando as sobrancelhas, enquanto o som metálico de uma das facas caindo no chão ecoava pelo local.

—Você está de brincadeira Caleb? Um demônio não é do tamanho de uma uva, qualquer um desses tiros poderia ter matado até um pequeno Imp.

Caleb apenas arqueou as sobrancelhas.

— Pelo Anjo! Deveria ter pensado nisso antes te pedir para ser meu parabatai.— ela resmungou,colocando uma mecha rebelde do cabelo preto atrás da orelha. Eles tinham essa brincadeira as vezes; eles fingiam que não se suportavam, mas sabia que se amavam muito mais do que primos comuns se amariam, até mais do que irmãos. Micca se lembrava de quando pedira a Caleb para ser seu parabatai, uma lembrança tão fresca que até a surpreendia.

— Contando com essa, você deixou de pensar em cento e vinte sete coisas antes de me pedir para ser seu parabatai.— ele franziu o cenho — afinal, no que você estava pensando?

Micca riu.

–— Bem, eu não sei. Você não era tão obcessivo assim quando éramos pequenos.

— Não tinha noção da minha vantagem quando éramos pequenos, Micca.— ele girou uma pequena lâmina prateada entre os dedos, e isso indicava que não estava gostando do rumo da conversa.

Ela suspirou exausta, simplesmente não conseguia compreender. Caleb era literalmente perfeito: tinha uma mira extremamente precisa, além de ter todos os cinco sentidos mais apurados do que os de qualquer Nephilim; era mais rápido, forte, talentoso, inteligente…e literalmente insuperável, (tanto nas habilidades quanto na aparência, diga-se de passagem).

Obviamente a quantidade substancial de sangue angelical que corria por suas veias ajudava um pouco, mas se ele não se empenhasse ele seria como qualquer outro Nephilim ; seu único defeito provavelmente era o fato de que não se conformava com aquilo, acreditava que deveria provar para alguém que suas habilidades não eram fruto apenas do sangue, embora para ela isso já fosse algo visível.

Ele se recostou em uma pilastra olhando para ela, tentando decifrar seus pensamentos provavelmente, ou analisando um ângulo para desenha-la, como se fosse algum tipo de estátua.

— Isso deveria ser um tipo de vantagem.— ela argumentou por fim, sem criatividade para elaborar qualquer argumento e usando o mesmo de sempre. Era uma espécie de código agora, porque sempre que falava isso o assunto estava encerrado.—Enfim, poderíamos ir ao Taki’s?— ela juntou as mãos e se aproximou, transfigurando seu olhar para algo suplicante, mas ao estilo Miccaela Lightwood.

Caleb suspirou, um sorriso no canto dos lábios.

— Ok, me dê apenas dez minutos.

— Cinco.

— Ei, você quer que eu vá no modo extremamente bonito ou no modo Caleb?

Ela revirou os olhos,isso ele reconhecia.

— O que demorar menos.

— Então vou no modo extremamente bonito, só me deixe trocar de roupa.— ele sorriu e se direcionou à porta. Micca não pôde conter certo orgulho por finalmente ter conseguido tirar o primo da sala de treinamento, mas sentiu tudo isso morrer quando a porta abriu abruptamente, e uma Elisabeth suada entrou sem qualquer discrição.

— Acho que vão ter que cancelar os planos. Encontraram…

— Espera, você estava espionando a gente? — Micca até podia suportar a obsessão da garota por Caleb, que até certo ponto era compreensivo considerando, bem, ele, mas sentir ciúmes de parabatai era a mesma coisa que sentir ciúmes de um irmão. Ela sentiu o sangue subir a cabeça.

—Isso não importa.— a garota argumentou, mas o rubor em suas bochechas mostrava a sua vergonha.— Isabelle está chamando, parece que houve uma morte.

Caleb imediatamente mudou a postura, enrijecendo os músculos e travando o maxilar; ele não percebia que o próprio corpo já se preparava para uma batalha.

—Seja mais específica. Fada, lobisomem…— questionou Caleb. Micca podia sentir a mente do primo trabalhando, rápida e letal, com estratégias, possíveis suspeitos, onde procurar…não sabia se isso era fruto da ligação entre eles ou se era apenas a convivência, mas ela conseguia lê-lo como um livro.

Elisabeth sacudiu a cabeça em negativa.

— Foi uma mundana. Bem, a princípio achamos que seja, mas pode…

Quando Micca se deu conta, Caleb já havia disparado pelos corredores do Instituto, deixando-a sozinha com Elisabeth.

— Não pense que nossa conversa acabou.— ela advertiu — Entendo que goste dele, mas não pense que isso algum dia vai fazer diferença para mim.

E saiu em disparada também, sua mente agora focada em assuntos mais importantes.

Percorreu o Instituto em menos de dois minutos, chegando apenas alguns segundos depois de Caleb. Era grata pelo treinamento com Emma Carstairs, caso o contrário mal conseguiria acompanhá-lo.

Ofegante, ela entrou na biblioteca, deparando-se com uma mesa cheia de papéis e sua mãe falando ao telefone, enquanto o pai andava de um lado ao outro, os óculos escorregando do nariz. Ela conseguiu sorrir. Ninguém conseguia ter medo do seu pai, mesmo sendo alto e forte e com aquele jeito meu desleixado de ser, o cabelo preto bagunçado e os óculos que ele não precisava mais usar desde que fora marcado. Era reconfortante ver que embora muitas coisas mudassem, ele sempre era o mesmo, tanto aniquilando demônios quanto levando-a para uma loja de músicas da quinta avenida.

— O que houve?— ela perguntou sussurrando, aproximando-se o suficiente para que ele a ouvisse.

— Sinceramente, eu não sei.

— Como assim não sabe? — questionou incrédula; era impossível ele não saber algo do qual a mãe tivesse conhecimento, assim como era impossível Caleb fazer algo em segredo sem que ela acabasse descobrindo.

— Nem sua mãe tem certeza do que aconteceu. Uma garota encontrou o corpo e os policiais chegaram primeiro.

— E como sabem que foi demoníaco? — perguntou Caleb, se aproximando.

— Porque eu e Elisabeth fomos investigar.— Micca revirou os olhos se direcionando a James do outro lado do recinto, o olhar plúmbeo do outro desafiando-a.— Os sensores ficaram loucos, e no caminho ainda tivemos que matar dois cães infernais.

Ela voltou-se para o pai, mais incrédula do que minutos antes.

— Você mandou eles? Eu estava de plantão a horas sem fazer nada, poderia muito bem ter ido investigar.

— Você e Caleb foram da última vez, e que eu me lembre, seu braço ainda não está completamente curado.— argumentou segurando seu pulso gentilmente. Os dois iratzes ainda não haviam curado a luxação por completo, e ele ainda estava meio vermelho. Se considerou com sorte apesar de tudo; cair de cima de um Kuri em movimento e sair apenas com um hematoma era uma grande proeza.

— Não dói mais tanto assim. Além disso, Caleb também precisava se ocupar.— ela olhou de esguelha para o primo, que não disse nada. Essa foi uma das poucas vezes que não conseguiu ler sua expressão.

Elisabeth e James se aproximaram em passos sincronizados, uma das bizarrices de gêmeos que faziam sem perceber, e assim que a mãe saiu do telefone, se aproximou também. Micca não conseguiu deixar de olhar para as próprias roupas por um instante. Todos estavam em uniforme de batalha, exceto ela, com uma blusa de malha azul escura e uma calça de couro vermelha que ficava ótima em seu corpo.

— Liguei para Ídris. Eles, ao que parece, novamente estavam fazendo uma investigação em Nova York sem nos informar. — os olhos da mãe estavam perigosamente duros e compenetrados, com um leve brilho contido. Ela não estava muito contente.— Desde o desaparecimento daquela caçadora a dois anos, simplesmente não confiam mais em nós para as investigações. Mas conseguiram me passar um resumo do relatório.— ela pegou um envelope e o jogou na mesa— ao que parece, os demônios estão começando a se concentrar na cidade. Esse ataque não foi o primeiro feito. — ela suspirou exasperada — houve mais cinco. Dois com licantropos, um a vampiros, e duas bruxas. Todos omitidos pela Clave. É uma investigação interna, mas agora estamos incluídos.

—Por quê? Por que é tão sigiloso?— Caleb interviu.

—Não sei. Tudo o que disseram é que estão no rastro de algo muito maior. Nossa única missão é conseguir levar esse novo corpo para a Cidade dos Ossos e fazer mais testes, ver se encontram alguma mensagem, feitiço ou rastro demoníaco útil.

— E a mundana? Digo, a outra que encontrou o corpo, receio que tenhamos de apagar a mente dela, certo? — James falava apagar mentes de forma tão empolgante que fazia soar como se fosse ganhar um presente.

— A garota não presenciou o ataque e provavelmente já está sendo interrogada pela polícia, não vamos fazer algo desnecessário, James. — Micca teve vontade de abraçar o pai ao ouvir aquilo. Ele tentava não transparecer, mas ela sabia o quanto ele se importava com os mundanos; era mais que uma missão, ele sempre se consideraria mais humano do que angelical, assim como ela as vezes…

— Concordo com Simon, acho que isso é desnecessário. Vamos roubar o corpo do necrotério mundano quando fecharem. Caleb, prepare-se, você vai conosco.— a mãe tocou gentilmente o ombro do sobrinho, que não reagiu.

— O quê?!

— Micca, escute, você tem que ficar aqui. Você é a responsável pelo Instituto quando estamos fora, e se algum representante vier, você tem que estar aqui para recebê-lo.— a mãe explicou, mas ela não pôde conter a irritação.

—“Se algum representante vier”. Ninguém virá, e você sabe disso.— acusou sem qualquer pudor. Estava frustrada, queria fazer alguma coisa, qualquer coisa, e se não podia satisfazer-se com algum prazer mundano, faria o que fazia de melhor: matar demônios.

Izabelle ficou em silêncio encarando a filha com um olhar cortante. Micca revidou com o mesmo olhar.

Era tão incrivelmente parecida com a mãe que isso a assustava um pouco.

—Micca…—começou Caleb.—Fique aqui e cuide da Cara, por favor.

—Ah, você vai apelar para a Cara, sério? Caleb, você nunca foi tão baixo.

—Por que você simplesmente não concorda Miccaela? Não é como se os demônios fossem simplesmente sair deste mundo.— James resmungou no fundo do salão.

Ela encarou Caleb, tentando ignorar o impulso assassino de pular no pescoço do outro.

Ele franziu o cenho e arreganhou um leve sorriso, e então ela soube que ele já tinha um plano em mente.

—Apenas fique, depois eu prometo que vamos ao Taki’s, e é claro, guardo uns demônios pra você.

ξ

—Ah, você não sabe o que aconteceu? — o policial questionou pela terceira vez.

As pálpebras de Mackenzie se fecharam vagarosamente, e demoraram alguns longos segundos para que ela conseguisse abrir os olhos novamente. O interrogatório parecia não ter fim, e quando um policial chegava a conclusão de que ela não sabia de nada, outro entrava e o substituía. Esse já havia sido o terceiro, e ela mal havia se dado ao trabalho de gravar seu nome.

—Eu já disse, e você com certeza deve ter conversado com seus amiguinhos atrás daquele vidro para saber disso. Já expliquei o que aconteceu, não vou explicar denovo.— ela respondeu, seguida de um inoportuno bocejo. O policial a encarou com olhos azuis e duros como gelo, um pouco incrédulo, um pouco sarcástico.

—Então você diz que os ferimentos da senhora Rosales — ele deslizou duas fotos pela superfície manchada da mesa, uma mostrando o abdômen dilacerado, outra o rosto…— que condisem com algo afiado como a faca com as suas impressões digitais, foi mera coincidência. — ele arqueou as sobrancelhas, estendendo o pequeno pacote com a faca. Mackenzie se sentiu tão estúpida.

— Eu já expliquei, meu Deus, eu larguei a faca, o sangue da lâmina veio do chão… nunca machucaria a senhora Rosales.—ela suspirou olhando para as fotos e depois as afastando, já podia sentir a bile subir por sua garganta e deixando um rastro amargo.— eu adoro aquelas crianças, e pensar nelas órfãs é um dos motivos pelos quais zelo por elas e pela mãe deles.— ela respondeu sem paciência — Eu. Não. Fiz. Isso.

O policial apenas a fitou por alguns intantes desconfortáveis, e depois saiu da sala novamente, batendo a porta atrás de si. E o processo se iniciaria novamente…

Ela não estava mais aguentando, e os olhos ardiam enquanto ela tentava conter as malditas lágrimas que insistiam em sair. Ela fitou o vidro logo atrás da cadeira agora vazia do investigador, refletindo uma Mackenzie mais pálida que o normal, com enormes marcas abaixo dos olhos. Baixou a cabeça e ficou prostrada sobre a mesa, escondendo-se entre os braços enquanto puxava as pontas das mangas puídas do casaco. Era um mal hábito que ela tinha quando estava nervosa, repuxando e beliscando o tecido, fazendo com que as mangas das camisas ficassem finas e desfiadas.

A porta abriu com um estalo leve e ela ergueu a cabeça rápidamente, lhe causando uma tontura momentânea e uma leve dor no pescoço.

O mesmo policial entrou carrancudo (o que não ficava bom com os olhos azuis e o cabelo preto) e permaneceu entre a sala e o corredor. Mack calculou a força necessária para conseguir empurrar o policial e atordoa-lo para sair correndo, talvez se socasse no meio do peito… correria metade do corredor até ser parada por outros policiais; e mesmo que conseguisse sair dali, seria procurada, e sendo inocente ou não ela poderia ser facilmente culpada num tribunal por fuga e desacato à autoridade. Era complicado pensar quando a moral parecia espeta-la como uma agulha.

—Pode ir.— ela piscou ao ouvir a voz do policial.

—O que?

—Eu disse que pode ir, você não é culpada.— ele respondeu, os olhos pareciam ter sido retirados de um boneco, incrivelmente azuis e sem expressão em meio a carranca.

—E vocês…descobriram quem foi? — ela perguntou, mas não perdeu tempo sentada. Já estava próxima à porta, meio ansiosa para sair dali, mas queria as respostas, e tentou fincar os pés no chão para não sair correndo até consegui-las.

—Não, mas você não é culpada, pode ir.—ele se afastou, estendendo a mão e indicando o corredor com um gesto teatral. Na sala logo em frente, uma delegada conversava freneticamente ao telefone, claramente exasperada, embora a visão não fosse clara entre as chapas da persiana cor creme.

— O que vai acontecer com as crianças? — perguntou. Ela esperava que a voz tremesse, levemente embargada pelas lágrimas que não saíam, mas soou surpreendentemente controlada e fria.

— Elas têm uma tia, mas é alcoólatra e tem uma ficha extensa, a assistência social vai dar um jeito, agora vá. Embora.

Mack o encarou, colocando tanta força nos pés que parecia que iriam afundar.

— Há cinco minutos eu queria ir, mas agora eu quero vê-la. Quero ver Catalina Rosales, agora. Quero estar a par do que está acontecendo…

— Hoje não vai dar.— uma voz feminina irrompeu pelo corredor. A delegada estava com uma ruga de preocupação no meio da testa, e os olhos compenetrados tentavam intimidar Mack, mas ela não deixou aparentar a preocupação em ter de voltar para aquela mesa. — Carl, venha comigo.

— Espere — segurou o braço do policial de forma um tanto bruta.— pessa para alguém me deixar ver o corpo da senhora Rosales, por favor.

— Quando acharmos o corpo dela, falamos com você.— a mulher respondeu impaciente, e Mack sentiu suas mãos afrouxarem com o choque e liberarem o policial.

Quando finalmente conseguiu sair da delegacia, o frio Nova Iorquino condensado ao calor do escapamento dos carros tocou-lhe as bochechas tão suave quanto a pata de um gato. O céu vespertino estava tingido de rosa como algodão doce, e as janelas dos prédios brilhavam como joias refletindo a luz do sol nascente.

Uma cena calma demais para as perguntas que a bombardeavam , algo quase surreal considerando tudo o que havia acontecido nas últimas horas. Senhora Rosales estava morta a menos de seis horas, Daniel e Candy eram órfãos a menos de um dia. Ela quase foi presa e condenada, e escapou praticamente na mesma hora em que o corpo fora roubado.

Quem rouba um corpo afinal? questionou franzindo a sobrancelha, seguindo para o metrô. Ela tinha o costume de reagir aos pensamentos com expressões, como se estivesse conversando com alguém, o que provavelmente fazia as pessoas pensarem que era louca.

Talvez fosse, afinal.

Andando pela rua, ela teve que desgrudar três embalagens diferentes das solas grossas do coturno preto que usava, e foi então que reparou que teria que voltar para casa antes de ir ao trabalho. Usava apenas um moletom fino por cima da blusa do pijama, e , por sorte, teve consciência e colocou uma calça jeans velha com algumas manchas de tinta branca que ela não sabia ao certo como pararam ali, mas era bem melhor do que a calça manchada de sangue que usava antes. Além disso, estava faminta, e não tinha uma única moeda nos bolsos.

— Seu dia vai melhorar Mackenzie…— ela disse para si mesma dobrando a esquina — não tem como as coisas ficarem piores.

Na frente de uma loja de penhores no fim da rua um relógio cuco antigo indicava que eram quase seis da manhã por trás da vidraça recém polida; tinha duas horas para chegar ao outro lado da cidade, tomar um banho e comer alguma coisa.

Ela suspirou. Não queria voltar para casa; não gostaria de ter que encarar as crianças brincando na rua ou ter que lidar com Daniel e Candy. A menina dos cabelos dourados e olhos castanhos brilhantes não seria a mesma sem seu sorriso, e o irmão provavelmente se meteria com as pessoas erradas, como muitos garotos de treze anos fazem quando perdem o rumo. Daniel era um menino doce, ela se recordou, muito parecido com a mãe, mas ele tinha tendências quase suicidas quando estava bravo, e Mack já teve que ajudar a senhora Rosales a ter de encontrá-lo no bairro quando chegava mais cedo em casa.

Ela provavelmente estava sendo covarde, mas não conseguiria presenciar a ruína de uma família como aquela. Talvez porque, no fundo, ela sabia o que era se sentir perdido no meio do nada, como se sentiu quando chegou a Nova York dois anos antes. Perdeu o contato com a família e se desligou de toda uma vida; ela tinha sorte por saber tocar seu violoncelo, caso o contrário não teria durado uma semana na cidade.

— Então mocinha, moeda?— questionou um homem que vigiava a catraca. Os cabelos brancos não combinavam com a barba tingida de verde limão…

—Então…eu acabei de sair do quartel de polícia, e meio que estou sem dinheiro.— explicou um pouco sem jeito. Ela não havia mentido, afinal, omitir partes da verdade não era a mentira propriamente dita. Acontecia que nos últimos tempos os assaltos às catracas haviam se tornado um hobbie dos bandidos modistas: exploda uma, pegue o que puder e vá embora. Com os metrôs eternamente lotados, Mack achava que eles deveriam ter mais dinheiro do que ela. Logo depois disso, as fiscalizações se tornaram constantes e incrivelmente irritantes, e as pessoas que burlam as catracas (a maioria, diga-se de passagem) também começou a ser cobrada.

— Sei…— o homem comentou com ar entediado, sem a intenção de deixá-la passar.—…e por que, exatamente, você estava lá?

— Fui roubada.— falou depressa.— minha bolsa, minha carteira, não tenho nada agora.— ela puxou os bolsos do moletom expondo os forros, encontrando um papel de bala ali.— espero que entenda.

—Eu acho que não entendo.

Ela bufou irritada, não iria a pé até o Bronx. Deu meia volta e voltou até a base da escadaria que dava para a rua; o homem não tirava os olhos dela, o que esperava que fosse apenas desconfiança.

E ele deveria mesmo desconfiar.

Em um segundo ela estava subindo as escadas, no outro já havia pulado e catraca e saíra correndo em disparada pela estação, prometendo a si mesma que pagaria duas vezes na volta. Alcançou as portas alguns segundos antes de fecharem e se permitiu respirar, vendo o guarda zangado através da janela arranhada sendo deixado para trás.

Ela se conteve para não chorar todo o caminho de volta.


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Notas finais do capítulo

Foi comprido demais? Acha que eu deveria dividir os capítulos para ficarem mais curtos? Já tem alguma teoria sobre o que está acontecendo? Odiou a história e tem vontade de me matar pelo capítulo longo?
bjos e até o próximo capítulo XOX