Lovebelt escrita por Nina Antunes


Capítulo 6
Capítulo 6




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Sesshoumaru olhou de relance para a mãe, apenas para certificar-se que ela não o observava naquele momento. Assim que percebeu que os doces olhos castanhos estavam fixos em seu pequeno irmão balbuciando palavras que recém aprendera, ele fixou o olhar na porta do ginásio. Embora seu ceticismo habitual repetisse em sua cabeça que ele não viria, havia algo em seu peito que o obrigava a olhar para a porta. Mas seu pai não estava ali. E ali ele também não apareceria para vê-lo sendo condecorado com a medalha de honra da escola. Odiava-se por esperar por ele, mas tudo que sua mente desejava era que InuTaisho sentisse orgulho dele. A mente do jovem de 10 anos só conseguia arquitetar a cena do pai entrando pela porta e vindo abraçá-lo, demonstrando um afeto que nunca existira. Queria que ele estivesse ali, que reconhecesse seu esforço. Mas ele não iria, assim como não foi a incontáveis ocasiões importantes. A dura verdade que Sesshoumaru obrigava-se a engolir é que o próprio pai não se importava com ele.

A mãe, por outro lado, esforçava-se para conciliar o trabalho como professora e a educação dos filhos. Izayoi desdobrava-se em turnos exaustivos, aulas de reforço e monitoria para tentar reforçar o orçamento da família. A verdade era que, embora eles nunca tivessem passado fome, a vida era dura para ela e os dois filhos. A velha casa em que moravam no Brooklyn demonstrava aquilo – era um teto que os abrigava, mas não permitia grandes luxos.

O pai era uma figura inconstante. Ele reaparecia de tempos em tempos, geralmente quando ficava totalmente sem dinheiro e precisava de um teto para morar. Izayoi ainda mantinha esperança que o pai de seus filhos voltasse para a família, mas o fato é que a vida dele pertencia ao mar. InuTaisho passava a maior parte do ano em plataformas de petróleo na costa do Texas, e quando voltava à terra firme gastava tudo que ganhara com toda sorte de futilidade. Embora InuTaisho não fizesse mal à mulher e aos filhos, ele não conseguia manter nenhum laço afetivo. Ele partia e voltava como se nada tivesse ocorrido, sem sequer olhar para trás. E Izayoi permitia que ele voltasse, tornando aquele ciclo um inferno na vida do filho mais velho.

Ainda que Sesshoumaru sofresse por não ter o apreço do pai, ele jurava a si mesmo que não seria como ele. Tinha prometido à mãe que estudaria para ser alguém importante, para dar uma boa vida a ela. Devia tudo à Izayoi, que conseguia ser presente mesmo passando o dia todo a trabalho. E queria retribuir aquilo, queria que ela sentisse orgulho dele. O nome de Sesshoumaru foi anunciado no microfone, e só então ele tirou os olhos da porta, tendo certeza que, mais uma vez, InuTaisho não viria. A mãe levantou-se para aplaudi-lo, segurando InuYasha no colo. Ele caminhou até o palco, sem conseguir esboçar nenhuma emoção. Por dentro, seu peito ardia de ressentimento. Odiava seu pai por ele não estar lá, por ele não fazer questão de estar presente.

Ele deu um sobressalto na cama, abrindo os olhos de uma vez. Aquela memória, em formato de sonho, era real a ponto de Sesshoumaru sentir a mesma ardência no peito e na garganta. Naquele dia e em todos os outros seguintes da sua vida não permitiria a si mesmo chorar. Mas a dor ele não podia evitar. Mais de vinte anos se passaram desde aquele dia, mas Sesshoumaru ainda podia sentir o desapontamento por ter ficado esperando que o pai aparecesse. A partir daquele dia, foram necessários mais seis ou sete meses para que InuTaisho voltasse, pedindo abrigo e dinheiro. E em apenas alguns dias ele partiu – e desta vez, não voltou mais. Izayoi não procurou saber, mas algo dizia a Sesshoumaru que o pai não havia morrido, e sim dado algum jeito em sua vida. Os anos seguintes foram duros, mas ele continuou recebendo honras na escola e sendo um aluno exemplar. Aquele caminho o conduziu até uma bolsa de estudos em direito em Yale e todo o resto da história já se sabe.

Sesshoumaru levantou-se, encarando os primeiros raios de sol daquele dia que estava nascendo. Seu corpo continuava exausto, embora dois dias tivessem se passado, desde a madrugada em que Melissa desapareceu. Ele evitou aproximar-se, para dar espaço para a menina e Rin. Apareceu rapidamente na confeitaria nas duas tardes anteriores para ficar um pouco com a filha e depois permitiu que ela e Rin tivessem espaço para voltar à rotina normal.

O seguro da BMW tinha sido acionado e, diante do estrago que a colheitadeira fez na lataria e peças, ele já havia recebido o reembolso integral do carro, o que o permitiria comprar outro modelo. Mas não sentia vontade disso agora. Tinha pago mais um bolo de notas para ficar temporariamente com o carro velho do filho do dono do hotel e por enquanto aquilo atendia às suas necessidades. A verdade é que Sesshoumaru estava envergonhado, e circular pela cidade com uma BMW só faria com que as pessoas continuassem o encarando com reprovação. Embora ele tivesse a vida inteira moldado uma casca para evitar que a opinião alheia o atingisse, ele sabia que todos o condenavam por ter deixado Rin sozinha e por ter negligenciado Melissa. E aquele julgamento ele não podia ignorar, pois fazia parte do remorso que Sesshoumaru sentia.

Ele, ao contrário do pai, sempre contribuiu financeiramente para o futuro da filha – desde o dia em que Rin descobriu que estava grávida. Embora tivesse jurado para Rebeca que não deixaria que a criança interferisse na vida dos dois, Sesshoumaru sempre teve por certo que não poderia desampará-la. Queria que ela tivesse tudo que ele não teve. Mas Melissa não pôde ter o que Sesshoumaru mais desejou, quando criança: o amor do pai.

Ele fechou os olhos e esfregou o rosto. O remorso por não ter participado da vida da menina bateu contra Sesshoumaru assim que ele a viu pela primeira vez, mas nos últimos dias havia ficado impossível conviver bem com aquele sentimento. Odiava-se por repetir o que InuTaisho fez com ele. Queria tanto mudar aquilo, queria dali para a frente fazer-se presente na vida de Melissa, mas o desejo de Rebeca o assombrava. Cedo ou tarde ele teria que voltar para Nova York, e tinha que admitir que queria levar a menina junto de si. Mas aquilo significaria tirar o bem mais precioso de Rin. O olhar desesperado dela na noite em que Melissa desapareceu o atravessou, fazendo com que o aperto no peito de Sesshoumaru aumentasse. Sabia que seria cruel fazer aquilo, mas agora já não podia imaginar-se novamente longe de Melissa. Embora estivesse em Lovebelt por menos de um mês, não podia explicar como a convivência com a menina havia mudado seus sentimentos. Não suportaria voltar para Nova York e ignorar a o vazio e a mágoa que sua ausência criaria no peito de Melissa. Também não conseguiria ficar sem saber da menina, nem ficar sem falar com ela – e aquilo, Sesshoumaru tinha certeza, criaria um inferno em seu casamento.

Não sabia o que fazer naquele ponto. Precisava de tempo para assimilar tudo que aconteceu e para resolver aquela questão. Levantou-se da cama e foi direto para o chuveiro gelado. Deixou que a água caísse em sua cabeça até que todo seu corpo ficasse arrepiado pelo choque. Balançou os cabelos, espalhando respingos pela cortina plástica do banheiro. Não demorou a sair do chuveiro, enrolando-se em uma toalha. Uma ideia piscou em sua mente quase ao mesmo tempo em que uma mensagem de Rebeca apareceu na tela do iPhone, em cima do criado mudo. Ele deslizou o dedo pela tela.

Como estão as coisas? A menina está bem?

O tom direto e as duas perguntas seguidas indicavam que Rebeca estava ansiosa, e ele sabia bem o motivo. Sesshoumaru havia ficado mais calado que o comum com a esposa desde aquela madrugada em que Rin jogou todas as verdades na cara dele. Não contou essa parte para Rebeca – apenas que Melissa havia sumido, mas que tudo ficara bem.

A verdade é que ele ficou perturbado por perceber a clareza com que Rin via a situação, e também surpreso de saber que ela sabia de tudo aquilo, mas nunca o procurou para tirar qualquer tipo de satisfação. Ou não tão surpreso assim, porque sabia que ela era dura na queda. Rin não se dobraria, ou aparentaria estar ajoelhando-se diante dele, pedindo que ele voltasse atrás. Ela aceitou o fato de ele ter ido embora e seguiu em frente da forma que pôde, fazendo o melhor para Melissa. E só ao ver a filha agora podia dizer o quanto Rin havia se esforçado para dar uma educação exemplar e muito amor para a menina. Melissa era absolutamente adorável, exatamente como Rebeca descobriu ser. Exatamente como Rin era...

Merda. – Sesshoumaru pensou.

Ele pegou o telefone do criado mudo e digitou uma breve mensagem de resposta.

Está tudo bem, Melissa está se recuperando.

Os olhos dourados captaram quando o aplicativo de mensagens denunciou que Rebeca estava digitando uma mensagem, mas desistiu de mandá-la. Ele bloqueou a tela do celular e dirigiu-se para o armário velho, de mogno maciço. Enquanto tirou uma camisa disciplinarmente dobrada de uma das gavetas, ouviu o som de aviso de outra mensagem. Caminhou novamente até o criado e levantou as sobrancelhas ao perceber que Rebeca havia respondido.

Você agora a chama pelo nome?

Agora sabia que a mulher não estava  ansiosa, mas também irritada. Sesshoumaru sabia que precisava acalmar os ânimos, pois era bastante provável que Rebeca pegasse um voo até Lovebelt, ignorando todo o julgamento de cidade de fim de mundo que ela tinha sobre aquele lugar.

Estamos nos aproximando, como você planejou. — Respondeu.

Eu sei. Quero saber do restante da situação— Desta vez a resposta não demorou a vir, nem houve hesitação.

restante está sob controle. Sei o que estou fazendo. — Ele também respondeu de prontidão.

Mais algumas palavras digitadas e apagadas, até que finalmente Rebeca respondeu.

Confio que você não vai repetir o mesmo erro, vai?

Sesshoumaru travou os dentes, em um misto de nervosismo e irritação. Ela estava desconfiada, como poucas vezes na vida mostrou estar.

Fiz minha escolha tempos atrás, e não gosto de ser questionado. Estou seguindo nosso combinado. Faça a sua parte.

Ele ainda encarou a tela por longos instantes, antes de perceber que Rebeca não responderia. Ela havia entendido que ele encerrara o assunto, e resolveu não prolongar aquela discussão. Sesshoumaru imaginava que Rebeca havia se arrependido do tom de conflito que adotara, porque não era do tipo dela fazê-lo de forma tão aberta. No entanto, já imaginava que sua mulher não tinha nervos suficientes para aceitar que ele ficasse longe de casa por muito tempo, de volta para aquela cidade que abrigava infinitas lembranças de dias que ele não conseguia apagar da memória. Dias em que ele fora mais feliz do que em qualquer época da sua vida – exceto agora, pelos momentos em que ele passava com Melissa. Mas Sesshoumaru nunca admitiria aquilo, afinal, como bem dissera para Rebeca, ele tinha feito uma escolha. E ele não podia dizer que tinha sido uma escolha de cabeça quente, pois pensou e repensado naquilo vezes suficientes pra colocar a razão acima de tudo.

Buscou deixar aqueles pensamentos de lado enquanto colocou uma camisa branca, com uma calça cáqui de sarja. Dobrou as mangas com a mesma disciplina de sempre, apanhou a chave do carro velho emprestado e saiu. Parou em uma pequena livraria naquela ruazinha de comércios, que chamavam de centro da cidade. Entrou pela porta, inevitavelmente tocando a sineta de aviso. Assim que o som estridente se espalhou, a senhora que cuidava do caixa olhou-o por cima da armação vinho dos óculos, desviando a atenção de um livro que lia. Ele engoliu seco, travando as mandíbulas. Mais um olhar de reprovação.

Sesshoumaru embrenhou-se pelos corredores estreitos e empoeirados da livraria, buscando por algo em específico. Levou um tempo até que ele encontrasse, mas conseguiu localizar um livro de astronomia para crianças. A capa dura tinha estrelas em material florescente, e o interior era repleto de figuras. Nas tardes em que ficara com Melissa descobriu que a menina era fascinada pelas estrelas e que as primeiras lições sobre os planetas haviam despertado o interesse dela. Levou o livro até o caixa, acenando com a cabeça uma única vez.

— Preciso de um embrulho. – Pediu em uma voz fria e suave. A senhora ainda o olhava por cima dos óculos e do livro.

— Certo. – Ela lambeu a ponta do dedo indicador e puxou de uma pilha, na prateleira abaixo do caixa, um papel branco cheio de figuras infantis. – Eu sabia que Lissy se interessaria por esse. É uma coletânea, os outros volumes devem chegar logo. – Comentou, sem tirar os olhos do rosto frio de Sesshoumaru.

Ele apenas acenou outra vez.

— Você acredita que já faz quase um ano que o velho Takao se foi? – Perguntou de forma retórica, desviando os olhos dos dele apenas para formar uma expressão consternada. – Ele era um bom homem.

Sesshoumaru suspirou, tentando entender qual rumo aquela conversa tomaria. Se é que poderia chamar aquilo de conversa, já que ele sequer respondera.

— As meninas sentiram tanta falta dele, foi um período difícil. – Desta vez a velha quem suspirou, balançando a cabeça negativamente.

— Como ele... – Sesshoumaru só percebeu que sua voz tinha escapado da garganta na segunda palavra que pronunciou. Cerrou os lábios, percebendo que a mulher voltou a encará-lo.

— Câncer, exatamente como a mãe de Rin. – Ela não esperou que ele retomasse a frase, explicando logo. – Essa doença maldita...

Um breve silêncio preencheu a livraria. Sesshoumaru travou a mandíbula mais uma vez, imaginando o quão difícil foi para Rin ver o pai doente. Ela o amava tanto, o admirava. Sabia que Takao havia sido o grande exemplo para Rin – em tudo ela se espelhava. E ele era realmente um bom homem. Sesshoumaru havia tido uma única oportunidade de conversar com Takao. A lembrança daquele dia fez com que sua pele se arrepiasse e sua mente ficasse nublada por um instante. Tentou afastar aquilo da mente e sacou a carteira, deixando uma nota em cima do balcão. Balançou a cabeça mais uma vez e saiu, levando o livro embrulhado consigo. Entrou no carro e saiu, dirigindo até a casa de Rin.

Encarou os números do relógio do painel esverdeado do carro, percebendo que talvez fosse cedo demais para estar ali. Hesitou por alguns instantes, até que resolveu arriscar-se, indo até a porta. Tocou a campainha e esperou por pouco tempo, quando Rin abriu a porta. Ela não conseguiu esconder a surpresa inicial de vê-lo ali, mas logo um tom sereno ocupou seu rosto. Eles não haviam mais falado sobre aquela noite, ou sobre qualquer outra coisa do passado. Mas como Rin prometera, um tratado de paz havia sido selado. Eles encontraram-se nas duas tardes passadas, quando Sesshoumaru esteve na confeitaria para ver Melissa. Não houve grandes diálogos, mas havia um tom amistoso entre os dois. Contudo, ir até a casa de Rin significava outro passo e ele estava com medo da reação dela.

— Desculpe por vir tão cedo. Comprei isso para Melissa. – Ele balançou o livro embrulhado na mão direita.

— Ela ainda está dormindo. – Rin olhou brevemente para dentro da porta, e Sesshoumaru sentiu um calafrio. Estava, afinal, com medo da rejeição. – Mas... você pode entrar e esperar, se quiser. Lissy não costuma ficar na cama até tarde.

O coração dele sentiu um alívio imediato. O tratado de paz estava de pé, afinal. Ele acenou uma vez e recebeu permissão para passar pela porta. Ele encarou novamente aquela sala, que o preenchia de lembranças – antigas e a mais recente, de Rin dizendo tudo que dissera sobre seu casamento. Ficou de pé, esperando que a porta fosse fechada atrás de si.

— Estou trabalhando na contabilidade da fazenda, se importa se eu... – Ela apontou para a direção da cozinha, onde Sesshoumaru pôde ver uma larga mesa de madeira de cedro, com uma calculadora, diversos papéis e lápis espalhados.

— Não se preocupe comigo. – Ele negou com a cabeça. Caminhou devagar até o sofá, sentando-se na ponta do assento.

Rin voltou para a cozinha e sentou-se na ponta da mesa, ficando de frente para a porta que separava os dois cômodos. Ela apoiou os dedos da mão esquerda na têmpora e no fim da mandíbula, franzindo levemente as sobrancelhas, enquanto encarava a numeralha dos papéis. Vez ou outra ela sacava a calculadora, fazendo com que repetidos bipes soassem pela casa e rompendo o completo silêncio. Em seguida, Rin fazia anotações nos papéis e por fim passava números para o livro contábil.

Sesshoumaru sabia que Rin era boa com números. Diversas vezes, nas tardes em que passaram juntos, ele dizia que ela deveria ir para a faculdade, para que aquele talento não fosse desperdiçado. Mas Rin sempre ajudou o pai, e no fundo a faculdade nunca foi uma opção por ela não querer que Takao ficasse sozinho e também por eles não terem dinheiro suficiente para os estudos dela. Embora a família Ozawa nunca tenha passado por dificuldades, o orçamento se apertava entre o dinheiro que entrava da colheita do trigo e o dinheiro que saía para que a próxima safra fosse plantada. Nunca havia sobrado o suficiente para sonhar com algo mais que uma confeitaria. É verdade que a loja, a fazenda e a casa da cidade formavam um bom patrimônio, mas Rin não era capaz de desfazer-se de nenhuma dessas coisas, principalmente pelo valor sentimental que elas tinham e pelo fato de ela querer preservar tudo aquilo como herança para Melissa.

Os pensamentos dele foram interrompidos pelos sons de pequenos passos na escada de madeira. Melissa desceu segurando o corrimão com uma das mãos e um urso com a outra. Ela soltou a barra de madeira somente para coçar os olhos - talvez num sinal de que não acreditava que o pai estava ali, sentado no sofá.

— Papai! - Ela exclamou, descendo com pressa os últimos degraus.

Rin levantou-se por um instante, apoiando-se na mesa para espichar o corpo e espiar a situação. Sorriu de forma contida assim que viu que Melissa jogou-se nos braços de Sesshoumaru, encontrando aconchego no peito dele.

— Bom dia, Melissa - Sesshoumaru também não conteve um sorriso, beijando os cabelos castanho-claros da filha.

— Eu estou sonhando? - Ela fechou os olhos por um instante, não contendo o riso brincalhão.

— Espero que não, porque eu tenho uma surpresa

Lissy afastou-se do peito do pai para olhá-lo. Sesshoumaru observou o brilho de curiosidade nos olhos castanho-claros e não pôde evitar a constatação de que a menina era muito parecida com Rin. Os mesmos olhos doces e a mesma forma de apertá-los para sorrir.

— O que é? - Ela quis saber, dando dois pequenos pulinhos.

Ele pegou o livro embrulhado, que repousava na almofada ao lado, e entregou à filha. A essa altura, Rin já estava encostada no batente da porta da cozinha, apenas observando a situação.

— Uuuau... - Assim que as pequenas mãos se livraram do embrulho colorido, revelando a capa estrelada do livro, os olhos de Lissy brilharam ainda mais. Ela rapidamente folheou o livro, observando maravilhada cada uma das figuras. - Eu adorei, papai!

— Como se diz? - Rin cobrou, ainda sem conseguir esconder o sorriso. Ela cruzou os braços, voltando a apoiar-se na porta.

— Muito muito obrigada! - Os pequenos braços envolveram o pescoço de Sesshoumaru e ele levou uma das mãos às costas de Lissy, apertando-a contra si. Naquele instante, o coração dele se aqueceu e sua mente foi invadida por uma sensação de paz. Poucas vezes havia sentido aquilo.

— Agora é hora de subir, trocar o pijama e escovar os dentes. - Rin aproximou-se, estendendo a mão para ela. - Depois tomamos café. - Os olhos castanhos alcançaram Sesshoumaru por um instante. - Juntos.

Lissy reuniu as mãos em uma sonora palma de alegria, para então segurar a mão da mãe. As duas subiram as escadas juntas, deixando Sesshoumaru ainda sentado na ponta do sofá. Aquela situação era inesperada. Em pensar que três dias atrás Rin havia passado com um trator em cima do carro dele e que eles tinham praticamente declarado guerra um ao outro, era de certa forma cômica concluir que agora tudo havia ficado bem a ponto de todos sentarem-se à mesma mesa, como uma família feliz. Mas o seu desejo era de que tudo continuasse assim - ainda que ele soubesse que cedo ou tarde outra reviravolta viria.

Não demorou até que Melissa cumprisse toda a rotina de arrumação da manhã para, então, descer novamente as escadas de madeira - dessa vez, sem o urso a tiracolo.

— Eu vou ajudar a colocar a mesa do café. - Lissy anunciou, passando como um furacão para a cozinha.

Rin desceu em seguida, segurando outro grosso livro contábil nas mãos. Sesshoumaru levantou-se, diminuindo a distância entre os dois.

— Gostaria de pedir sua permissão para levá-la para um passeio hoje. - O pedido saiu de uma vez, mas em tom mais formal do que Sesshoumaru gostaria.

Rin torceu as sobrancelhas por uma fração de segundo e depois mordeu o lábio, em uma clara expressão de hesitação. Talvez fosse cedo demais para pedir algo como aquilo, ele pensou. Na cabeça dela, a leoa protetora brigava com a figura da mãe equilibrada, que precisava manter uma posição ponderada com Sesshoumaru. Afinal, apesar de tudo que acontecera e apesar do que Rin desejava, ele era o pai de Melissa. Aquilo não mudaria, não seria apagado e nem amenizado.

— Tudo bem, mas precisamos estabelecer horários. - Pediu, em um tom firme.

— Claro. Pensei em buscá-la por volta de 18h e trazê-la até 21h. - Explicou, vendo que Rin estreitou brevemente os olhos. - É que pensei em jantar com ela, comprar um telescópio e levá-la para ver o céu.

Rin pensou o quanto aquilo deixaria Melissa feliz. Ela não conseguiu evitar um pequeno sorriso, no canto dos lábios.

— Lissy vai gostar muito, fico feliz por isso. Por causa do que aconteceu, quero te pedir para não descuidar-se dela por nenhum instante. - Ela suplicou, engolindo seco.

— Não se preocupe, te dou minha palavra. - Sesshoumaru acenou com a cabeça, compreendendo a preocupação de Rin. Já era surpreendente que ela permitisse aquele passeio, então o pedido para que houvesse cuidado redobrado era natural.

A pequena apareceu no batente da cozinha, com a mesma expressão eufórica de antes. - Mamãe, você pode me ajudar com o que está nas prateleiras altas?

Rin sorriu, caminhando até a filha. Parou no batente, voltando-se para Sesshoumaru mais uma vez.

— Junta-se a nós? - Perguntou.

E aquela pergunta bateu como um gongo na mente de Sesshoumaru, principalmente porque seu coração tinha uma resposta indesejável, inevitável e pronta: sim, para sempre.

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Pontualmente às 18h Sesshoumaru encostou o carro na porta de Rin. Subiu as escadas de concreto do jardim até a porta e bateu duas vezes na madeira maciça. Alguns instantes se passaram e Rin apareceu pelo batente. Ela vestia um vestido de linho bege, de alças finas e ajustado até a cintura, onde então abria uma saia em formato de "A". O cabelo, usualmente preso em um rabo de cavalo ou em um coque, estava solto e volumoso, com apenas uma mecha da franja presa por uma presilha na lateral. Sesshoumaru notou que ela também tinha passado algum tipo de maquiagem, que ele não sabia dizer exatamente qual, pois o rosto dela parecia natural, apenas com um brilho diferente.

Ele então percebeu que provavelmente a encarava por tempo demais, porque Rin pareceu desconsertada, passando as mãos de forma nervosa pelo linho do vestido. Sesshoumaru desviou o olhar e coçou a nuca por um instante, antes de murmurar um "boa noite". Ela abriu a porta e deixou que ele passasse, indicando o sofá.

— Lissy está pronta, preciso somente terminar de ajeitar a mochila dela. – Rin caminhou até a mesa comprida e retangular da sala de jantar, que era anexa à de estar. – Coloquei uma muda de roupa, um casaco e deixei também uma agenda com meu telefone.

Sesshoumaru acenou com a cabeça, acompanhando os movimentos rápidos que ela fazia, colocando itens dentro da mochila. Na mesa, além da mochila de Rin, havia uma toalha cuidadosamente colocada e dois conjuntos de jantar, com prato, talheres e taças. Sua hipnose só foi interrompida pelos passos rápidos de Melissa pela escada. A menina estava eufórica.

— Estou pronta, papai! – Ela exclamou, pulando os últimos degraus. Rin abriu a boca para repreendê-la pela peripécia na escada, mas não conseguiu. Os olhos cor de mel de Lissy brilhavam com uma intensidade que ela não via há muito tempo, provavelmente desde que Takao tinha partido. O coração de Rin se apertou por um instante e ela engoliu seco, tentando desfazer o nó que se formou na sua garganta. – Eu até coloquei uma blusa de estrelas. – A menina segurou a barra da blusa amarela que vestia, exibindo as estrelinhas prateadas da estampa.

Sesshoumaru não evitou um sorriso. Fazer Melissa feliz daquela forma o fazia sentir bem, como pouquíssimas vezes se sentiu na vida.

— Vamos? – Ele perguntou, levantando-se.

— Vou esperar por vocês aqui. – Rin disse, aproximando-se da filha. Ela abaixou-se e segurou o rosto da menina gentilmente entre as mãos. – Obedeça ao seu pai, e não saia de perto dele nem por um único instante, ok? – Recomendou, e viu Lissy acenar repetidas vezes. – Divirta-se, meu anjo. – Depositou um beijo carinhoso em cada bochecha rosada da filha.

— Eu vou encontrar uma estrela bem bonita – A menina levantou os braços, para enfatizar as palavras – E vou dar pra você, mamãe.

— Combinado. – Rin sorriu, afagando os cabelos da filha, presos por uma tiara branca.

Eles passaram pela porta e foram até o carro estacionado. Sesshoumaru colocou Lissy no assento infantil que ele comprara naquela tarde no Walmart, e abriu o porta-malas para certificar-se que o telescópio e todo o aparato para o piquenique estava realmente lá – embora ele já tivesse feito isso duas vezes naquela noite. Rin franziu a testa brevemente, apoiando-se no teto do carro.

— Esse carro por acaso é do filho do senhor...

— Sim, eu o aluguei por uns dias. – Ele interrompeu, coçando novamente a nuca.

Rin franziu ainda mais a testa, não reconhecendo Sesshoumaru em nenhuma vírgula daquela frase. – Eu contatei a seguradora das máquinas e eles disseram que iriam depositar o dinheiro na sua conta.

— Oh, sim, eles depositaram. – Sesshoumaru explicou, cruzando os braços. – Mas eu optei por não comprar outro carro. Na verdade, achei que faria mais sentido aplicar o dinheiro na conta da Melissa.

A expressão confusa de Rin tomou um ar de irritação, conforme as sobrancelhas se torceram em curvas. – Por que você fez isso?

Sesshoumaru já esperava pegar Rin de surpresa. Sabia que ela não acessava a conta poupança de Melissa, e tinha certeza que ela devolveria todo aquele dinheiro se pudesse.

— Eu pensei melhor e percebi que não faz o menor sentido comprar um carro aqui, é um luxo dispensável. – Ele balançou os ombros, apoiando-se na lataria do carro. – Eu sei que você não gostou da ideia, mas não entenda mal.

Rin pensou em deixar o seu orgulho falar mais alto, mas ver Sesshoumaru explicar-se, dizendo que queria dispensar um luxo, e perceber que ele estava com a guarda baixa a desarmou. Tinha jurado não brigar mais com ele, pelo bem da filha, e estava cumprindo sua palavra. Mas estava começando a acreditar em uma mudança de comportamento em Sesshoumaru – obviamente causada pela doçura da filha, talvez a única capaz de dobrar a racionalidade dele.

— Eu expliquei ao seu advogado que não tenho interesse em movimentar aquela conta. A minha decisão é de deixar que Lissy decida o que fazer quando tiver idade suficiente para isso. – O tom da voz dela ainda era firme, resquício do orgulho inabalável de Rin, mas ela estava sendo também política. – Mas você deve agir como achar melhor.

— Sei disso. – Ele acenou, sacando a chave do carro do bolso. Junto a ela estava um molho de chaveiros, que reuniam desde Pokemons até personagens do Star Wars. Sesshoumaru encaixou o metal na fechadura e teve de chacoalhar a porta emperrada para que ela abrisse.

Aquela cena varreu todo o mau humor de Rin e ela não segurou um riso do fundo da garganta. Nunca imaginou que Sesshoumaru voltaria para Lovebelt, tampouco com esse propósito de se aproximar da filha. Mas se tem algo que jamais passou pela cabeça de Rin foi vê-lo andando para cima e para baixo num hatch velho e emprestado, com a porta emperrada – e pior, por livre e espontânea vontade.

Um ruído grave de um outro motor aproximando-se fez com que Rin despertasse daquele pensamento. Kohako encostou a caminhonete preta atrás do hatch velho emprestado por Sesshoumaru e desceu em um pulo breve. Tinha nas mãos uma garrafa de vinho tinto.

Ele aproximou-se rapidamente, parando ao lado de Rin. Sesshoumaru acenou uma única vez para ele, em um gesto que poderia ser considerado o melhor cumprimento que os dois poderiam trocar naquela situação.

Melissa esforçou-se para girar a manivela do vidro da porta traseira do carro. Assim que o fez, abriu um sorriso.

— Sabe onde eu vou agora, padrinho? Eu vou ver pelo telescópico. – Exclamou, arrancando uma risada de Rin e um sorriso de Sesshoumaru.

— É mesmo? – Kohako perguntou, desviando os olhos para Rin em uma cobrança silenciosa. O sorriso desapareceu do rosto dela.

— É! Só eu e o papai, igual aos escoteiros. – Ela continuou, no mesmo tom eufórico.

— Divirta-se, então, e tenha cuidado. – Os olhos de Kohako estavam fixos em Lissy e faziam questão de sequer encontrar os de Sesshoumaru.

Rin aproximou-se da janela do motorista. – Meus contatos estão na mochila, ligue se precisar de qualquer coisa. E por favor, não a traga tarde

— Não se preocupe, te dou minha palavra. – Os olhos dourados passaram pela mão de Kohako, que segurava o vinho. Então isso explicava a mesa de jantar posta, o vestido, e quão bonita Rin estava naquela noite. Um nó embolou a garganta dele, e Sesshoumaru fez questão de engoli-lo a seco. – Até mais tarde. – Despediu-se, dando partida no carro. Lissy acenou para a mãe e para o padrinho, que estavam ainda na calçada.

Assim que o carro dobrou a esquina, Rin enlaçou o braço de Kohako e o convidou para entrar. Ela fechou a porta atrás de si, e estranhou quando ele não se sentou nem no sofá nem à mesa.

— Então decidiu permitir que ele saia sozinho com ela? – Perguntou de uma vez, rodando a garrafa de vinho entre os polegares e indicadores das duas mãos, em um gesto nervoso.

Ela suspirou fundo antes de começar, tentando anular o aborrecimento que aquela pergunta despertava em seu peito. - Eu prometi para Melissa que não brigaria mais com Sesshoumaru.

— Tudo bem, te dou 100% de razão nisso, mas não brigar não significa necessariamente deixá-lo magoá-la – Kohako colocou a garrafa de vinho em cima da mesa, com um pouco mais de força que o necessário.

— Ele está só tentando se aproximar de Lissy, retomar os laços que eles nunca tiveram... – As mãos dela balançavam no ar, tentando argumentar.

— Besteira. – Ele exclamou, torcendo as sobrancelhas. – Cinco anos depois? Vai me dizer que acredita nesse papo dele de que, um belo dia, acordou e percebeu que precisava do amor da filha que ele sempre fez questão de renegar?

— Não acredito, mas não seria justo da minha parte negar a Lissy o amor do pai.

— Ah, claro. Ele despertou esse amor por ela de repente. Nunca ligou, nunca se importou se ela estava doente, se precisava de cuidado, de amor, de carinho. Mas de repente quer dar todo o amor do mundo para ela.

Rin ficou quieta por um instante, apenas observando um Kohako furioso. As palavras dele saíam com a velocidade de balas, a ponto de misturarem-se.

— Não tenho como saber como essa história acabará. Morro de medo que ele a magoe, que ganhe importância na vida de Lissy e depois vá embora mais uma vez. Mas eu não posso tornar a vida de Melissa um inferno porque quero protegê-la. O melhor que eu posso fazer é estar com ela, não importa o que aconteça. – Antes que ela terminasse, Kohako tentou interrompê-la, mas Rin continuou. – Eu tive a sorte de ter o amor do meu pai, de aprender com ele a ser uma boa pessoa. Quero que Melissa tenha a mesma oportunidade.

— Como você pode comparar seu pai com Sesshoumaru é? Que tipo de valores ele poderia ensinar a Melissa? – Ele balançou a cabeça negativamente repetidas vezes, e passou os dedos grossos pelo rosto. – Eu preciso te lembrar que tudo que aquele homem valoriza tem um cifrão na frente? Ele deixou de conviver com a filha por dinheiro!

— O que eu posso fazer em relação a isso, Kohako? – Rin levantou a voz pela primeira vez, sentindo a irritação queimar a fase. – Eu fiz a minha parte, eu criei Melissa com todo amor que tinha, e vou continuar a fazê-lo forma que eu puder.

— Você nunca esteve sozinha, nós te ajudamos desde o início. – A voz tempestuosa pareceu dar uma trégua, pela primeira vez. – Eu... eu tentei ser o pai que Melissa não poderia ter.

— Você sabe que ela te ama, e eu sou grata a isso, mas Melissa tem um pai, e isso eu também não posso mudar. – Ela sentou-se no braço do sofá, tentando se acalmar. – É direito dela, Kohako.

— O que seu pai acharia disso? – Um riso nervoso escapou da garganta dele, levando a trégua momentânea embora. – Acha que ele deixaria que Sesshoumaru magoasse Melissa?

— Por Deus! – Rin se exasperou, passando as mãos pelo cabelo. – Meu pai era correto, ele saberia o que fazer. Eu estou tentando fazer o que é melhor para ela!

— Bobagem! – Repetiu, cerrando as sobrancelhas. – Você está deixando o que ainda sente por aquele homem influenciar a sua conduta em relação a Melissa.

Qualquer sinal de emoção desapareceu do rosto de Rin aos poucos. Aquilo a atingiu como uma flecha, transformando a irritação de antes em uma dor no centro do peito. Só ela sabia o que passara nos últimos anos, e ouvir aquilo a fazia sentir-se ao mesmo tempo culpada e injustiçada. Ela engoliu com dificuldade, sentindo a garganta arder. Tentou segurar as grossas lágrimas que se empilharam acima dos cílios volumosos, e tudo que conseguiu foi evitar que elas rolassem.

— Não acredito no que disse. – A voz embargada saiu rouca, quase inaudível.

Kohako parece ter percebido o tamanho do estrago, passando as mãos nervosamente pelo cabelo.

— Desculpe, eu... falei sem pensar. – Disse. – Eu me preocupo com Melissa, me dói muito saber que ela vai sair ferida de toda essa situação. É inevitável, Rin, Sesshoumaru vai magoar Melissa.

Rin tampou os ouvidos por um instante, em um instinto quase infantil. Apertou os olhos com força e deslizou os dedos pelo rosto. – Deus, o que eu faço? – Sussurrou.

— Eu não posso intervir. Como você disse, eu não sou pai de Lissy, não cabe a mim protegê-la da presença destrutiva de Sesshoumaru. – Kohako aproximou-se. Ver Rin naquela situação fez com que o peito dele também doesse. – Eu não quero piorar a situação. Só, por favor, escute o que eu disse. Você não pode ter esquecido tudo que ele te fez... que fez a vocês duas. Não permita que ele magoe Melissa, assim como ele te magoou. – Ele engoliu seco mais uma vez. – A marca que aquele homem te deixou não vai desaparecer nunca. Nem eu fui capaz disso. Não permita que ele faça o mesmo com ela.

Rin afundou o rosto nas duas mãos, não conseguindo mais segurar o choro. Ela sequer percebeu quando Kohako abriu a porta e saiu, deixando-a no mais completo silêncio. Sentia que o ar faltava aos seus pulmões, entre um soluço doloroso e outro. Tudo que mais temia no mundo era que alguém magoasse a filha, mas a decisão de permitir que Sesshoumaru se aproximasse era somente pela felicidade de Melissa. Estava tentando acertar, em uma decisão que a levava para um misto de culpa e ressentimento. Era óbvio que não tinha esquecido o que Sesshoumaru fizera, mas que bem faria deixar aquele rancor influenciar suas decisões? Ela já tinha deixado o ódio guiar suas ações, e tudo que conseguiu foi que Melissa fugisse de casa – algo totalmente atípico para o dócil comportamento da menina.

O comportamento de Sesshoumaru a fazia acreditar, cada vez mais, que ele tinha a genuína intenção de criar laços com a filha. Rin sabia que ele mesmo nunca tivera o pai presente, e que provavelmente aquilo estava pesando na consciência. Mas se ela estivesse errada, e ele partisse novamente, deixando Melissa despedaçada, tudo seria culpa de Rin. E por aquilo ela jamais se perdoaria.

—_______________________________________________

Sesshoumaru olhou pelo retrovisor mais uma vez, vendo Melissa adormecida no suporte infantil instalado no banco de trás do carro. A menina tinha ficado tão cansada, que dormiu praticamente sentada. Ele desceu do carro e a pegou no colo, apoiando o rosto tranquilo e doce de Lissy no seu ombro. Caminhou pelas pedras de entrada da casa de Rin e congelou, frente à porta. E se Kohako estivesse lá? E se batesse à porta e visse algo que o desagradasse? Por um instante, pensou em evitar aquela situação e levar Lissy para o hotel. Mas Rin ficaria louca de preocupação, Sesshoumaru ponderou mentalmente. A situação poderia desencadear outra briga, e tudo aquilo seria muito traumático pra Lissy. Resolveu deixar a sensatez comandar e finalmente bateu à porta, sentindo o coração pulsar de ansiedade. Ouviu a voz rouca de Rin murmurando que ele entrasse.

Assim que entrou pela sala, a primeira coisa que viu foi Rin sentada à mesa de jantar perfeitamente intocada, segurando uma taça de vinho com uma das mãos e cobrindo os olhos com a outra. Rin percebeu que ele entrara e o encarou, vendo a expressão confusa de Sesshoumaru. Ela esfregou os olhos, numa tentativa malsucedida de esconder as marcas das lágrimas na pele, e deixou a taça sobre a mesa. Ele fez um sinal para que Rin ficasse sentada, e seguiu para as escadas. Subiu silenciosamente e deixou Melissa na cama do quarto, antes tirando os sapatos da menina, e então a cobriu com o edredom de estampa infantil que estava ao pé da cama.

Assim que ia dar o primeiro passo para descer as escadas, seu corpo congelou novamente. Ver a expressão de sofrimento de Rin preencheu seu coração com uma angústia inesperada. E naquele instante seu racional travava uma batalha com o emocional, tentando convencê-lo a simplesmente ir embora e ignorar o que vira. Mas tratava-se de uma luta perdida. Sabia que aquela inquietação não iria embora, e ele não teria paz se não fizesse o que queria naquele momento.

(Trilha sonora: The house we never built – Gabrielle Aplin)

Desceu os degraus e sentou-se à cadeira na cabeceira da mesa, logo ao lado de Rin. Ela segurava a taça com as duas mãos, encarando a própria imagem no reflexo do vinho escuro. Esfregou os olhos mais uma vez e limpou a garganta, tentando esconder também a voz embargada.

— E então? Como foi o passeio? – Perguntou.

— O céu estava limpo, então foi possível ver bastante coisa. – Comentou, ainda sem conseguir tirar os olhos dela. – Melissa achou a estrela que prometeu te dar. – Ele esboçou um sorriso pelo canto da boca. – Sinta-se uma mulher de sorte, ela escolheu Marte.

Rin sorriu, limpando uma solitária última lágrima que insistiu em cair.

— Se importa se eu... – Sesshoumaru pegou a outra taça posta à mesa e fez menção em pegar a garrafa de vinho. Recebeu como resposta um aceno permissivo. Ele então serviu a taça e puxou para perto de si. Ficou calado, mas ainda sem tirar os olhos de Rin.

Eles ficaram em completo silêncio por longos minutos, e Sesshoumaru percebeu que Rin se esforçava para segurar o choro na frente dele. Pelo nível da garrafa de vinho, e pelo quanto ele a conhecia, podia supor que o grau alcoolico não a ajudava nessa missão.

Broke another glass in the house we never built

— Meu pai se foi, você deve ter imaginado... – Ela começou, deixando-o surpreso. Não esperava que Rin puxaria um assunto, tampouco que começaria a se abrir daquela forma. – Na verdade, a morte dele completará um ano na semana que vem.

— Eu soube. Sinto muito por isso. – Disse, ainda sem tirar os olhos dela.

— Ele sempre foi um pai exemplar para mim, e um avô ainda melhor para Lissy. Ele me ajudou em tudo... – Rin arrastava a taça sobre a mesa, jogando-a de uma mão para a outra. – Era incrível como em momentos como esse ele sempre tinha um conselho, uma palavra de acalento, um olhar de compreensão. – Seguidos suspiros entrecortaram o suspiro profundo que fugiu do fundo do peito dela. – Tento me manter firme por Lissy, mas a verdade é que ele me faz tanta falta.

The winter's always cold enough, cold enough to kill

— Ele era um homem bom. – Mais uma vez, lembranças da conversa que tivera com Takao cortaram a mente de Sesshoumaru. Nunca se esqueceria daquele dia. – Você é igual a ele.

— Meu pai me criou sozinho, você sabe. Ele não tinha a mamãe para ajudar, e ainda assim fez o melhor para me orientar em tudo. Pode imaginar quão difícil foi para um homem de meia idade criado no Kansas conversar sobre assuntos de menina com a filha... – Um riso emocionado fugiu do fundo da garganta dela, e mais uma lágrima rolou pelo rosto.

Sesshoumaru também sorriu, desviando o olhar para a própria taça antes de bebê-la. Não podia reclamar de Izayoi, que também carregou o difícil fardo de criar a ele e ao irmão, InuYasha, completamente sozinha, e ainda tendo de lidar com as idas e vindas de InuTaisho. Mas apesar disso, também não podia dizer que a mãe fora o mesmo poço de atenção e cuidado que Takao foi para Rin. Primeiro porque ela precisava trabalhar, e muito, pela sobrevivência financeira da família, e segundo porque ele mesmo nunca tinha permitido uma relação tão próxima.

Just a little jasmine, just a little salt in my wounds

— Quero ser para Lissy tudo que ele foi para mim, mas não consigo. – A voz embargada voltou a tomar espaço na garganta de Rin, e ela respirou fundo, tentando conter o choro.

Sesshoumaru ficou quieto por um instante, sem saber o que dizer. Gostaria de poder falar a Rin que ela tinha criado a menina mais doce e amável que conhecera, e que Melissa não poderia ter uma mãe melhor. Mas aquilo o lembrava da razão de estar ali. Rebeca queria ser mãe – pior, queria ser mãe de Melissa. Aquele pensamento destruía Sesshoumaru por dentro.

— Minha mãe sempre fez o melhor que pôde, e tudo que sou hoje é graças a isso. Eu nunca me esqueci, e tenho certeza que Lissy também não vai esquecer tudo que você fez por ela. – As palavras fluíam da boca dele com uma facilidade impressionante. Nem toda racionalidade, e nem mesmo a mágoa e a culpa que ele sentia eram capazes de interromper aquele rompante. – Eu neguei isso por muito tempo da minha vida, mas a realidade é que eu queria que InuTaisho tivesse sido presente.

What happens if I tell you to tell the truth?

Rin o encarou, percebendo que Sesshoumaru havia tornado-se um livro aberto em sua frente. Só havia o visto daquela forma há cinco anos, nos meses em que passaram juntos.

— Isso é o que me faz querer reparar meus erros com Melissa. Eu não quero que ela sinta o que eu senti.

— Eu tenho muito medo, Sesshoumaru. Não sei se vou conseguir reparar o coração de Lissy quando você voltar para Nova York. – Rin resolveu também abrir o jogo, embora não soubesse até que ponto o vinho influenciava essa decisão.

— Eu te dou a minha palavra que isso não vai acontecer. – Ele voltou a encará-la, e dessa vez os dois olhares se cruzaram. – Te juro que nunca mais vou ficar ausente.

— E sua carreira, seus negócios, a vida em Nova York, sua... – Engoliu seco outra vez, sem conseguir pronunciar aquela palavra: esposa.

Tell me you love her, and I'll be gone; Tell me you love her, and my heart will simply run

— Essas são escolhas que fiz no momento em que eu parti. Mas eu não vou mais deixar Melissa de lado por isso.

— Sesshoumaru, eu não sou tola. Eu sei que aquela mulher não suporta a ideia de que você tenha tido um filho fora do casamento, tampouco quer que você distante. Quanto tempo vai durar isso, antes que ela te faça escolher outra vez?– As palavras saíram de uma vez, em um ímpeto de sinceridade. Quando Rin percebeu o que dissera, já era tarde demais.

— Eu me escondi todo esse tempo, achei que o dinheiro e as notícias de Melissa que o advogado repassava me fariam um pai melhor do que o que InuTaisho foi. Mas isso só me fez pior do que ele. – Sesshoumaru sentiu a garganta arder mais uma vez, e a voz rouca quase falhou. – Porque ele era só um estivador, que sequer tinha o suficiente para si. E quanto a mim?

Just say the words and I'll turn around

Rin ficou calada. A surpresa por ver Sesshoumaru daquela forma só crescia, e diminuía a culpa que ela sentia naquele momento.

— Melissa não se importa com o que você é. Pouco importa se tem dinheiro, carreira ou o que quer que seja – Falou, após tomar outro gole do vinho. – Ela é só uma criança, mas tenho certeza que isso não vai ter relevância quando ela crescer.

— Mas eu quero que ela saiba o que conquistei. – O brilho do ego orgulhoso passou pelos olhos de Sesshoumaru, e ele travou as mandíbulas, formando uma linha de insatisfação no rosto. – E quero que ela seja alguém.

Rin torceu as sobrancelhas, recuando o rosto. Sentiu a garganta arder de raiva. – O que quer dizer? Ela ama a vida que tem aqui, não precisa conquistar nada, principalmente da forma que você conquistou.

I'll be gone without a sound

— Eu comecei do zero e construí minha carreira sem a ajuda de ninguém. Seu pai te deu o que você tem hoje, e eu não tive a mesma sorte. – As palavras iam tornando-se mais ásperas, e Sesshoumaru deixou a taça de vinho, já vazia, de lado.

— Inacreditável, quando eu acho que houve alguma mudança... – Ela balançou a cabeça negativamente, ainda com as sobrancelhas franzidas. – Melissa foi ensinada a valorizar o que é realmente importante. A porcaria do seu dinheiro, os títulos da sua carreira ou qualquer outra coisa que você ostente na sua vidinha medíocre na capital pouco importam. Assim como nunca importaram pra mim – Rin levantou-se, empurrando a cadeira com o corpo. A voz também tinha tornado-se mais rude. – Eu jamais seria capaz de fazer o que você fez. – Apontou o dedo para o rosto dele em um gesto rápido, recolhendo os braços e fechando os dedos contra as palmas das mãos.

And burn this house to the ground

Sesshoumaru levantou-se também, revelando a diferença de altura que ele tinha em relação a Rin. Olhou-a por baixo dos cílios definidos, restaurando a expressão fria usual.

— Então diga qual outra opção eu tinha, Rin. – Provocou, apoiando os dois braços na mesa. – Desistir dos anos que eu dediquei aos meus estudos, desistir de todo esforço que fiz para chegar até onde tinha chegado, calçar as minhas botas e virar um lavrador?

Rin sentiu vontade de estapeá-lo mais uma vez, mas segurou todo ódio que sentiu naquele momento. Agarrou a ponta da mesa com força, fazendo o sangue desaparecer da ponta dos dedos.

— Teria sido mais digno do que se casar com alguém por dinheiro. – Ela cuspiu as palavras dentre os dentes.

— Eu não amo Rebeca. É isso que você quer ouvir? – Sesshoumaru segurou os braços de Rin com firmeza, aproximando o rosto do dela. – Você tem razão. O amor que eu sentia era por você, e não por ela. Era por você, era tudo por você. Acha que não vi você naquele vestido de noiva, no altar? Acha que eu... – A voz dele enfraqueceu nas últimas palavras, e a expressão fria desapareceu. Os olhos dourados subitamente pareceram confusos e perdidos. Ele travou os lábios, numa tentativa de conter o que dizia e sentia.

It's like I never left the house we never built

O coração de Rin disparou, espalhando uma sensação de formigação pelo peito e base do pescoço dela. Os olhos castanhos se arregalaram e a boca entreabriu. Ela encarou os olhos dourados instáveis, encostando as mãos trêmulas nos antebraços dele, segurando-o da mesma forma que ele a segurava. Sesshoumaru sentiu um choque assim que as mãos frias dela encostaram na pele exposta pelas mangas dobradas da camisa. Seu corpo reagiu, sem antes pedir permissão ao lado racional, e ele colou os lábios nos dela, num beijo urgente e intenso. Seu coração acelerou, espalhando uma sensação saudosa pelo resto do corpo. Como ele sentiu falta de realmente sentir algo, de beijá-la e sentir o calor se espalhando por cada fibra e centímetro do peito. Quase não lembrava-se mais como era aquele sentimento verdadeiro.

I broke another mirror and now there's twenty one years left

Por um instante, ele achou que ela o estapearia, assim como fez no dia do reencontro e assim como ela quis fazer hoje, conforme denunciou o brilho raivoso nos olhos castanhos. Mas a única reação foi de retorno, de um toque urgente de retribuição a aquele beijo. Ela envolveu o pescoço dele com um dos braços e a outra mão prendeu-se no tecido da camisa dele. Aquilo foi o bastante para convidá-lo a apertar o corpo dela contra si, envolvendo um dos braços em volta da cintura dela e embrenhando a outra mão pelos cabelos soltos.

Just a little bad luck, just a little salt in my wounds

Nenhum dos dois sabia dizer exatamente quanto tempo durou aquilo, mas pareceu uma pequena eternidade. Sesshoumaru recuou, quando um lapso de racionalidade passou por sua mente. Ele passou as mãos pelos próprios cabelos, denunciado quão perturbado havia ficado. Estava confuso, sentindo-se culpado – e para ser bastante honesto, aquele sentimento não tinha nenhuma relação com Rebeca. Sentia-se culpado por estar repetindo os mesmos erros de cinco anos atrás.

Break it to me gently, gently

— Foi um erro, desculpe. – Balbuciou, engolindo seco.

Rin levou uma das mãos à boca, tentando culpar o álcool pela atitude de retribuir ao beijo dele. O coração ainda estava a mil, e o peito se expandia e recuava com rapidez. A hiperventilação nublou a mente dela e aumentou a sensação de formigação nas mãos.

— Acho melhor você ir embora. – Ela deu alguns passos para trás, encostando na cadeira que antes havia empurrado.

Tell me you love her and I'll be gone

Sesshoumaru ainda encarou o chão por alguns instantes, tentando digerir o que havia acontecido. Seu corpo clamava para que ele a beijasse novamente, mas a mente impôs um freio racional àquele sentimento. Saiu pela porta como um relâmpago, deixando uma Rin petrificada para trás.

Tell me you love her and my heart will simply run

Ela caiu sobre a cadeira, deixando que as pernas trêmulas descansassem. Não demorou até que grossas lágrimas preenchessem seus olhos mais uma vez, e um sentimento de frustração invadisse seu peito. Estava se sentindo muito mal pelo que acontecera, principalmente porque não foi capaz de resistir a Sesshoumaru – outra vez. E pior: mesmo depois de tudo que aconteceu. Jurou a si mesma, em todos esses anos, que nunca mais se permitiria sofrer por um homem. E cá estava, sofrendo pelo mesmo homem de cinco anos atrás. Estúpida, esbravejou mentalmente. Estava, no fim, sentindo como se toda a muralha que construiu nos últimos anos tivesse sido derrubada por um simples sopro.

Just say the words and I'll turn around

Enxugou as lágrimas com as costas das mãos e cerrou os punhos, com raiva. Sesshoumaru estava mais uma vez brincando com seus sentimentos, em um caminho cujo fim ela sabia muito bem qual era. Aquela cena de súbita sinceridade e abertura sentimental não passava disso: uma cena. E ela, tola, ficou sensibilizada.

I'll be gone without a sound

"Você está deixando o que ainda sente por aquele homem influenciar a sua conduta em relação a Melissa"

A voz grossa de Kohako preencheu sua mente, em forma de lembrança. Rin apertou os olhos com força, fazendo com que as lágrimas rolassem pelo seu rosto continuamente. Nunca mais, ela jurou mentalmente, nunca mais confiaria seu amor a aquele homem.

And burn this house to the ground

 


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Notas finais do capítulo

Oi gente!

Eu sei que dois anos se passaram, e muitas leitoras devem ter desistido da fanfic. Peço mil desculpas pela demora absurda e inaceitável, mas eu não esqueci dessa história e quero muito muito finalizá-la.

Espero que gostem e que perdoem essa autora relapsa rs

Bjs



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