Lovebelt escrita por Nina Antunes


Capítulo 7
Capítulo 7


Notas iniciais do capítulo

Oi, gente!

Eu sei que já faz um tempão - coloca tempão nisso! Estou trabalhando nessa fic aos pouquinhos mesmo, mas eu sei que a demora não tem desculpa.

Queria fazer duas observações: a música que menciono em negrito chama-se Daddy lessons, e é da Beyoncé. Para efeitos de história, vamos fingir que é uma música mais velha, ok? rs

A passagem final do capítulo faz parte da Carta aos Coríntios, da Bíblia.

Sem mais delongas, espero que gostem!



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Aquela sensação de secura na boca e a pulsação no topo da cabeça faziam Rin lembrar de duas coisas desagradáveis: um, ela era muito fraca para o álcool, e dois, ela havia beijado Sesshoumaru. Fechou os olhos e afundou a testa entre os braços apoiados no balcão do caixa da confeitaria. Estava sentindo-se envergonhada, arrependida e tola. Não sabia como havia permitido aquilo, depois de tudo que acontecera nos últimos anos. O abandono, o sofrimento por ter de passar por um turbilhão de coisas novas – e fazer isso sozinha – as dificuldades, as noites sem dormir... Só pode ter sido aquela porcaria de vinho, praguejou, apertando os olhos. Havia prometido a si mesma repassar as memórias dolorosas toda vez que quase fraquejasse, mas na noite anterior nenhum pensamento negativo entrou na sua mente. Quando Sesshoumaru a puxou para aquele beijo, ela somente sentiu tudo que havia sentido por ele voltar, em um súbito turbilhão. Mas a culpa e o ódio da sequência levaram embora os sentimentos dela, e agora Rin estava cumprindo sua palavra quanto às lembranças das memórias ruins dos últimos anos.

Passou todo o resto da noite e o começo da manhã fazendo isso, o que piorava consideravelmente sua sensação de mágoa e arrependimento – além, claro, de também fazer com que sua dor de cabeça e os outros sintomas de uma ressaca embaraçosa também aumentassem. Ouviu a sineta da porta e obrigou-se a olhar naquela direção. Quis chorar ao ver Sango, e soube de imediato que a amiga havia captado seu humor. Sango passou por Rin em silêncio, deixando as coisas no fundo da confeitaria. Voltou em um instante, encontrando Rin novamente com a cabeça entre os braços.

— Está tudo bem? – Perguntou, ainda que soubesse bem a resposta.

Rin somente balançou a cabeça em negativo, sem conseguir olhá-la outra vez. Sentia-se como um avestruz, com a cabeça enfiada na terra.

— O que aconteceu? – Sango insistiu, apoiando-se no balcão, logo ao lado da amiga.

— Por onde eu começo? – Rin soltou um resmungo abafado.

— Bom, meu irmão chegou cedo demais e irritado demais em casa, então talvez eu já saiba do começo da história. – Ela passou os dedos gentilmente pelo cabelo da amiga, suspirando em seguida. – Algo além disso?

— Sim. – Choramingou, finalmente tomando coragem para tirar a cabeça do meio dos braços. – Eu... eu beijei Sesshoumaru. Quer dizer, ele... foi ele quem me beijou. – Ela apertou os olhos, levando uma das mãos à testa. – E eu não o afastei, não o estapeei, não o impedi... eu retribuí. – As lágrimas voltaram a povoar o alto dos cílios inferiores de Rin, fazendo com que os olhos dela ardessem.

— Ai meu Deus... – Sango torceu as sobrancelhas, em um misto de surpresa e consternação. – Como isso aconteceu?

— Deixei que ele levasse Lissy para um passeio, e eu e Kohako discutimos por causa disso. Ele acha que eu não deveria permitir que Sesshoumaru se aproximasse, mas o que eu posso fazer? – Rin suspirou fundo, tendo a respiração entrecortada por curtos soluços. – Kohako foi embora, eu bebi um pouco de vinho e quando Sesshoumaru voltou com Lissy, nós conversamos um pouco... – Ela gesticulava de forma nervosa, com a voz trêmula. – Ele disse com todas as letras que não ama a esposa. Que nunca sentiu nada por ela e... – Hesitou por um instante, lembrando-se da noite anterior – e sim por mim.

Sango arqueou as sobrancelhas, surpresa. – Achei que ele nunca admitiria isso.

— É mentira, é claro. – Rin retrucou, transformando a expressão chorosa por pura raiva.

— Já falamos sobre isso. – A amiga suspirou pela milésima vez, apoiando o rosto sobre o punho fechado. – Um milhão de vezes.

— É bobagem, Sango. Ele não sente nada por ninguém, a não ser o amor e a idolatria infinita por si mesmo, e às coisas que conquistou. – Ela deu um salto da banqueta em que estava sentada, passando a andar de um lado por outro. – Sesshoumaru não consegue passar um único dia sem se gabar pela carreira, pelo dinheiro e por todas essas... coisas – Torceu os dedos até fechá-los contra a palma da mão. – Ontem ele perguntou se eu queria que ele tivesse deixado a carreira para ser um lavrador? Dá pra acreditar nisso?

— Eu sei que você está com raiva, mas isso não vai mudar nada do que aconteceu ontem. – Sango acompanhava a amiga com o olhar, tentando acalmar os ânimos. – Também acho que não deve mudar sua opinião em relação a deixá-lo se aproximar de Lissy. Ele é o pai dela.

— Estou começando a achar que Kohako tem razão. – Os passos de um lado para o outro faziam o chão ranger quase tão alto quanto Rin rangia os dentes de raiva.

— Não diga essa bobagem. Meu irmão está com ciúmes de Lissy e de você, mas principalmente de você. Kohako não é a pessoa mais madura do mundo, você sabe. – Rolou os olhos. – Ele tem medo de perder o espaço que conquistou com tanta dificuldade na vida de vocês duas.

Rin enterrou as mãos no cabelo, ficando com o olhar fixo e perdido, no chão. – Não acredito que fiz isso com ele. Como pude?

— Pior é enganar a si mesma. – Sango levantou-se também, aproximando-se de Rin. Segurou os braços da amiga sutilmente, fazendo com que ela a olhasse. – Você sabe o que sente por ele...

— Não faça isso. – Ela sentiu os olhos marejarem e a vista embaçar, mas não tirou os olhos do da amiga. – Você sabe tudo que ele me fez passar.

— Nada vai mudar isso, também. Mas se essa mágoa não foi capaz de apagar esse sentimento daí de dentro – Apontou para o centro do peito da amiga, batendo duas vezes – nada mais vai ser capaz.

Rin apertou os olhos com força, puxando a amiga para um duradouro abraço. – Sou mais forte que tudo isso. Eu vou conseguir, pela memória do meu pai.

Sango suspirou mais uma vez, afagando o cabelo de Rin.

A sineta tocou outra vez, fazendo a cabeça de Rin girar. Olhou na direção em que o barulho veio e viu Sesshoumaru, acompanhado de Lissy. A menina imediatamente abriu um sorriso e correu até a mãe. Só então ela lembrou-se que havia combinado na tarde anterior que Sesshoumaru buscaria a filha na escola e traria para a confeitaria. Lissy atingiu Rin como um furacão, abraçando as pernas e o quadril da mãe com força. Ela não conseguia evitar o sorriso quando a menina fazia aquilo. Fechou os olhos, sentindo que a dor de cabeça daria trégua por um instante. Mas foi um breve e único instante.

Assim que Lissy soltou a mãe, ela correu até um antigo aparelho de som, encostado no canto do balcão. A menina escalou uma banqueta para alcançar a velharia, e logo ligou o botão.

— Quero te mostrar os passos que aprendi hoje na aula de dança! – A menina exclamou, empolgada. Melissa mexeu no dial, sintonizando em uma estação de rádio.

As primeiras notas da música fizeram a cabeça de Rin latejar, mas logo seu cérebro processou qual canção era aquela. Ouvia tanto a essa música quando tinha a idade de Lissy, que tinha guardado até hoje cada um dos versos.

Came into this world, daddy's little girl, and daddy made a soldier out of me

Vim para esse mundo, a garotinha do papai, e papai fez de mim um soldado

Era seu pai. Apesar da ascendência asiática, Takao era um verdadeiro cidadão do Kansas. Aquela era uma das muitas canções country que Rin ouvia no toca-fitas do carro velho do pai. Quase podia ouvir o assovio dele acompanhando as notas. Fechou os olhos, sentindo a saudade apertar no peito.

He held me in his arms and he taught me to be strong

Ele me segurou em seus braços e ele me ensinou a ser forte

Aquele ano longe do pai havia voado. A morte dele parecia recente – ou talvez fosse a dor, que insistia em não ir embora. O tempo havia aplacado um pouco da angústia de Rin, mas a falta que sentia do pai era diária. Estava com ela no momento em que acordava e não o encontrava na cozinha, já tomando seu café e lendo o jornal. Também estava com ela quando o pai não estava lá para colocar Lissy na cama e certificar-se de que todas as janelas estavam fechadas.

He told me when he's gone “here's what you do:”

Ele me disse, quando partiu: "eis o que você precisa fazer"

Antes que pudesse perceber, seus olhos já estavam cheios de lágrimas novamente. Apoiou-se em uma das banquetas altas, mantendo uma das pernas esticada e a outra apoiada no suporte de madeira. Lissy não tinha percebido a tristeza da mãe, e continuava a praticar passos de dança pelo salão vazio da confeitaria. Vez ou outra ela tomava a mão de Sesshoumaru, que a conduzia para giros. A menina ria, divertindo-se.

When trouble comes to town and men like you come around, my daddy said “shoot”

Quando o problema chegar à cidade, e homens como você aparecerem, meu pai disse: "atire"

Os lábios de Rin passaram a acompanhar os versos silenciosamente, e ela marcava as batidas animadas da música com suaves tapinhas na própria coxa. Não conseguiu perceber que Sesshoumaru a olhava fixamente, embora estivesse ajudando Lissy com alguns passos de dança.

My daddy warned me about men like you, he said “baby girl, he's playing you, he’s playing you”

Meu pai me alertou sobre homens como você, ele disse: "querida, ele está brincando com você"

Os olhos castanhos dela encontraram os dourados dele, mas a despeito do que Rin imaginou, ela não desviou o olhar – tampouco ele. Ela continuou cantando silenciosamente, enquanto Sesshoumaru sentiu a garganta secar. Maldita música, pensou. Lissy soltou as mãos dele e aproximou-se da mãe, estendendo a mão para que ela repetisse os mesmos giros que o pai estava executando. Rin finalmente desviou o olhar e sorriu para a filha, não só completando os giros, como repetindo alguns passos de dança que a pequena executava. Ela continuou cantando, dessa vez um tom mais alto.

Assim que a música acabou, emendando em outro clássico country, Lissy caiu na gargalhada. A menina estava esbaforida, e os primeiros sinais do suor faziam a franja úmida prender-se na testa dela. Com uma rapidez vista somente em uma criança de cinco anos, ela exclamou:

— ‘Tô com fome!

Sango não evitou o riso que saiu do fundo da garganta. Desceu da banqueta que ocupava, atrás do caixa, e estendeu a mão para a menina. As duas foram para dentro da cozinha para checar se os rolinhos de canela do forno estavam dourados suficientes, como Lissy gostava.

Rin virou-se para acompanhar a movimentação das duas na cozinha e, assim que virou-se novamente, Sesshoumaru estava em sua frente. Perto demais. Seu corpo estremeceu por completo e um arrepio preencheu sua pele. Instintivamente, ela deu um passo atrás, empurrando a banqueta. O som estridente da madeira contra o chão fez com que a cabeça dela desse um giro.

— Quero pedir desculpas pelo... – Ele começou, sendo imediatamente cortado por Rin.

— Esqueça isso, não quero mais tocar no assunto. – Determinou, recuando outro passo. Cruzou os braços na altura do peito. – Acho melhor organizarmos os dias da semana, para que você e eu possamos nos planejar.

Claro, e para que não tenhamos mais contato, pensou ele. Droga. Tinha estragado tudo. Naquela manhã, sua cabeça não parou de fervilhar por um único instante. Primeiro, começou a imaginar que Rin poderia novamente impor obstáculos para que ele visse Lissy. Talvez aquele beijo estúpido despertasse raiva nela, fazendo com que as coisas ficassem mais difíceis de novo. Depois, sua mente ficou repassando cada instante daquele contato. A pele quente dela, os lábios macios... Droga. Como esquecer aquilo? Nem a montanha de racionalidade que o habitava conseguiu tirar aquilo de seus pensamentos. Sentia algo novamente florescendo no seu peito, e estava aterrorizado por aquilo. Não podia permitir-se cometer o mesmo erro.

— Tudo bem, como preferir. – Ele colocou as duas mãos no bolso da calça jeans escura.

Mais uma semana se passou, desde aquela conversa ríspida que Rin e Sesshoumaru tiveram. Haviam combinado que Sesshoumaru ficaria com Lissy três vezes por semana, com o compromisso de levá-la para casa sempre antes das nove da noite. Aquilo havia permitido que Rin organizasse toda a contabilidade da fazenda, além de negociar alguns contratos pendentes com fornecedores. Além disso, ela também conseguira organizar uma missa pelo um ano do falecimento do pai, na pequena igreja de Lovebelt.

Nos dias após aquele turbilhão de acontecimentos e sentimentos, Kohako procurou Rin e desculpou-se pela rispidez e pela briga na noite do jantar. Ela não conseguiu reunir a coragem para contar para o namorado o que havia acontecido – parte porque sabia que ele nunca a perdoaria, e parte porque seu lado racional estava convencido que, já que não conseguia esquecer aquilo, trancaria aquela memória e o sentimento que a acompanha em um compartimento seguro dentro da sua mente. Kohako ajudou Rin em boa parte das tarefas daquela semana, mas principalmente na organização da missa em memória do velho Takao.

Era fim de tarde de uma tranquila e quente sexta-feira. Rin estava esperando que Sesshoumaru trouxesse Lissy em casa, para que a menina se arrumasse para a missa. A campainha tocou e ela teve que respirar fundo antes de caminhar até a porta. Assim que abriu, encontrou Melissa abraçada com força às pernas do pai.

— O que aconteceu? – Ela perguntou, buscando uma resposta no olhar consternado de Sesshoumaru.

— Eu quero que o papai vá. – A voz abafada da menina saiu de uma só vez, e Lissy fungou, evidenciando o choro.

A aflição cortou o rosto de Rin. Ela desviou o olhar de Sesshoumaru, voltando a olhar a filha, embora o rosto dela estivesse enterrado na parte lateral da coxa do pai.

— Eu não posso, Lissy. Tenho alguns compromissos de trabalho importantes. – Ele explicou calmamente, passando as mãos pelos cabelos castanho-claros da menina.

Rin não conseguia saber se aquilo era realmente verdade. Não duvidava que ele estava mais preocupado com sua carreira naquele momento – e aquele pensamento trazia um amargor à sua boca. Mas sabia também que não havia convidado Sesshoumaru, e de forma proposital. Por mais que ainda estivesse lutando contra os próprios ímpetos para permitir que ele e a filha se aproximassem, convidá-lo para a missa em memória de Takao era demais.

— Por favor. – Melissa suplicou. – Você não ‘tava aqui quando o vovô morreu, você não se despediu dele. – Ela tentou argumentar com o pai, com a voz ainda chorosa.

— Lissy, escute... – Ele apoiou-se sobre o joelho direito, ficando ainda ligeiramente mais alto que a filha. – Você precisa estar ao lado da sua mãe hoje, segurar a mão dela com força, porque ela também está triste. – A voz suave saía dos lábios dele em um tom quase inaudível. Ele colocou atrás da orelha uma mecha de cabelo que teimava em escapar da presilha que prendia a franja da menina.

— Você conheceu o vovô? – Ela esfregou as pequenas mãos pelos olhos, espalhando as lágrimas que antes estavam concentradas abaixo das pálpebras.

Ele somente confirmou com a cabeça, passando a afagar os cabelos dela.

— Todos que conheciam o vovô vão, você também precisa ir. – Ela segurava a barra da própria blusa de algodão, em um movimento nervoso. – Você pode segurar a minha mão e também a da mamãe para que a gente não fique tão triste.

As lágrimas que se acumulavam nos olhos de Rin finalmente caíram, e ela cobriu o rosto por um instante, em um gesto desesperado. Não sabia o que fazer, tampouco o que dizer. Sesshoumaru engoliu seco, sentindo a garganta e o rosto também arderem.

— Por favor. – Lissy insistiu, olhando para Rin, dessa vez.

Ela somente acenou positivamente com a cabeça, levando a mão aos lábios. Suas tentativas de conter o choro na frente da filha tinham falhado miseravelmente.

O desconforto de Sesshoumaru triplicou. Queria estar ao lado de Lissy naquele momento doloroso, mas seria muito difícil ir àquela igreja. Ver o sofrimento de Rin, da filha, lidar com os olhares de desprezo das pessoas que moravam naquela cidade e, principalmente, encarar as últimas memórias que tinha de Takao era uma tarefa dura. Mas a permissão silenciosa de Rin fez com que ele criasse coragem para convencer a si mesmo a ir.

— A que horas começa? – Perguntou, olhando para Rin.

— Em uma hora. Vou arrumar Lissy e ela estará te esperando. – As palavras ríspidas não combinavam com a voz trêmula e o tom pesaroso que ela tinha.

Ele despediu-se rapidamente da menina e voltou para o hotel velho, no hatch verde e velho emprestado. Tomou um banho rápido e vestiu uma roupa rapidamente. Conferiu o visor do celular e viu que havia algumas mensagens de Rebeca. Deixou o aparelho preso ao carregador, na tomada, e ignorou as mensagens – não havia tempo para respondê-las.

Fez o caminho de volta e tocou a campainha. Esperou alguns minutos, que na mente dele duraram uma eternidade, até que Rin abrisse a porta. Ela vestia um macacão preto longo, mas de mangas curtas, de algodão. Melissa, que ansiosamente foi conferir se o pai havia realmente vindo, usava um vestidinho azul marinho. Assim que viu Sesshoumaru, a menina o abraçou como se não o visse há muito tempo.

Só então reparou que Rin falava ao celular – um velho aparelho, que sequer era um smartphone. Pegou Melissa nos braços, apoiando o rosto dela em seu ombro, e entrou silenciosamente pela sala. Ficou de pé, no canto. O desconforto era palpável.

— Não, estamos saindo. Se puder receber quem chegar, enquanto isso. – Ela pediu, andando de um lado ao outro para colocar coisas da filha em uma bolsa. Havia um casaco, água, e uma fruta. Percebeu que, em algum momento, Rin colocou ali também uma bíblia. – Até já. – Despediu-se.

Apanhou, por último, as chaves da velha caminhonete. Sesshoumaru pensou em protestar e insistir que fossem em seu hatch emprestado, mas desistiu de causar o conflito. Colocou Melissa no assento do banco de trás da cabine da caminhonete e sentou-se ao lado dela. O caminho foi percorrido em completo silêncio, cortado eventualmente pelos suspiros do choro que Rin tentava a todo custo conter. Ele não conseguiu evitar um aperto no peito. Vê-la sofrendo daquela forma doía.

Assim que desceu do carro, Melissa tomou a mão de Sesshoumaru, conforme o prometido. A outra mão pequenina foi dada para Rin, e os três caminharam calmamente até a porta da simples capela no centro da cidade. Apesar de ainda faltarem alguns minutos para o início da cerimônia religiosa, a igreja já tinha sido preenchida por dezenas de pessoas. Não havia mais lugares disponíveis nos bancos, e os convidados se acumulavam de pé, nas laterais. Aquilo, assim como o pesar da senhora da livraria pela morte de Takao, o lembrou o quanto o pai de Rin era querido.

A morena recebeu abraços pesarosos e murmúrios de consolo entre um gesto e outro. Sesshoumaru soltou a mão da filha, mas os dedos finos de Lissy se envolveram com mais força os dele. Ele acompanhou as duas até o primeiro banco, em frente ao altar, onde havia um espaço reservado. Não conseguia lembrar qual havia sido a última vez em que entrara numa igreja. Na verdade, não tinha certeza se algum dia já havia estado em um lugar assim. Os olhos dourados perceberam quando Rin caminhou até Kohako, que a esperava perto dos três degraus de escadas que levavam ao altar, decorado com lírios brancos e uma foto de Takao com Rin e com um bebê que ele tinha certeza ser Melissa. Kohako abraçou a morena longamente, beijando a têmpora direita dela uma série de vezes. Outro aperto no peito, que Sesshoumaru não conseguiu conter.

Sentou-se com Melissa, que ainda apertava sua mão com força, no primeiro banco, e fez questão de posicionar-se na ponta lateral. Evitava olhar em volta, mas sabia que quase todas as pessoas ali o observavam. Ele sentia a atmosfera de incriminação. Olhou na direção de Rin e Kohako mais uma vez, e encontrou o rapaz o olhando. Kohako então virou-se para Rin e perguntou algo, que foi inaudível até mesmo para os ouvidos apurados de Sesshoumaru. Ela somente acenou com a cabeça, e ele não pareceu ter ficado aborrecido, surpreendentemente.

Sequer percebeu quando Sango se aproximou, sentando-se ao lado de Melissa. Ela abriu um terno sorriso para a menina, abraçando-a, em seguida. Após longos instantes daquele carinho entre ela e a menina, Sango direcionou os olhos castanhos para Sesshoumaru.

— Você está bem? - Perguntou, com um tom de voz suave. Ele não conseguiu conter a surpresa por ouvi-la falando.

— Sim. – Respondeu, de forma simples.

— Imagino que não tenha sido fácil para você. – O tom de voz dela desceu um degrau, talvez para evitar que Lissy ouvisse, ou para evitar que todas as outras pessoas presentes ouvissem. – Não leve em consideração o que as pessoas daqui pensam ou dizem.

— Eu não levo. – Ele finalmente virou-se para ela, encarando os olhos castanhos. – Embora eu saiba que mereço o julgamento.

— O perdão é uma virtude que poucas pessoas têm. – Sango suspirou, acomodando o rosto de Lissy em seu colo. – O sincero arrependimento também. Mas sou do tipo de pessoa que pensa que nunca é tarde para consertar um erro.

Sesshoumaru ficou em silêncio por um instante. Aquela conversa o deixava altamente desconfortável, principalmente considerado que Kohako era irmão de Sango. Mas havia algo de muito familiar na forma em que ela falava, e isso o fez dar continuidade na conversa.

— Não sei se será possível reparar o passado, mas tenho certeza que quero que o futuro seja diferente. – Ele disse.

— Bom, isso é bom. – Sango sorriu, parecendo encerrar o assunto.

Sesshoumaru ficou inquieto. Ele olhava para Sango pelo canto dos olhos, tentando captar qual era a familiaridade que percebia nela. Levou um tempo até que ele percebesse, mas algumas memórias da conversa que tivera com Takao vieram à sua mente. Então era isso, pensou.

— Você fala como ele. -Sesshoumaru disse, de uma vez. – Como Takao. – Explicou, apontando a foto do altar com o queixo.

— Takao era meu padrinho, assim como sou madrinha da Lissy. Ele e meu pai foram colegas de escola e sempre foram muito amigos. Mas eles se afastaram quando meu pai começou a beber demais. No fim, o alcoolismo o levou de nós, e Takao passou a ser quase como um pai. – Contou, mantendo o tom de voz ameno. – Sinto falta dele. Todos sentimos. – Ela olhou Lissy brevemente, que retribuiu o olhar. Sango sorriu, afagando os cabelos da menina.

Sesshoumaru ficou em silêncio, e levou apenas alguns instantes para que a missa começasse. Rin sentou-se ao lado de Sango, e Kohako também se acomodou no banco.

A mente de Sesshoumaru começou a recuperar cada pedaço de memória que havia se perdido sobre a conversa que tivera com Takao, e naquele momento sua mente conseguiu reconstruir perfeitamente a linha do tempo dos acontecimentos. Tudo se repetia como um filme para Sesshoumaru.

Os pés de Sesshoumaru mal haviam se firmado no chão do jardim em frente à casa de Rin, quando ele viu Takao sentado na varanda. Ele engoliu seco, hesitando por um instante sobre seguir o plano de encontrar Rin, ou se desistiria. Takao o encarou diretamente, e os dois trocaram olhares naquele momento. Ao contrário do que esperava, Takao o convidou com um aceno de mãos. Outra vez, Sesshoumaru engoliu seco.

Ele olhou para o alto da casa e percebeu que as luzes estavam apagadas. Droga, ele pensou. Rin deveria estar ainda na confeitaria, ou talvez na fazenda. Decidiu aproximar-se, percebendo que Takao estava imerso naquela média penumbra, que marcava o início da noite de primavera.

— Boa noite. – Takao cumprimentou, levando a xícara de chá aos lábios. – Está procurando por Rin?

Sesshoumaru apenas acenou. – Não quis incomodá-lo, desculpe. – Ele fez menção de virar as costas, para ir embora, mas Takao se moveu, fazendo menção de levantar da cadeira. Sesshoumaru congelou, apenas virando os calcanhares para voltar a olhar o pai de Rin.

— Você é o advogado dos Braxton, não é? - Takao perguntou, levando a xícara que continha um líquido fumegante à boca.

— Sim. – Resolveu responder, ao invés de somente acenar.

— Ooh, eu conheço Joseph e os meninos há muitos anos. – O mais velho contemplou o céu de início de noite. – Não vejo o Braxton mais novo há um tempo. Dizem que foi para o velho continente... – Ele suspirou – Ele é um bom rapaz. Talvez o melhor entre os irmãos.

Sesshoumaru não evitou o movimento confuso das sobrancelhas. O velho havia dado pistas que sabia o que ele havia ido fazer em Lovebelt: o testamento de Joseph Braxter, prejudicando o filho mais novo da família. De qualquer forma, não sabia onde aquela conversa chegaria.

— Você sabe, por aqui todos nos conhecemos. Cidade pequena. – Os olhos castanhos, moldados por rugas, voltaram a olhar Sesshoumaru de pé no jardim. – Você, claro, não é daqui.

— Não, senhor. – Sesshoumaru colocou as mãos nos bolsos da calça social preta que usava, afundando os punhos até onde podia.

— Entendo. – Takao deu mais um longo gole no chá, fazendo uma pausa. – E de onde você é?

Um fundo de irritação preencheu a mente de Sesshoumaru, que começava a ficar inquieto com as perguntas.

— Nasci no Queens, perto de Nova York.

— Desculpe pela intromissão, mas imagino então que não tenha nascido em berço de ouro. – Um riso abafado saiu do fundo da garganta de Takao, deixando Sesshoumaru ainda mais confuso.

— Não, senhor. – Repetiu.

— Sabe, eu vim do Japão quando era ainda bem jovem. Comecei do zero aqui. – Takao apontou o horizonte, como se mostrasse algo. – Mas não tenho do quê me queixar. Essa terra me levou a conhecer minha falecida esposa, que me deu o que tenho de mais precioso.

Agora Sesshoumaru começava a entender o caminho daquela conversa, e definitivamente não estava gostando. Permaneceu em silêncio, sem saber o que dizer.

— Espero que consiga o que veio buscar aqui, rapaz. – Comentou, voltando a contemplar algo no horizonte. As mãos de Sesshoumaru suavam dentro do bolso.

Um breve silêncio se seguiu, e Sesshoumaru girou novamente os calcanhares, andando pela grama. Queria chegar o mais rápido possível no sedã de luxo alugado, estacionado na calçada oposta.

— Filho? - Takao chamou, fazendo Sesshoumaru congelar. O mais velho levantou-se, descendo os degraus da varanda. Uma brisa fria de início de noite balançou a grama. – Eu sei o que rapazes como você querem com moças como a minha filha.

Sesshoumaru travou a mandíbula, encarando Takao. Enquanto o nervosismo dele só crescia, Takao manteve o mesmo tom sereno.

— Apesar de ser um velho do meio-oeste, eu não sou adepto aos antigos costumes. Não me importo com essas bobagens sobre aparência. – O mais velho resmungou as palavras finais, demonstrando o desprezo que realmente tinha pelo que os outros pensavam sobre o envolvimento de Rin com um rapaz de fora. – Só que esse velho aqui sabe que você vai partir o coração da minha filha.

Um calafrio percorreu o corpo de Sesshoumaru. Nos últimos dias, sua mente vinha travando uma batalha entre a racionalidade e a emoção. O que sentia por Rin era inédito – nunca havia sentido tanta atração, interesse e... carinho por alguém. Mas em pouco tempo ele teria que voltar para Nova York, para sua noiva e para a vida próspera que ele tanto desejou, e pela qual ele se esforçou tanto. Sua mente gritava para que ele se afastasse de Rin, enquanto seu coração, ainda sem saber como lidar com aquele sentimento por ela, implorava para que ele ficasse, nem que fosse por mais alguns dias.

— Eu tentei protegê-la, tentei ser o melhor que pude. – Takao parecia consternado, embora o tom de voz ainda fosse suave. – Mas se Rin escolheu você, é porque viu algo. Não sei o que é, filho, mas espero que isso seja o suficiente para que você não faça mal a ela. – Ele suspirou. – Isso doeria muito em mim. Quando você for pai, vai entender.

A garganta de Sesshoumaru ardia. A mesma expressão serena daquela noite estava retratada na foto de Takao, no altar. Queria poder dizer ao avô de sua filha que, sim, ele entendia. Que ver Lissy sofrendo mais cedo doeu no fundo do coração, e que ele faria de tudo para protegê-la. Não podia causar mais sofrimento à menina e, por isso, prometia-se nunca mais ficar longe dela.

Sentia-se ressentido. O amargor do arrependimento estava no céu da sua boca. Queria pedir perdão a Takao por, no fim, ter partido o coração de Rin. Seus ouvidos voltaram-se para o sermão do padre. Era algo sobre o amor.

“Ainda que eu fale as línguas dos homens e dos anjos, se não tiver amor, serei como o sino que ressoa ou como o prato que retine. Ainda que eu tenha o dom de profecia e saiba todos os mistérios e todo o conhecimento, e tenha uma fé capaz de mover montanhas, mas não tiver amor, nada serei” – As palavras entranhavam-se na alma de Sesshoumaru, e os olhos dourados iam ficando mais pesados. Ele cerrou as pálpebras, sentindo a cabeça girar.

O homem no altar continuou: “o amor é paciente, o amor é bondoso. Não inveja, não se vangloria, não se orgulha. Não maltrata, não procura seus interesses, não se ira facilmente, não guarda rancor. O amor nunca perece; mas as profecias desaparecerão, as línguas cessarão, e o conhecimento passará”.

Naquele instante, foi como se algo florescesse dentro do peito de Sesshoumaru. Entendeu que não poderia ignorar o que sentia, mesmo que lutasse, mesmo que desejasse. Todos os caminhos o levariam de volta para aquele sentimento, cedo ou tarde. Seu lado racional continuava gritando, lembrando-o de tudo que ele passou para chegar onde chegara, mas de repente tudo se calou. Os olhos dourados se abriram, buscando a imagem da menininha sentada ao seu lado. Lissy apertou com força a mão do pai, esgueirando-se no colo dele.

Então, Sesshoumaru olhou Rin. Novamente seu coração perdeu o compasso, acelerado. Tudo que ele reprimiu nos últimos anos voltou à tona; não como havia sido ontem, quando ele a beijou. Era diferente. Sesshoumaru lembrava-se desse sentimento: é o mesmo que seu coração sentiu quando ele viu Rin pela primeira vez, quando ele percebeu que ela o havia escolhido. É o mesmo que sentia todas as vezes que, seis anos atrás, seu racional titubeava e ele decidia, ainda que momentaneamente, que nunca mais voltaria para a vida de Nova York.

Sesshoumaru sabia que havia tomado uma decisão naquele instante, e que nada mudaria aquilo.


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